20 de fevereiro de 2017

Não há vida verdadeira, senão na falsa

Sara R. Farris

Viewpoint Magazine

Tano D’Amico

Tradução / “Não há vida verdadeira, senão na falsa” é uma frase de Franco Fortini, um poeta e intelectual comunista italiano, da mesma geração de Pier Paolo Pasolini, e, diferentemente dele (por escolha ou destilo), não muito conhecido internacionalmente[1]. Com essas palavras, Fortini virou de ponta cabeça a famosa linha de Adorno, na Minima Moralia, “Es gibt kein richtiges Leben im Falschen”, geralmente traduzida para o italiano como “Non si dà vita vera nella falsa”: não há vida verdadeira na falsa[2]. Nessa frase, Adorno parece argumentar que não é possível conduzir uma vida ética ou moralmente justa e verdadeira no interior de uma ordem social injusta. A aspiração à verdade e à justiça, a possibilidade mesma de desfrutar de uma vida plena, exige que mudemos a ordem social. A reivindicação de Fortini não é menos radical. Ao transformar a frase de Adorno em seu oposto, Fortini aponta para o fato de que isso que chamamos de verdade e autenticidade, ou vida ética, pode emergir — e emerge –mesmo no meio da falsidade e da injustiça que o capitalismo traz à tona. A verdadeira vida, enquadrada de qualquer perspectiva purista como “imaculada”, a autêntica experiência de si e do outro não existe. A vida, assim como a política, é sempre uma mistura de verdadeiro e falso, autêntico e inautêntico, racional e irracional, revolução e reforma. Nossa vida “capitalista” está imersa em contradições; precisamos passar pelo meio delas em nossa luta por justiça, inclusive numa luta contra nós mesmos. O problema da tese de Adorno, Fortini parece sugerir, é que essa verdadeira vida parece não deixar espaço para a turvo, a incerta e insólita zona que caracteriza nossa experiência deste mundo — uma zona que não será apagada por uma sociedade mais justa.

Quando li os merecidamente celebrados trabalhos de Elena Ferrante, não tive como não pensar nas palavras de Fortini. A tetralogia de Ferrante, intitulada A Amiga genial, mas conhecida em inglês como novelas napolitanas, se tornou um verdadeiro evento literário tanto na Itália (sua terra natal) quanto no mundo anglófono[3]. Na Itália, o quarto volume foi indicado ao mais prestigiado prêmio literário — Premio Strega — e a tetralogia completa vai ser em breve transformada numa série de TV. Nos Estados Unidos, festas foram organizadas para celebrar o lançamento da tradução inglesa do quarto e último volume da série. Todos os principais jornais e revistas literárias têm acolhido resenhas entusiasmadas de seus livros, elogiando a clareza de seu estilo e a precisão de sua descrição de emoções complexas. A despeito dos diferentes ângulos dos quais o livro tem sido avaliado, a maioria dos resenhistas destaca os motivos psicológicos aos quais Ferrante dá voz, ao ponto dela ter sido descrita como “mestre do indizível”.

Para qualquer um que tenha lido essas novelas, é impossível não reconhecer que muito da potência delas reside na franqueza desconcertante com a qual Elena Greco — narradora e uma das duas principais personagens — força o leitor a confrontar pulsões, desejos e medos profundos, que ninguém tem coragem de contar aos outros, ou a si mesmo, quanto menos formulá-los numa prosa tão aguda e acurada. O registo escolhido por Ferrante, entretanto, não se limita à dimensão psicológica. Suas novelas não são apenas afrescos de paixões, mas também janelas para a história, condensações dos contextos pessoais e sociais nos quais os personagens se movem. A história, nesse sentido, não é um pano de fundo inerte, mas parte e parcela das biografias dos dramatis personae; todos eles são poderosamente afetados por seu desdobramento, enquanto tentam, eles mesmos, afetar a história, ou aquilo se lhes apresenta como um destino aparentemente prescrito.

Neste ensaio, tentarei mostrar algumas das complexidades das novelas de Ferrante concebendo-as como jornadas apaixonadas em direção à descoberta dos muitos arquivos da Itália, bem como do self, do si mesmo. Ao fazer isso, tentarei me apoiar particularmente no tema central dos trabalhos de Ferrante: a “dissolução das margens”, ou “desmarginação”. É esse tema, argumento, e as diversas maneiras pelas quais Ferrante lida com ele, que faz das novelas napolitanas um testamento da experiência na fronteira entre o verdadeiro e o falso, ambas como características pessoais ou políticas.

