Wendy Brown
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Apoiadores sentam-se sozinhos após o discurso de concessão da vice-presidente Kamala Harris em 6 de novembro de 2024. (Brandon Bell/Getty Images) |
Não existe um tipo de eleitor de Trump. É claro que existem os nazis, a direita alternativa, os hiper misóginos e hiper racistas – todos aqueles que se deleitam com as promessas selvagens, os insultos nocivos e os modos grosseiros de Trump. Existem aqueles que são animados pelo ódio aos “liberais”, cujo desprezo ou mero desrespeito absorvem diariamente. Há cristãos, sionistas e até muçulmanos (de última hora) que esperam que Trump sirva a sua causa melhor do que o regime Biden-Harris o fez. Há quem queira que a fronteira sul do país seja fortificada e que os migrantes recentes sejam deportados. Há proprietários de pequenas empresas que querem impostos mais baixos e menos restrições, e antigos trabalhadores mineiros e industriais que querem empregos que paguem o que os trabalhadores sindicalizados receberam.
Mas nenhum deles explica plenamente o triunfo histórico de Trump – o primeiro candidato presidencial republicano a ganhar o voto popular desde 2004. O que é que explica esse triunfo? Três coisas: o populismo económico de Trump num contexto em que os Democratas se tornaram o partido da elite; o esgotamento da democracia liberal como forma viável ou fiável; e a destruição da educação, especialmente do ensino superior, nos Estados Unidos.
Populismo Económico
Trump tem defendido uma posição económica anti-sistema desde 2015. Há quem lhe chame populismo económico. Pode não ser sincero – tem abundante apoio do capital e dos mega-ricos – mas aborda as desigualdades extremas e crescentes nos Estados Unidos. Estas, claro, são produzidas pela deslocalização neoliberal, pela externalização e pela destruição dos sindicatos; pela especulação que elevou os custos da habitação à estratosfera; e pela privatização de infraestruturas que vão desde os transportes ao ensino superior. Trump fala diretamente sobre a raiva e a privação vividas pelas famílias da classe trabalhadora e média que não podem suportar o custo de vida nem ver um futuro melhor para os seus filhos.
Harris fez pequeninas tentativas para resolver este problema no início da sua campanha, com promessas de acabar com a “manipulação de preços” e de fornecer pequenos subsídios para a aquisição de casa própria. Mas desde os anos de Bill Clinton, o Partido Democrata tem sido o partido dos instruídos e (portanto) dos mais abastados, um partido alinhado com o business as usual, mesmo quando o Obamacare e a Lei de Redução da Inflação avançaram alguns novos projetos para esse business. Além disso, a campanha de Harris abandonou em grande parte as preocupações de política económica nas últimas semanas, concentrando-se em vez disso na inaptidão de Trump para a presidência de uma democracia.
Esgotamento da Democracia Liberal
A democracia liberal – as suas instituições e os seus valores – tem vindo a desmoronar-se há décadas. Nos Estados Unidos, foi corroída pelas ambições neoliberais de a substituir pelos mercados e pelos tecnocratas, atacada pelas mobilizações e pelos partidos de direita e corrompida pelos tribunais. A forma como está entrelaçada com o capital tornou-se cada vez mais palpável e, além disso, a forma é incapaz de controlar potências globais, como as grandes finanças, ou de resolver problemas globais, como as alterações climáticas ou os movimentos massivos de populações. Como resultado, a democracia liberal perdeu o respeito e a confiança entre milhões de pessoas que a consideram, e não erradamente, uma fraude contra elas.
A retórica manifestamente antidemocrática de Trump não é particularmente perturbadora nem importante para estas pessoas. Querem um administrador forte da nação, alguém que não se submeta a outros poderes políticos ou económicos, alguém que torne as suas vidas melhores do que são agora e alguém que vença parte do perigo e da precariedade que qualquer ser humano consciente sente neste nosso século XXI. Se isso implica uma forma política diferente – o liberalismo autoritário – que assim seja. A campanha de Harris continuou a insistir na ideia de que a democracia estava em causa. Quantos eleitores partilhavam a visão de democracia que Harris defendia? Quantos ainda o equiparam a algo mais do que aquilo a que o neoliberalismo a reduziu, nomeadamente o mercado e as liberdades individuais?
