8 de novembro de 2024

Saída pela direita?

Trump refez os americanos e, para derrotar o trumpismo é necessário nada mais nada menos do que a esquerda fazer o mesmo.

Gabriel Winant

Dissent

Um ônibus de campanha estacionado perto de um campo vazio após a festa de observação da noite da eleição de Kamala Harris em 5 de novembro de 2024 (Kevin Dietsch/Getty Images)

A imagem mais importante das eleições de 2024, a meu ver, foi gerada numa noite da Convenção Nacional Democrata, quando os delegados tiveram de passar por manifestantes que gritavam os nomes e as idades das crianças palestinianas mortas. Os participantes não ignoraram simplesmente a manifestação, como seria de esperar; em vez disso, taparam exageradamente os ouvidos, fizeram caretas trocistas e, num caso notável, imitaram sarcasticamente o cântico: “Dezoito anos!” Ao testemunhar o vídeo deste evento, o meu coração afundou-se, não apenas pelo grotesco moral da exibição, mas também pela sua repugnante confirmação do solipsismo e da complacência do funcionalismo do Partido Democrata. Os participantes na Convenção ofereceram uma representação literal da sua falta de interesse pelas experiências daqueles que estão fora do seu círculo de interesses. La-la, não te consigo ouvir – ou, como a própria Kamala Harris disse quando desafiada num comício, “estou a falar agora”. Não por muito tempo, como se viu.

O melhor momento da campanha de Harris foi logo no início, quando ela teve a oportunidade de encarnar o suspiro coletivo de alívio pela decisão de Joe Biden de se retirar e de oferecer algo de novo. A partir daí, foi sempre a descer. Ela e as pessoas que a rodeavam pareciam pensar que mudanças puramente superficiais seriam suficientes. Harris recusou-se abertamente a fazer qualquer crítica à administração em funções, ou mesmo a sugerir qualquer forma de divergência da mesma. Sempre que questionada a este respeito, simplesmente reiterava que não era a mesma pessoa que Joe Biden (ou Donald Trump). Os seus substitutos e apoiantes reagiram frequentemente com desprezo, zombaria e até com racismo para com aqueles que consideravam justo pedir algo mais. Desta forma, ela desperdiçou a ampla vantagem que tinha aberto no verão. Embora a insegurança alimentar e a pobreza – especialmente a pobreza infantil – tenham aumentado significativamente após o termo das medidas de alívio da pandemia e a inflação tenha ultrapassado os rendimentos de dezenas de milhões de americanos, Harris acabou por se instalar numa campanha itinerante de multimilionários, celebridades e desertores republicanos neoconservadores, defendendo um satus quo mal definido. Foi uma repetição do “A América já é grande” de Hillary Clinton: insensível, incompetentemente dirigida a um eleitor republicano moderado inexistente, e muitas vezes expressamente hostil a parte da sua própria base nominal.

Na contagem atual, Trump obteve menos votos do que em 2020, sugerindo que estava longe de ser imbatível. Mas Harris levou a sua coligação à incoerência. De forma desumana – e infrutífera – ela tentou marcar pontos à direita na imigração, acusando Trump de dedicação insuficiente à construção do muro. As suas desastradas performances de simpatia para com os palestinianos acompanharam um evidente compromisso de seguir Benjamin Netanyahu numa guerra regional. A campanha de Harris apresentou um conjunto de políticas, algumas boas, outras más, mas sem partilhar qualquer unidade temática ou visão clara. Ela oferecia quase sempre respostas evasivas a perguntas desafiantes. E adotou uma atitude geralmente aristocrática em vez de demótica, que colocou no centro a candidata e os seus amigos e aliados da elite, em vez das pessoas que procuravam representar.

Desta forma, Harris repetiu não só os erros de Hillary Clinton, mas muitos dos mesmos que ela própria cometeu na sua infeliz campanha presidencial de 2019, que oportunisticamente se virou para a esquerda e não para a direita, mas com igual falta de sinceridade e incoerência. Quem se lembra do maior momento dessa campanha, quando atacou Biden pela sua oposição ao busing [n.t. transporte de estudantes para as escolas dentro ou fora dos seus distritos escolares, como forma de retificação da segregação racial] e o que isso teria implicado para uma versão mais jovem de si mesma, apenas para revelar, quando questionada, que também se opunha ao busing? Ou quando ela apoiou o Medicare for All, levantando a mão num debate a favor da ideia da abolição dos seguros privados, para mais tarde afirmar que não tinha compreendido a questão?