Um conto de duas mulheres

Atetralogia que começa com A Amiga Genial — o título da primeira obra bem como da série completa em italiano — narra a amizada entre duas mulheres, Lila e Elena (chamada de “Lenù”). Ambas crescem juntas numa rione (vizinhança) pobre de Nápoles no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Lila é aparentemente uma criança destemida e errática que assusta até mesmo os meninos mais velhos com seu temperamento e sua determinação. Lenu é, por sua vez, uma garota mais dócil e, talvez por isso, é perturbada e seduzida pelas maneiras selvagens de Lila. A amizade das duas começa num dia em que Lenu revida um abuso de Lila, jogando a boneca da última num porão escuro, tal como a última, pouco antes, tinha feito com a boneca da primeira. Quando as duas meninas vão atrás das bonecas, elas desapareceram; de acordo com Lila, elas foram pegas por Don Achile, o bicho-papão da rione:

“Foi quando Lila e eu decidimos subir pela escada escura que levava, degrau a degrau, patamar a patamar, até a porta do apartamento de Dom Achille que nossa amizade começou… Dom Aquille era o ogro das fábulas, eu estava terminantemente proibida de me aproximar dele, falar com ele, olhá-lo, espiá-lo: devia agir como se ele e sua família não existissem” (Vol. 1, p. 19–20).

Esse episódio aparentemente trivial é chave para compreender a relação de Lenu e Lila, até as últimas linhas do quarto e derradeiro volume. Da perda das duas bonecas e da visita a Don Aquile em diante, um forte laço de amor e ódio, dependência e necessidade de autonomia, fé e desconfiança, será forjado entre as duas meninas. A ligação de Lenu com Lila se aprofunda quando ela descobre na amiga algo que a incomoda e, ao mesmo tempo, a excita. Lila não é apenas a filha rebelde e imprevisível de um sapateiro; ela é também extremamente bem-dotada intelectualmente. Lila já sabe ler muito antes de todos os seus colegas de classe; ela tem uma mente incrivelmente precoce que permite ela aprender sem esforço qualquer coisa que lhe interesse. É uma lâmina afiada também nos seus julgamentos sobre o caráter das pessoas, algo que parece aliená-la de seus pares. Lenu é tão fascinada pelo que desafio que a personalidade talentosa de Lila representa que passa o resto da vida procurando descobrir qual o segredo dela e tentando emular a mente privilegiada que atribui à amiga. A competição acadêmica entre as duas é, no entanto, interrompida por uma história muito comum no sul da Itália no começo dos anos 1950. São ambas filhas da classe trabalhadora; nenhuma delas está destinada a continuar seus estudos depois dos cinco anos obrigatórios da escola primária. Suas famílias não têm recursos para mandá-las para a escola secundária, nem podem se dar ao luxo de perder sua força de trabalho, que é essencial para o sustento da casa nas classes trabalhadoras da região. Todavia, enquanto a família de Lila obedece essa regra, a despeito de todo choro e rancor de Lila, que não quer outra coisa senão continuar seus estudos, a família de Lenu finalmente decide permitir que sua filha vá para a escola secundária (graças à insistência de sua professora). Esse evento marca o começo de muitos momentos de separação/incomunicabilidade/retorno entre as duas. Lenu pode continuar a cultivar sua inteligência, sonhar com aquela mobilidade social que ambas entendem que pode ser conquistada de suas formas: ou por meio da educação, ou por meio de um casamento como um homem de alta classe. Lenu tem a oportunidade de trilhar o primeiro caminho ao entrar no liceo clássico (liceu clássico), onde será então agraciada com uma vaga na Scuola Normale di Pisa para estudar clássica. Lila, por outro lado, vai tomar o segundo caminho, casando com um conhecido comerciante da rione. Lenu vai então manejar lentamente sua saída do ambiente tacanho, pobre e violento da rione, enquanto Lila jamais conseguirá fazer isso (Lila raramente sairá da rione a maior da sua vida). Isso não vai impedir a bem-sucedida Lenu — que vai acabar se tornando uma escritora famosa e casando com um respeitado acadêmico de uma famosa família da esquerda italiana — de se sentir sempre inferior à pouco educada Lila, que por sua vez vai deixar seu marido para se tornar, primeiro, operária numa fábrica de embutidos, depois, dona de uma empresa de contabilidade.