Des-educação
No período pós-guerra, os Estados Unidos construíram um dos sistemas educativos mais democráticos do mundo – um sistema que oferecia educação gratuita, acessível e de boa qualidade à maioria dos homens brancos e, eventualmente, também às minorias raciais e às mulheres. A partir da década de 1970, tudo neste sistema foi atacado: o financiamento público foi retirado, os custos dispararam, o tamanho das salas de aula aumentou e a qualidade caiu a pique. Além disso, os currículos foram politizados e contestados, o ensino profissional foi valorizado em detrimento do conhecimento do mundo e das formas de pensamento, e a direita voltou-se duramente contra as universidades, culminando nas atuais campanhas diretas contra a sua “lavagem cerebral totalitária”. Composta por redes sociais isoladas e por uma grande comunicação social fortemente politizada, esta deseducação cria uma cidadania excecionalmente manipulável e identifica a própria educação com o elitismo, a riqueza e o “wokeismo” [n.t. o politicamente correto], ou seja, os Democratas. Trump há muito que cultiva abertamente aquilo a que chama “os mal educados” como sendo a sua base.
Junte tudo isto e verá como a campanha de Harris estava, e o Partido Democrata está, fora de sintonia com o povo e com a época. Na verdade, mesmo muitos que votaram nela não o fizeram porque ela personificava as suas preocupações ou esperanças, mas simplesmente para travar Trump e o fascismo. A campanha de Harris não abordou as condições económicas aprovadas e facilitadas pelo seu partido durante décadas, nem conseguiu abordar uma crise de democracia liberal e de cidadania que exige uma nova forma política.
O Partido Republicano de Trump está a levar-nos para uma outra versão desta política. Irá o Partido Democrata finalmente reconhecer que deve promover uma outra política, bem diferente? Uma política que sirva a prosperidade de muitos e do planeta, em vez de promover a prosperidade para uns poucos e para os especuladores? Uma política que dissocie o capital da democracia e construa um projeto de Estado transformador? Uma política que leve a sério que a democracia está enraizada numa cidadania instruída e não num eleitorado manipulável? Uma política que seja apropriado aos poderes, problemas e possibilidades do século XXI?
Mas nenhum deles explica plenamente o triunfo histórico de Trump – o primeiro candidato presidencial republicano a ganhar o voto popular desde 2004. O que é que explica esse triunfo? Três coisas: o populismo económico de Trump num contexto em que os Democratas se tornaram o partido da elite; o esgotamento da democracia liberal como forma viável ou fiável; e a destruição da educação, especialmente do ensino superior, nos Estados Unidos.
Populismo Económico
Trump tem defendido uma posição económica anti-sistema desde 2015. Há quem lhe chame populismo económico. Pode não ser sincero – tem abundante apoio do capital e dos mega-ricos – mas aborda as desigualdades extremas e crescentes nos Estados Unidos. Estas, claro, são produzidas pela deslocalização neoliberal, pela externalização e pela destruição dos sindicatos; pela especulação que elevou os custos da habitação à estratosfera; e pela privatização de infraestruturas que vão desde os transportes ao ensino superior. Trump fala diretamente sobre a raiva e a privação vividas pelas famílias da classe trabalhadora e média que não podem suportar o custo de vida nem ver um futuro melhor para os seus filhos.
Harris fez pequeninas tentativas para resolver este problema no início da sua campanha, com promessas de acabar com a “manipulação de preços” e de fornecer pequenos subsídios para a aquisição de casa própria. Mas desde os anos de Bill Clinton, o Partido Democrata tem sido o partido dos instruídos e (portanto) dos mais abastados, um partido alinhado com o business as usual, mesmo quando o Obamacare e a Lei de Redução da Inflação avançaram alguns novos projetos para esse business. Além disso, a campanha de Harris abandonou em grande parte as preocupações de política económica nas últimas semanas, concentrando-se em vez disso na inaptidão de Trump para a presidência de uma democracia.