Os eleitores, então como agora, consideraram-na vazia e ininteligível, uma política de puro artifício, aparentemente sem profundidade ideológica que pudesse extrair e exteriorizar. Muitas vezes dava a impressão de ser uma aluna apanhada sem ter feito os trabalhos de casa, tentando descobrir o que deveria dizer, em vez de expressar qualquer posição subjacente e decidida. Até o direito ao aborto, a sua questão mais forte, parecia por vezes um apoio retórico, dada a sua própria inação e a do seu partido nos anos anteriores a Dobbs. Quantas vezes antes os Democratas prometeram institucionalizar e expandir as proteções de Roe [n.t. decisão so Supremo Tribunal de 1973 que decidiu que a Constituição dos Estados Unidos deveria proteger a liberdade individual das mulheres grávidas e de garantir-lhes a opção de fazer um aborto sem alguma restrição governamental] para depois abandonarem o assunto depois de novembro?

Tal como em 2016, os apoiantes de Harris recorreram ao racismo e ao sexismo da sociedade americana como explicação para a derrota. Sem dúvida, estes são obstáculos enormes, mas não são suficientes como explicação abrangente. No que diz respeito à vitória nas eleições, Barack Obama ultrapassou o primeiro obstáculo, e o significado decisivo do racismo é posto em dúvida pelo apelo rapidamente crescente de Trump junto dos eleitores de cor. Muitas sociedades que não pareceriam menos misóginas e patriarcais elegeram mulheres como líderes nacionais. O mais importante, porém, é que não se trata de fenómenos estáticos. Trump mobiliza estas forças; a tarefa do seu adversário é desmobilizá-los e derrotá-los. Uma campanha bem sucedida baseia-se no material da sociedade existente e reúne-o num retrato do presente e numa visão do futuro: não reflete simplesmente factos congelados da opinião pública e do bom senso, mas reorganiza-os e, em última análise, produz novas formas. O racismo e a misoginia intensificaram-se notavelmente nos últimos anos devido aos talentos prodigiosos de Trump nesta área.

A culpa pela catástrofe de Harris, porém, vai muito além da própria candidata. Biden merece a parte de leão, pelo narcisismo ultrajante que o levou a permanecer na corrida durante a primeira metade de 2024, evitando uma primária competitiva que poderia ter excluído Harris como fez em 2019, ou pelo menos pressionando-a a articular uma opinião política mais coerente. Pior ainda foi a hesitação da administração Biden sobre se procurava uma restauração ou aventurar-se para um novo estilo de governação. Vergonhosamente, do ponto de vista da esquerda americana, Biden defendeu a ideia de que a sociedade americana precisava de regressar ao seu estado natural de decência e rejeitou expressamente a necessidade de uma “mudança fundamental”. O fenómeno Trump era considerado uma poluição essencialmente exterior num corpo político saudável. Era uma interpretação que fazia eco da rejeição da responsabilidade em 2016: a culpa era de Bernie Sanders, da a Rússia, dos movimentos sociais progressistas e seus excessos retóricos, de todos menos da liderança Democrata.

Após a sua vitória em 2020, assegurada pelas manobras de Obama e Jim Clyburn, Biden pareceu registar que era necessário enfrentar um conjunto mais estrutural de problemas. Para este efeito, absorveu alguma da energia e das ideias das campanhas de Sanders e Elizabeth Warren, contra as quais se tinha anteriormente posicionado apresentando-se como sendo a alternativa sensata. E a sua administração fez uma tentativa, na primeira metade, de alargar o Estado-providência dos EUA de uma forma que teria representado um esforço real para abordar as fontes materiais do fenómeno Trump. Isto, porém, foi muito pouco e muito tarde. Ao suprimir o desafio da esquerda nas primárias de 2016 e 2020, os Democratas isolaram-se da base popular que se poderia ter unido a esta causa e que lhe poderia ter oferecido um mandato claro. Na falta de margem legislativa, tentaram negociar para lá chegar. O que obtiveram foi mais do que nada, mas nem de longe nem de perto foi suficiente.