O conto pessoal de Lenu sobre sua amizade com Lila, que dura seis décadas, é a história de sua tentativa de resgatar um débito emocional e intelectual — igualmente fictício e real — que ela acredita ter com a extravagante e brilhante Lila. Mas a história confessional de Lenu é também um testemunho do pós-Segunda Guerra na Itália: uma imersão completa em sua história, sua política, suas mutações e, mais recentemente, em sua decadência. Ao desdobrar diante de nossos olhos o mundo de sentimentos e memórias conturbados contra os quais ela se digladiou — e compartilhou com Lila –, Lenu também nos conduz pelos anos da reconstrução das ruínas do pós-guerra, os anos dourados da industrialização e das mudanças sociais, do movimento estudantil, da revolução sexual, do feminismo e da ascensão do Partido Comunista, mas também pelos anos do terrorismo vermelho e da lenta decadência dos anos 1980 e 1990, com o aumento crescente do número estudantes e ex-radicais agindo como peças do poder corrupto, nos interstícios do aparato estatal e das famílias da Camorra, que controlavam os corpos públicos e privados do país.

Desmarginando: sobre a mutação antropológica italiana

Um dos mais recorrentes, intrigantes e ainda assim obscuros conceitos que podem ser encontrados nas novelas napolitanas é aquele da dissolução das margens, a dermarginação (smarginatura). É esse o conceito por meio da qual Lila descreve a experiência de seu próprio corpo — bem como dos objetos e pessoas que a cercam — expandindo para romper os próprios limites e desabar violentamente em pedaços. A primeira vez que encontramos essa experiência é no primeiro volume, quando não passa de uma jovem adolescente, prestes a se casar com um rico comerciante da rione. É 31 de dezembro e todo mundo está se preparando para as festas de réveillon. Rino (irmão de Lila), Stefano (seu futuro marido) e outros garotos que gravitavam ao redor de Lila estão particularmente excitados com o plano de competir com a gangue dos meninos da Camorra (a família Solara) pra ver quem vai ser responsável pela maior queima de fogos. Lila observa o espetáculo em silencio, quase com nojo:

“Estava passando pela coisa a que já me referi, e que mais tarde ela chamou de desmarginação. Foi — me disse — como se numa noite de lua cheia sobre o mar, uma massa preta de temporal avançasse sobre o céu, engolisse toda a claridade e destruísse a circunferência do círculo lunar, deformando o disco luminoso e reduzindo-o à sua verdadeira natureza de bruta matéria insensata. Lila imaginou, viu, sentiu — como se fosse real — seu irmão se rompendo. Diante de seus olhos, Rino perdeu a fisionomia que sempre tivera desde quando se recordava dele, a fisionomia do rapaz generoso, honesto, as feições amenas da pessoa confiável, os traços amados de quem desde sempre, desde que tinha memória, a divertira, ajudara, protegera”. (Vol. 1, p. 171).

O primeiro encontro de Lila com a experiência da desmarginação ocorre quando ela acredita que seu irmão começa a se comportar como os ricos e arrogantes meninos da Camorra na rione. Esse episódio ocorre justamente quando Rino, graças tanto à mente criativa de Lila como designer de sapatos quanto à promessa investimento de Stefano, finalmente se vê diante da possibilidade de fazer dinheiro, criando uma empresa e tornando-se dono de uma fábrica de sapatos. Aos olhos de Lila, no entanto, o sonho de ganhar dinheiro transformou seu irmão num indivíduo irracional, sedento por riqueza. Como ambas vêm de famílias pobres, tanto Lenu quanto Lila sempre cultivaram o sonho ficarem ricas, mas agora Lila começava a olhar para o dinheiro de maneira diferente: “Agora parecia que o dinheiro, em sua cabeça, tinha se tornando uma espécie de cimento: consolidava, reforçava, fixava isto e aquilo… ela não falava mais de dinheiro com empolgação, apenas como uma forma de manter seu irmão longe de problemas” (xxx).