Esgotamento da Democracia Liberal
A democracia liberal – as suas instituições e os seus valores – tem vindo a desmoronar-se há décadas. Nos Estados Unidos, foi corroída pelas ambições neoliberais de a substituir pelos mercados e pelos tecnocratas, atacada pelas mobilizações e pelos partidos de direita e corrompida pelos tribunais. A forma como está entrelaçada com o capital tornou-se cada vez mais palpável e, além disso, a forma é incapaz de controlar potências globais, como as grandes finanças, ou de resolver problemas globais, como as alterações climáticas ou os movimentos massivos de populações. Como resultado, a democracia liberal perdeu o respeito e a confiança entre milhões de pessoas que a consideram, e não erradamente, uma fraude contra elas.
A retórica manifestamente antidemocrática de Trump não é particularmente perturbadora nem importante para estas pessoas. Querem um administrador forte da nação, alguém que não se submeta a outros poderes políticos ou económicos, alguém que torne as suas vidas melhores do que são agora e alguém que vença parte do perigo e da precariedade que qualquer ser humano consciente sente neste nosso século XXI. Se isso implica uma forma política diferente – o liberalismo autoritário – que assim seja. A campanha de Harris continuou a insistir na ideia de que a democracia estava em causa. Quantos eleitores partilhavam a visão de democracia que Harris defendia? Quantos ainda o equiparam a algo mais do que aquilo a que o neoliberalismo a reduziu, nomeadamente o mercado e as liberdades individuais?
Des-educação
No período pós-guerra, os Estados Unidos construíram um dos sistemas educativos mais democráticos do mundo – um sistema que oferecia educação gratuita, acessível e de boa qualidade à maioria dos homens brancos e, eventualmente, também às minorias raciais e às mulheres. A partir da década de 1970, tudo neste sistema foi atacado: o financiamento público foi retirado, os custos dispararam, o tamanho das salas de aula aumentou e a qualidade caiu a pique. Além disso, os currículos foram politizados e contestados, o ensino profissional foi valorizado em detrimento do conhecimento do mundo e das formas de pensamento, e a direita voltou-se duramente contra as universidades, culminando nas atuais campanhas diretas contra a sua “lavagem cerebral totalitária”. Composta por redes sociais isoladas e por uma grande comunicação social fortemente politizada, esta deseducação cria uma cidadania excecionalmente manipulável e identifica a própria educação com o elitismo, a riqueza e o “wokeismo” [n.t. o politicamente correto], ou seja, os Democratas. Trump há muito que cultiva abertamente aquilo a que chama “os mal educados” como sendo a sua base.
Junte tudo isto e verá como a campanha de Harris estava, e o Partido Democrata está, fora de sintonia com o povo e com a época. Na verdade, mesmo muitos que votaram nela não o fizeram porque ela personificava as suas preocupações ou esperanças, mas simplesmente para travar Trump e o fascismo. A campanha de Harris não abordou as condições económicas aprovadas e facilitadas pelo seu partido durante décadas, nem conseguiu abordar uma crise de democracia liberal e de cidadania que exige uma nova forma política.
O Partido Republicano de Trump está a levar-nos para uma outra versão desta política. Irá o Partido Democrata finalmente reconhecer que deve promover uma outra política, bem diferente? Uma política que sirva a prosperidade de muitos e do planeta, em vez de promover a prosperidade para uns poucos e para os especuladores? Uma política que dissocie o capital da democracia e construa um projeto de Estado transformador? Uma política que leve a sério que a democracia está enraizada numa cidadania instruída e não num eleitorado manipulável? Uma política que seja apropriado aos poderes, problemas e possibilidades do século XXI?
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