Em meados do seu mandato, Biden tornou-se um presidente de austeridade de facto, supervisando o expirar das expansões do Estado de bem-estar social, incluindo não apenas a perda do crédito fiscal infantil e do alívio monetário temporário, mas a redução do SNAP [Programa de Assistência Nutrivcional Suplementar] e a retirada de milhões do Medicaid, tudo durante um período de controlo democrata unificado [Câmara dos Representantes, Senado e Presidência]. Gradualmente, Biden abandonou em grande parte a exigência de uma política social progressista e concentrou as suas discussões orçamentais no défice – uma repetição da mesma postura que condenou a administração Obama e criou a oportunidade para a ascensão de Trump em primeiro lugar. Simbolizando esta capitulação, Biden decidiu ceder aos desejos empresariais de que pôr um fim à política da pandemia como uma questão de política pública – particularmente uma política pública que aumentasse o poder dos trabalhadores no mercado de trabalho – mesmo que isto continuasse a destruir a vida dos americanos. Em lugar das ambições progressistas anteriores, Biden ofereceu um nacionalismo económico mais ou menos copiado do de Trump e um novo liberalismo da Guerra Fria. Imagine-se se, em vez do Segundo New Deal, Franklin D. Roosevelt tivesse procurado a reeleição fazendo campanha com base na lacuna de armamento, como John F. Kennedy faria mais tarde.

Pior de tudo, Biden continuou a aprovar tudo o que Netanyahu desejava fazer, permitindo um genocídio em Gaza e a escalada de uma guerra multifacetada. Qualquer que fosse o conceito que Biden alguma vez tivesse tido sobre o significado da sua própria eleição na luta global pela democracia e pelo Estado de direito, ele reduziu-o a uma zombaria grotesca depois de 7 de Outubro [de 2023]. (Mais uma vez, imagine-se que Roosevelt não só se tinha mantido vergonhosamente neutro na Guerra Civil de Espanha, como também tinha dado a Franco as bombas para lançar sobre Guernica.) Embora seja verdade, sem dúvida, que relativamente poucos americanos indicaram a Palestina como a sua principal questão eleitoral nas sondagens à boca das urnas, o sentimento de uma política externa hipócrita e irresponsável que conduz ao desastre global deve ter feito pouco para acalmar o sentido preciso dos jovens eleitores de que a América é, como bem resumiu um investigador, “um império moribundo liderado por pessoas más” .Se Harris estava, como ela repetia constantemente, a trabalhar incansavelmente por um cessar-fogo, onde raio é que ela estava? A insistência só podia ser percebida como uma confissão de incompetência ou uma mentira – o que, de facto, era, como os porta-vozes da administração ocasionalmente reconheciam implicitamente. E que apelo à proteção da democracia e ao fim do fascismo poderia soar verdadeiro, vindo de um pódio salpicado com o sangue de milhares de crianças? Testemunhando a teimosia de Biden, a recusa inexplicável de Harris até mesmo em permitir que um palestiniano-americano simbólico fizesse um discurso pré-avaliado na convenção, e a escolha da campanha de enviar Ritchie Torres, o congressista favorito da AIPAC [Comité Americano de Assuntos Públicos de Israel, um lóbi pró-israelita], para fazer campanha em Michigan, era necessário perguntar se estes políticos se importavam se ganhavam ou perdiam. Alternaram entre apelidar os Republicanos de ameaça mortal e prometer incluí-los no gabinete; interromperam os seus avisos sobre a invasão fascista apenas para dar cobertura ao regime de extrema-direita e racista mais agressivo militarmente do mundo.