Lila vai lançar mão da imagem da “desmarginação” em outras ocasiões. Mas a experiência se torna devastadora em sua vida com o passar do tempo, depois de se separar de seu marido, Stefano, e romper com seu amante, Nino, ela acaba tendo que trabalhar numa fábrica de embutidos para poder sustentar a si mesma e a seu filho recém-nascido. Na fábrica, Lila experimenta exploração, assédio sexual, humilhação, fadiga e o perde o contato com seu filho e o tempo para se dedicar à educação de seu filho. Mas mais do que a fadiga dos turnos e a possibilidade de conciliar o trabalho e o cuidado com a criança, é seu encontro com a política, em meio ao movimento trabalhista e estudantil de 1968/69, que lhe causa quase um colapso nervoso. Certa manhã, ao chegar em casa do trabalho, ela percebe que seu relato das muitas instâncias de brutalidade que testemunhou na fábrica foi utilizado, sem seu consentimento, num panfleto político de estudantes radicais para atacar a fábrica e incitar a revolta dos trabalhadores. Todo mundo no trabalho entende que Lila está por trás da história reproduzida no panfleto; seu chefe ameaça demiti-la juntamente com seus colegas e diz que será dela a culpa por tornar a vida dessas pessoas ainda mais miseráveis. Nessa noite, fica tão furiosa com os estudantes, que não lhe informam de suas ações, criando-lhe problemas, que sente seu corpo a ponto de explodir.

“Ela estava se deitando de novo quando de repente, sem uma razão evidente, o coração lhe subiu à garganta e começou a bater tão forte que parecia o coração de um outro… Já conhecia aqueles sintomas, eles acompanhavam aquilo que, em seguida — onze anos mais tarde, em 1980 — batizou de desmarginação. Mas nunca ocorrera de se manifestar de modo tão violento, e além disso era a primeira vez que acontecia estando ela sozinha, sem pessoas ao redor que, por um motivo ou outro, desencadeassem aquele efeito” (Vol. 3, p. 119).

A desmarginação é a experiência do conhecido que se torna desconhecido, do verdadeiro que se torna falso, do belo que se torna feio, do familiar que se torna insólito e perigoso. É o medo de que o mundo irrompa em formas monstruosas. Uma forma de ler a noção de desmarginação é nos termos da resistência de Lila a — seu medo de — um mundo que está mudando diante de seus olhos. É a recusa de Lila a aceitar ou compactuar com o caminho da industrialização e da modernização de fachada que a Itália está tomando. De certo modo, o horror de Lila à desmarginação é seu pânico diante do que Pier Paolo Pasolini chamou de “mutação antropológica”, que estava ocorrendo no país nos anos 1960[4]. Com esse termo, Pasolini se referia ao que percebia como uma transição dos valores tradicionais para os modernos na Itália. Para Pasolini, essa não era uma mudança positiva, porque significava a homogeneização das ideias, dos gostos, dos desejos e das aparências de todos pelo consumo de massa. Lila vê pela primeira vez a cara feia dessa mutação antropológica quando testemunha a cobiça por dinheiro transformar seu irmão, um modesto artesão, em uma criatura gananciosa. Mas, acima de tudo, ela vê essa cara feia da mudança antropológica e experimenta o estilhaçar de seu próprio corpo quando sente que o tumulto político em seu local de trabalho não é resultado das ações de seus próprios colegas, mas da falta de sinceridade e da ingenuidade dos estudantes de classe média que querem “salvar” os trabalhadores:

“Os estudantes fizeram exposições que lhe pareceram hipócritas, tinham uma postura humilde que contrastava com suas frases arrogantes. De resto, o refrão era sempre o mesmo: estamos aqui para aprender com vocês, ou seja, com os operários; na verdade, exibiam ideias claras demais sobre o capital, sobre a exploração, sobre a traição da socialdemocracia, sobre as modalidades de luta de classes” (Vol. 3, p. 110–111).

Aqui, mais uma vez, emerge o motivo pasoliniano: a “artificialidade” e a precariedade da coalizão entre trabalhadores e estudantes. Conhecidamente, em 1968, quando a política atacou estudantes em protesto, Pasolini, provocador, saiu em defesa dos primeiros. Os policiais eram os verdadeiros representantes da classe trabalhadora, argumentou, não os estudantes, os quais Pasolini rotulava de garotos pequeno-burgueses com colheres de prata na boca. Lila olha para os estudantes com a mesma inflexão classista do olhar pasoliniano, mas, ainda assim, decide ficar do lado deles. Apesar da raiva que a imaturidade dos estudantes desperta nela, ela acredita que eles estão certos. Concorda com suas denúncias do capitalismo como fonte de injustiça, mesmo estando convencida de que eles não experimentam essa injustiça realmente na pele. Ela vai então se tornar sindicalista e, por meio da caneta de Lelu, denunciar as condições de trabalho na fábrica nas páginas do mais importante jornal de esquerda do país.

Quando tudo está desabando dentro e ao redor dela, quando silenciar e se resignar seriam escolhas muito mais fáceis, Lila, todavia, toma partido dos fracos e marginalizados. A despeito de sua falta de limites, ela transmite solidez e incorpora uma integridade que é a verdadeira marca de sua personalidade. São por essas características da personalidade de Lila, sua autenticidade e honestidade, mesmo em suas manifestações mais desagradáveis, que Lenu — que se sente falsa, inautêntica e “opaca” — é atraída.

Dissolvendo as margens da classe e do gênero

O tema da desmarginação perpassa os quatro livros de um jeito menos explícito e metafórico quando somos confrontados com os limites de gênero e classe. Tanto Lenu quanto Lila cresceram em famílias patriarcais da classe trabalhadora, onde não era incomum ver seus pais batendo em suas mães, ou homens batendo em mulheres. Esses episódios ganham contornos quase naturais e inefáveis diante de seus olhos, recebendo a rubrica de fatos costumeiros. Ainda assim, as duas garotas, desde muito cedo, cada uma à sua maneira, lutam por sua independência e emancipação em um ambiente que as oprime e que saber ser injusto para com as mulheres. Lila é a primeira a reconhecer e nomear os códigos da dominação masculina. Ela faz isso à sua maneira não-livresca, mas instintiva e radical: depois da decepção de um amor intenso e clandestino com um jovem intelectual, Nino, ela se separa seu marido autoritário e tacanha e decide viver em parceria com Enzo, um homem que não lhe suscita luxúria, mas transmite integridade e paixão política — e, acima tudo, a respeita. Como operária da fábrica, atenta especialmente para o sexismo e outros problemas aos quais mulheres e mães são submetidas. Ela os descreve num discurso que remete ao poderoso e memorável monólogo de Maria Volontè em La Classe Operaia va in Paradiso (A classe operária vai ao paraíso):

“Disse provocadora que não sabia nada da classe operária. Disse que só conhecia as operárias e os operários da fábrica em que trabalhava, pessoas com as quais não havia absolutamente nada a aprender senão a miséria. Vocês imaginam — perguntou — o que significa passar oito horas por dia mergulhado até a cintura na água do cozimento de mortadelas? Imaginam o que é ter os dedos cheios de feridas de tanto descarnar ossos de animais? Imaginam o que é entrar e sair de câmaras frigoríficas a vinte graus negativos e receber dez liras — dez liras — a título de insalubridade? Se imaginam, o que acham que podem aprender com gente que é forçada a viver assim? As operárias devem permitir que seus chefetes e colegas passem-lhe a mão na bunda sem dar um pio. Se o patrãozinho sentir necessidade, uma delas deve acompanha-lo até a câmara de maturação — coisa que já o pai dele fazia, e talvez até o avô — e ali, antes de pular em cima de você, esse mesmo patrãozinho lhe faz um discursinho batido sobre como o cheiro de salames o excita” (Vol. 3, p. 112).

Lila é também a primeira a entender o poder e a fragilidade dos limites de gênero quando encoraja seu cunhado, Alfonso, a se sentir confortável em sua não-conforme pele de homossexual.

Lenu, por outro lado, descobre o desafio dos limites de gênero por um caminho livresco, mas não menos transformador. Sua cunhada, Mariarosa, a introduz ao feminismo e a um grupo de apoio e conscientização. Lenu fica particularmente impressionada pelo famoso texto de Carla Lonzi, “Vamos cuspir em Hegel”. Nesse texto, Lonzi questiona a possibilidade de aplicar a dialética do senhor e do escravo à relação homem-mulher. Para Lonzi, as mulheres precisam se tornar sujeitos de uma história renovada, pondo dessa forma um ponto final à condição de mera hipótese formulada por terceiros.