Os Democratas, por outras palavras, falharam totalmente em definir os termos do debate ideológico em todo e qualquer aspeto. A sua atitude defensiva e hipocrisia serviram apenas para encorajar Trump enquanto desmobilizavam os seus próprios eleitores, a quem sem dúvida irão agora culpar – como se milhões de indivíduos desagregados e desorganizados pudessem constituir um agente culpado da mesma forma que a liderança de um partido político. Mas a culpa é dos dirigentes do partido, e são pouco numerosos aqueles que, ao centro, se tenham preocupado ou sequer parecessem dispostos a refletir sobre uma década de catástrofe. Alguém que se queixou de que a rebelião George Floyd em 2020 [assassinado em Maio de 2020 por um polícia branco em Minneapolis] custaria votos aos Democratas devido ao extremismo das exigências associadas, considerou a conclusão empírica de que o oposto se revelou verdadeiro? Que a vitória estreita de Biden em 2020 foi provavelmente atribuída a protestos ruidosos que os liberais desejavam que fossem mais silenciosos e calmos? Alguém reconheceu a popularidade única de Sanders junto dos eleitores latino-americanos, um eleitorado outrora central que os Democratas estão agora prestes a perder completamente?

As patologias dos Democratas, porém, não são, num certo sentido, o resultado de erros. É o papel estrutural e a composição do partido que produz a sua orientação dúbia e incoerente. É o partido principal do capitalismo neoliberal globalizado e, ao mesmo tempo, pelo menos pela tradição, o partido da classe trabalhadora. À medida que o poder organizado deste último foi sendo eliminado, o compromisso tornou-se um pouco mais aspiracional: Harris arrumou-se notavelmente com a faixa dos eleitores de rendimentos mais ricos. As únicas questões sobre as quais Harris sugeriu um rompimento com Biden diziam respeito a um tratamento mais favorável aos multimilionários que a rodeavam, e os seus conselheiros mais próximos incluíam figuras como David Plouffe, antigo vice-presidente sénior da Uber, e o cunhado de Harris, Tony West, ex-diretor jurídico da Uber, que a incentivou com sucesso a abandonar o populismo da era Biden e a cultivar relações com aliados empresariais.

O partido sob Biden orientou-se para o nacionalismo económico porque não tinha um programa substantivo ou convincente de redistribuição progressiva após o fracasso do Build Back Better, e não conseguiu encontrar um que fosse aceitável para a sua ala empresarial. Como observou Bharat Ramamurti, antigo vice-diretor do Conselho Económico Nacional, após a eleição: “Gostaria que tivéssemos promulgado os elementos sobre habitação, assistência e crédito fiscal infantil no Build Back Better, para que tivéssemos benefícios concretos de custo de vida para se poder continuar. As pessoas devem refletir sobre qual a parte do Partido Democrata que nos negou estes itens da agenda”. Em vez disso, Biden roubou a ideia de Trump: sair do neoliberalismo e pôr as fábricas de armas a funcionar. Biden sustentou a massiva expansão das despesas militares de Trump, com a segurança nacional a fornecer a principal justificação ideológica para o pleno emprego e para a prossecução de objetivos sociais progressistas, como foi feito na Guerra Fria.

Por sua vez, a escalada do confronto geopolítico e geoeconómico com a China forneceu a lógica do apoio inabalável dos EUA às guerras de Netanyahu: a renovada competição entre grandes potências intensificou o imperativo de consolidação de uma região estratégica crítica sob a hegemonia dos EUA. Continuando mais uma vez uma fórmula de política externa desenvolvida por Trump, a estratégia de Biden tem sido a de prosseguir este objetivo, resolvendo as tensões persistentes entre Israel e os Estados árabes alinhados com os EUA (mais significativamente a Arábia Saudita, com os Estados do Golfo e Marrocos sob os cuidados de Trump e o Egito desde há décadas em Camp David). A concretização desta resolução exige o fim do movimento nacional palestiniano, o principal obstáculo a tal consolidação. A ideia de um Estado palestiniano Potemkin poderá regressar algum dia, mas apenas depois de um castigo severo e de uma redução numérica acentuada do povo palestiniano.

A desmobilização do eleitorado Democrata é, portanto, o produto do carácter contraditório do partido a mais do que um nível. A responsabilização dos Democratas perante círculos eleitorais antagónicos produz tanta incoerência retórica – o que defende este partido? – para além da auto-anulação programática. Os defensores do Estado de direito interno e da ordem internacional baseada em regras, envolveram-se numa série espetacular de violações do direito interno e internacional. Prometendo um novo New Deal, admoestaram os eleitores de que deviam estar gratos pelo bom desempenho económico que estavam a ter. Cada passo dado pelos decisores políticos do partido na prossecução de um objetivo impõe um limite noutra direção. Foi através desta dinâmica que uma década de (apropriada) histeria anti-Trump levou primeiro à adoção de partes do programa de Trump pelos Democratas e, finalmente, à sua reinstalação como presidente com novos máximos de popularidade junto da opinião pública. Nada melhor do que a coisa real.