“Como é possível, pensei, que uma mulher saiba pensar assim? Trabalhei muito nos livros, mas sempre me submeti a eles, nunca os utilizei realmente, nunca os voltei contra si mesmos. Aí está como se pensa. Aí está como se pensa contra. Eu — depois de tanto esforço — não sei pensar. Nem mesmo Mariarosa sabe: leu páginas e páginas e recombina com estro, dando espetáculos. Só isso. Já Lila sabe. É da natureza dela. Se tivesse estudado, saberia pensar dessa maneira… Essa ideia se tornou insistente, todas as leituras daquele período terminaram, de um jeito ou de outro, trazendo Lila para o centro” (Vol. 3, p. 275).

A descoberta do potencial transformador do pensamento feminista sobre a desconstrução do gênero é um ponto de virada para Lenu; é, no entanto, uma virada repleta de profundas contradições. O que a fascina nas teorias feministas e nos grupos de conscientização não são as implicações políticas e o ativismo, mas a maneira pela qual esse modelo feminista de pensamento causa nela a mesma admiração e o mesmo sentimento de subalternidade que ela experimenta em relação a Lila. Diferentemente dessa última — que usa sua experiência privada da desigualdade de gênero e abuso na fábrica para denunciá-las publicamente — Lenu inicialmente explora a experiência pública no grupo feminista em sua batalha pessoal com Lila e com ela mesma. Mesmo mais tarde, quando decide escreve um livro ensaio sobre a história da cultura ocidental como aquela na qual o homem “fabrica a mulher”, Lenu nos fala dessa decisão enfatizando seus próprios motivos e ambiguidades. Ela escreve sobre mulheres e flerta com o feminismo porque quer impressionar e seduzir um homem, Nino. Ela defende o empoderamento feminino e, no entanto, deixa seu amante enganá-la e desrespeitá-la com suas muitas mentiras. Todas as passagens no terceiro e no quarto volume sobre a relação de Lenu com o feminismo e com as feministas são perpassadas pela ansiedade e pelos sintomas da síndrome do impostor. Como escritora de sucesso, ela pode fazer seus leitores pensarem que cruzou com sucesso os limites do cânone literário dominado pelo masculino — seu primeiro livro foi vanguardista em seu conteúdo sexual explícito, às vésperas da revolução sexual — mas ela não é capaz de enganar a si mesma. Os sentimentos de insegurança e de falta de autenticidade concernentes às suas credenciais intelectuais e feministas não podem ser dissociados de sua crise de confiança, relacionada à sua classe. Ao cruzar as fronteiras de gênero, do cânone literário e mesmo as da respeitabilidade doméstica burguesa — ela abandona seu marido e suas filhas por Nino, um amor de sua infância –, expressa sua ansiedade quanto aos limites incertos de sua identidade de classe. Educação e casamento lhe permitiram ascender na escada social, deixar para trás o ambiente operário no qual nasceu, instalar-se um confortável ambiente de classe média. Todavia, ela não se livra da impressão de ser uma estranha nas duas classes. Enquanto Lila dissolve as margens do próprio corpo e teme a desintegração do mundo ao seu redor, Lenu dissolve as margens do gênero e da identidade de classe. Enquanto Lila parece encarar o terremoto, dentro dela e ao seu redor, com firmeza, numa tentativa desesperada de manter a si mesma e a seu filho a salvo, Lenu deixa tudo, dentro dela e ao seu redor, cair aos pedaços: seu casamento, sua relação com as filhas, e ela mesma.

No entanto, Ferrante bagunça esse binarismo da Lila autêntica e da Lenu inautêntica com a força de suas escolhas narrativas. Não é, afinal, a aparentemente falsa, não é justamente a autodepreciativa Lenu que nos fala de sua luta por autenticidade com apaixonada honestidade? Se a solidez das convicções inabaláveis e o comportamento irrepreensível lhe é negado enquanto mulher que vive nas fronteiras das hierarquias de classe e de gênero, o que lhe resta como narradora é a sinceridade: lutar pela verdade, mesmo sabendo que é impossível alcançá-la.

O duplo e o insólito

Alguns sugerem que a tetrologia de Ferrante são novelas da dupla, do memorável par. Como Prince Hal e Falstaff, Settembrini e Paphta, Lenu e Lila de Ferrante parecem ficar impressas em nossa memória pela força de sua relação quase simbiótica.

Para compreender completamente essas novelas, no entanto, particularmente em seu enigmático final, sugiro que olhemos pra Lenu e Lila como duas faces da mesma pessoa; que pensemos em Lila como uma projeção simbólica da fantasia de Lenu. Nesse sentido, as novelas napolitanas podem também ser vistas como novelas do dublo e do insólito, como o William Wilson de Poe ou o Dorian Grey, de Wilde. Freud conhecidamente vinculou o duplo que estava presente na literatura alemã do século XIX ao tema do Umheimlich, do insólito[5]. A presença de um padrão de repetição dos mesmos destinos, transgressões e mesmo nomes envolvendo dois indivíduos (o personagem principal seu duplo, seu Outro), é o que cria o inquietante sentimento do desconhecido, do insólito. Em outras palavras, o que permite que uma série eventos disparatados e ainda assim repetitivos na narração sejam experimentados se tornem inquietantes, de acordo com Freud, é a sensação de que não se tratam de contingências coincidentes, mas de peças de um quebra-cabeças que esconde um significado trágico. Mais importante: para Freud, o insólito emerge da insinuação de que o duplo, o outro da novela, não é uma pessoa real, mas um autômato ou uma sombra da imaginação, na qual o personagem principal se espelha ou projeta suas fantasias. Dessa perspectiva, não é difícil encontrar todos os ingredientes do insólito na tetralogia de Ferrante.

Namorado da Lila quando adolescente, Nino, mais tarde se torna amante — e depois parceiro — de Lenu quando adulto. O sonho de Lila quando criança, o de ser escritora, se torna a realidade de Lenu mais tarde na vida. Tanto Lenu quanto Lila dão à luz a duas filhas ao mesmo tempo e Lila dá a sua filha o nome da boneca de Lenu, Tina. As duas meninas, por sua vez, parecem repetir o caminho de suas mães: a Tina de Lila é precoce e extremamente inteligente; a Imma de Lenu, em vez disso, é bastante ordinária. E, mais importante, a filha de Lila desaparece no vazio, do mesmo jeito que a boneca de Lenu, de mesmo nome, desapareceu anos antes e nunca foi reencontrada (pelo menos até o fim do livro). No entanto, essa série de coincidências momentâneas nunca é uma simples repetição do mesmo. Tudo ocorre em diferentes estágios da vida de Lila e Lenu. Mais precisamente, Lenu “realiza” os sonhos de sua infância e adolescência — ser amante de Nino, ser uma escritora famosa — em sua vida adulta. E é no auge de seu sucesso como escritora e de sua nova consciência feminista que Lenu, dessa vez vicariamente, re-vive o complexo de inferioridade de sua infância em relação a Lila, graças aos encontros cotidianos de sua filha com a mais talentosa Tina. É presumivelmente por causa disso que Tina deve ir — duas vezes! Primeiro, como a boneca, depois como a filha querida de Lila. Sua presença como reencarnação do duplo inquietante de Lenu fica no meio do caminho entre Lenu e seu próprio renascimento.

Passo a passo, Ferrante nos conduz através do encontro de Lenu com — e seu desejo por — Lila como seu duplo. É um encontro doloroso e desgastante, mas necessário para que ela possa se encontrar consigo mesma. A Lenu de Ferrante não narra exatamente sua jornada em direção à descoberta de sua própria persona como uma espécie de desdobramento monádico de suas potencialidades interiores. Lenu, a adulta, não é uma versão expandida e plenamente desenvolvida da Lenu criança. Pelo contrário, a Lenu de Ferrante precisa encarar e confrontar Lila, bem como reconhecê-la como seu duplo (se Lila é ficcional ou real, pouco importa aqui) para poder entrar em sua própria pele. É talvez por esse motivo que apenas ao final da quarta novela, nas derradeiras linhas, depois que ela misteriosamente encontra as duas bonecas perdidas de sua infância em seu apartamento (presumivelmente deixadas por Lila), que Lenu levanta a dúvida de que pode ter vivido sua própria vida como uma projeção, ou talvez até mesmo como uma encarnação da vida de Lila, seu Outro.