No nosso século, a política americana tem explodido abertamente devido às crises reverberantes do neoliberalismo e da globalização capitalista. Neoliberalismo e globalização apropriaram-se da nossa sociedade e da nossa política em quatro formas principais: política imperial e guerra sem fim; desindustrialização e esvaziamento da sociedade americana; o surgimento de uma classe bilionária inchada, predatória e cada vez mais insana, obcecada pela eugenia e a imortalidade; e a crise climática, agora uma fonte de desastres naturais regulares e fluxos crescentes de refugiados. Em cada momento, os Democratas tentaram restaurar: gerir a crise, realizar o resgate, juntar as coisas e tentar voltar ao normal. É a forma dessa orientação, assim como as questões substantivas de cultura, raça e género, que me parece a razão fundamental pela qual os Democratas são frequentemente vistos mais como uma força de inibição e não de ação por muitos eleitores. E é contra esta política de contenção que a obscenidade de Trump passa a parecer uma libertação para muitos.

Embora à superfície o MAGA seja nostálgico, o movimento de Trump tem sido historicamente muito criador – criando novos modos de expressão política, abrindo novas arenas de formulação de políticas: deportação em massa, ataques anti-trans, ceticismo sobre vacinas. É por isso que é tão destrutivo.

Pelo contrário, é a liderança Democrata que está envolvida num projeto retrógrado. Só através do restauracionismo é que o partido pode equilibrar os seus compromissos concorrentes de justiça social e económica e de crescimento capitalista. A liderança Democrata procura recuperar um passado perdido em que estes objetivos se acomodavam mutuamente e suprimir qualquer visão positiva do futuro que possa exigir a resolução de tensões internas.

Basta considerar a forma como Biden e Harris defenderam reformas que todos sabem que não podem ser realizadas sem a abolição do obstrucionismo [n.t. procedimento político praticado no Senado dos EUA que consiste em prolongar o debate sobre propostas legislativas por forma a impedir a sua aprovação] e a reforma do sistema judicial federal, que ambos hesitam em enfrentar, entretendo de forma ocasional reformas estreitamente adaptadas e auto-limitadas. Um tal esforço, se empreendido de forma mais geral, exigiria uma crítica mais ampla da sociedade americana e das instituições antidemocráticas que a definem — uma crítica em desacordo com uma imagem de uma América que “já é grande.” Apesar dos seus vários objetivos políticos distintos, os Democratas mostram-se incapazes de contar uma história clara sobre o que esses objetivos significam, como eles se encaixam e como podemos chegar até lá; eles só podem insistir que não são Trump — e mesmo isso deixou de ser totalmente verdade.

Há várias décadas, considerando o triunfo do thatcherismo, Stuart Hall observou um problema muito semelhante que surgiu para o Partido Trabalhista em face do emergente “populismo autoritário da Grã-Bretanha.” Uma vez que o Partido Trabalhista, até ao presente, não conseguiu resolvê-lo, o caso merece ser seriamente considerado. (Em particular, Harris retirou conselhos significativos do Partido Trabalhista, que recentemente ganhou uma eleição esmagadoramente numa plataforma vazia, apesar da diminuição da quantidade de votos, graças puramente ao colapso do seu opositor.) Cito por extenso (in Gramsci and Us, 10/02/2017, original aqui):

“Eu simplesmente não acho, por exemplo, que a atual liderança trabalhista entenda que o seu destino político depende de se pode ou não pode construir uma política, nos próximos 20 anos, que seja capaz de se assumir, não face a um, mas a uma diversidade de diferentes pontos de antagonismos na sociedade; unificando-os, nas suas diferenças, dentro de um projeto comum. Não creio que tenham compreendido que a capacidade do Partido Trabalhista em crescer como uma força política depende absolutamente da sua capacidade de se inspirar nas energias populares de movimentos muito diferentes; movimentos fora do partido que ele não poderia colocar em jogo, e que, portanto, não pode administrar. Mantém uma conceção inteiramente burocrática da política. Se a palavra não sai das bocas da liderança trabalhista, deve haver algo de subversivo nela. Se a política estimula as pessoas a desenvolver novas exigências, isso é um sinal certo de que os nativos estão a ficar inquietos. Isso significa que os militantes devem expulsar ou depor alguns dos seus dirigentes. Os militantes devem voltar-se para aquela ficção, que é o ‘tradicional eleitor trabalhista’: para aquela noção pacificada e fabiana da política, onde as massas sequestram os especialistas para o poder, e leva estes mesmos especialistas a fazerem algo pelas massas: mais tarde… muito mais tarde. A conceção hidráulica da política.

Essa conceção burocrática da política nada tem a ver com a mobilização de uma variedade de forças populares. Não tem nenhuma conceção de como as pessoas se tornam poderosas fazendo algo: primeiro sobre os seus problemas imediatos; depois, o poder expande as suas capacidades e ambições políticas, para que elas comecem a pensar novamente sobre como seria governar o mundo… A sua política deixou de ter uma conexão com esta mais moderna de todas as resoluções: o aprofundamento da vida democrática.

Sem o aprofundamento da participação popular na vida nacional-cultural, as pessoas comuns não têm qualquer experiência de realmente levarem a cabo seja o que for. Precisamos de readquirir a noção de que política é sobre expandir as capacidades populares, as capacidades das pessoas comuns. E para fazer isso, o próprio socialismo tem que falar com as pessoas que ele quer que ganhem capacidade, falar com palavras que também lhes pertencem como pessoas comuns do final do século 20.

O leitor deve ter notado que eu não estou a falar sobre se o Partido Trabalhista tem a sua política certa sobre esta ou aquela questão. Estou a falar de toda uma outra conceção da política: a capacidade de captar na nossa imaginação política as enormes escolhas históricas que estão perante o povo britânico, hoje. Estou a falar sobre novas conceções da própria nação: se o leitor acredita que a Grã-Bretanha pode avançar para o próximo século com uma conceção do que é ser ‘inglês’, que foi inteiramente constituída a partir da longa e desastrosa marcha imperialista da Grã-Bretanha através da terra. Se o leitor realmente pensa isso, então não entendeu a profunda transformação cultural necessária para refazer os ingleses. Esse tipo de transformação cultural é precisamente o que o socialismo representa hoje.”

Trump refez os americanos, e para derrotar o trumpismo é preciso nada mais nada menos que a esquerda faça o mesmo, refazê-los também. Infelizmente, não há razão para pensar que os Democratas são capazes de realizar essa tarefa, embora as possibilidades de o fazer por qualquer outro meio sejam igualmente obscuras.

A contradição entre os fins substantivos do liberalismo e os seus meios formais não é um problema novo. Pode-se argumentar — eu argumentaria — que praticamente todos os momentos históricos de triunfo liberal substantivo foram possíveis graças a movimentos sociais que se impuseram a partir de baixo, muitas vezes sobre o protesto de formuladores de políticas e pensadores liberais, registando a sua objeção aos meios, apesar do seu apoio abstrato aos fins. O sufrágio universal dos adultos, o Estado Providência, dito também Estado de Bem-Estar, a igualdade de proteção perante a lei – tal é a história de cada um deles.

No nosso tempo, há forças liberais institucionais entrincheiradas, não apenas na política formal, mas nas universidades, na imprensa, no sistema jurídico, no setor sem fins lucrativos e até mesmo no mundo empresarial, que entoam a ameaça que o Trumpismo representa para a democracia e o estado de direito, mas trabalham todos os dias para derrotar os seus próprios adversários internos de esquerda: protestos estudantis, lutas dos trabalhadores, “excessos de esquerda não convencional, ditos woke” [1]. Quando eles invadem acampamentos (estudantes ou dos sem-abrigo) ou perseguem os sindicatos, eles estão a trabalhar para Trump, refazendo os americanos de maneiras autoritárias. O fenómeno que Trump representa só pode ser derrotado quando os institucionalistas liberais deixarem de tentar reprimir a esquerda insurgente em nome da proteção da democracia e, em vez disso, olharem para a esquerda como um aliado e uma fonte de força. Digo isto não porque as ideias da esquerda já representam uma maioria silenciosa reprimida – uma ilusão fantasiosa e auto-lisonjeira – mas porque é apenas a esquerda que tem uma visão coerente a oferecer contra as ideias da direita.