[Lila] tinha me enganado, tinha me arrastado pra onde bem quis, desde o início de nossa amizade. Durante toda a vida tinha contado uma história sua, de redenção, usando meu corpo vivo e minha existência” (Vol. 4, p. 356).

A desconcertante descoberta das duas bonecas que Lenu acreditava perdidas para sempre lança luz sobre a escuridão do desaparecimento de Lila. “Agora que Lila se fez ver tão nitidamente, devo resignar-me a não vê-la nunca mais” (357), escreve Lenu, numa tocante sentença final. Agora que Lenu pode finalmente ver a mentira original de Lila, que foi determinante para a amizade de longa data das duas, ela também entende que Lila não pode retornar. Ou, quem sabe, as duas bonecas sejam apenas metáforas para a relação de Lenu com Lila, enquanto sua projeção simbólica. De maneira reveladora, de fato, Lenu nos diz que arruma as bonecas “contra as lombadas de seus livros”, enquanto as examina com cuidado e percebe o quão baratas e feias elas são. Agora que consegue finalmente viver na própria pele, Lenu está pronta para ver as duas velhas bonecas juntas, como dois lados conflitantes de sua personalidade. Ela está pronta para encará-las como relíquias daquele passado infernal como garota no Sul da Itália. Em oposição a esse passado, pode agora afirmar seu presente como escritora bem-sucedida.

Seja qual for o significado que inesperado reaparecimento das bonecas venha a ter, ficamos com uma sensação de nostalgia e confusão. Entendemos que não existem verdades simples ou unidimensionais a serem finalmente reveladas: “a vida real, quando já passou, de inclina em direção à obscuridade, não à clareza”, como Ferrante nos diz nas últimas e densas linhas de seu livro. Encontrarmo-nos por meio do encontro com nosso próprio duplo — e perder a poderosa projeção de nós mesmos que o duplo representa, uma vez que sua presença não é mais necessária — não significa encontrar uma verdade estabelecida sobre a qual poderemos repousar.

Notas:

[1] For an overview of Fortini’s life and work in English, see Franco Fortini, The Dogs of the Sinai, trans. Alberto Toscano (London: Seagull Books, 2013) and A Test of Powers. Writings on Criticisms and literary Institutions, trans. Alberto Toscano (London: Seagull Books, 2016).

[2] Adorno’s line has been translated in English in many different ways. One of the most often quoted ones, however, is: “There is no right life in the wrong one.” See Theodor Adorno, Minima Moralia: Reflections on a Damaged Life, trans. Edmund F. N. Jephcott (London: Verso, 2005).

[3] Elena Ferrante is the pseudonym of the author of these novels whose identity is unknown.

[4] Pasolini’s notion of anthropological mutation was elaborated in a series of articles appeared between 1974 and 1975 in the newspaper Il Corriere della Sera and in Il Mondo. They are: “Gli italiani non sono più quelli,” Corriere della Sera 10/06/1974; “Il potere senza volto,” Corriere della Sera il 24/06/1974; Ampliamento del “bozzetto” sulla rivoluzione antropologica in Italia, “Il Mondo,” l’11/07/1974; “Il vuoto del potere in Italia, Corriere della Sera, 1/02/1975, “Abiura dalla Trilogia della vita,” Corriere della Sera, 9/11/1975.

[5] Sigmund Freud, “The Uncanny,” 1919, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Volume XVII (1917–1919): An Infantile Neurosis and Other Works (London: Vintage Classics, 2001), 217–56.

Sobre a autora

Sara R. Farris is a Senior Lecturer in Sociology at Goldsmiths College, University of London. She works on sociological and political theory, ‘race’/racism and feminism, migration and gender, with a particular focus on migrant women and their role within social reproduction. She is the author of , with a particular focus on migrant women and their role within social reproduction. She is the author of Max Weber’s Theory of Personality. Individuation, Politics and Orientalism in the Sociology of Religion (Haymarket, 2015), and In the Name of Women’s Rights: The Rise of Femonationalism (Duke University Press, forthcoming in April 2017).

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