Os liberais têm tentado desde há uma década livrar o país de Trump, condenando-o ao ostracismo como uma aberração grotesca. Eles perseguiram isso por meio de investigações legais, mas também por meio de elaboradas e repetidas demonstrações de consenso bipartidário da elite contra ele. Só o tornou mais forte. O trumpismo não pode ser atacado com base em estratagemas ou habilidades porque o trumpismo fala a forças reais da sociedade americana – racismo, misoginia, frustração de classe – e oferece uma expressão obscena e satisfatória aos seus destinatários. O trumpismo só pode ser derrotada pelo confronto direto – não apenas com Trump, mas sim contra o que ele representa e contra a reconstrução da América que ele prevê.

Chamar ao seu movimento de fascismo carrega essa implicação inevitável, o que torna ainda mais irritante a falta de vontade por tal confronto por parte de tantos que aplicam essa etiqueta. “Não é preciso muita coragem para murmurar uma queixa geral, numa parte do mundo onde ainda se pode reclamar, seja sobre a maldade do mundo seja sobre o triunfo da barbárie, ou para gritar destemidamente que a vitória do espírito humano está assegurada,” escreveu Brecht. “Há muitos que fingem que os canhões são apontados para eles quando na realidade eles são o alvo apenas de óculos de ópera.”

O obstáculo agora apresentado pelo liberalismo é especialmente frustrante porque a coligação de Trump sofre da sua própria contradição interna, de forma semelhante com a dos Democratas. J.D. Vance e Elon Musk parecem querer coisas bem diferentes: Vance elogia Lina Khan, por exemplo, e parece oferecer uma visão de chauvinismo assistencialista; Musk propõe demitir Khan, cortar radicalmente no Estado e deliberadamente induzir miséria económica. Trump, é claro, redistribuirá a riqueza e o poder de baixo para cima, em nome da autonomização popular e da raiva da classe trabalhadora. Deve ser difícil para ele conseguir isso, manter essas forças em equilíbrio. No entanto, os Democratas configuraram a sua própria coligação de tal forma que não podem credivelmente ativar e obter alavancagem dessa contradição; assim como não podem falar da associação de Trump durante anos com Jeffrey Epstein, presumivelmente porque isso chamaria a atenção para Bill Clinton também.

Se a solução fosse tão simples como um ataque frontal, formando um terceiro partido, já o teríamos conseguido. Uma coisa que é clara, no entanto, é que o apetite das instituições liberais para se juntar à “resistência” diminuiu muito em relação a oito anos atrás. Em certo sentido, isso é assustador: a resistência real será menor, mais isolada e exposta, com poderosos atores da nossa sociedade tacitamente a desertar para a causa fascista. Na verdade, eles já começaram a fazê-lo, validando a política de Trump enquanto falam alto e retoricamente, que foi exatamente como Trump ganhou novamente. As empresas liberais, a imprensa, as universidades – instituições que deploram Trump nominalmente – têm-se deslocado nos últimos anos para realizar elementos do seu programa em miniatura, aparentemente sem qualquer coerção.

Por outro lado, o nosso papel na defesa dos valores outrora reivindicados pelos nossos empregadores, representantes e porta-vozes autonomeados tornar-se-á mais difícil de confundir ou evitar. Como Brecht também observou, “aqueles que são contra o fascismo sem ser contra o capitalismo, que lamentam a barbárie que dele decorre, são como pessoas que querem comer a sua carne de vitela sem abater o vitelo. Eles estão dispostos a comer o vitelo, mas não gostam de ver o sangue. Eles ficam facilmente satisfeitos se o talhante lavar as mãos antes de pesar a carne”. Dizer a verdade, pelo contrário, não é, em si mesmo, uma solução, isso é certo, mas é o necessário, e somente possível, primeiro passo.

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