12 de janeiro de 2023

A construção de capacidades estatais para o 3º Governo Lula

As prioridades do governo Lula só podem ser alcançadas repensando e reconstruindo a capacidade do Estado.

Alexandre de Ávila Gomide, Coordenador de Planejamento e Desenvolvimento do IPEA

Ana Celia Castro, Vice coordenadora do INCT de Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento

Estadão
Estadão

Nos históricos discursos de posse no Congresso Nacional e no Parlatório do Planalto em 1º de janeiro de 2023, o presidente Lula explicitou os propósitos de seu governo: a luta contra todas as formas de desigualdade, a erradicação da fome e da extrema pobreza, o combate à mudança climática e a reindustrialização do Brasil. O alcance de tais propósitos não será trivial - os problemas são complexos, sistêmicos e com múltiplas causas. Exigirão para o seu enfrentamento a elaboração de um portfólio de ações em diferentes setores e uma série de iniciativas e inovações tecnológicas, sociais, organizacionais e políticas para a entrega de resultados transformadores para a economia, a sociedade e o meio ambiente.

Por conseguinte, o governo precisará reconstruir e desenvolver novas capacidades, habilidades, competências e instrumentos para elaborar e implementar políticas, projetos e ações em parceria com a sociedade e o setor privado. O Estado é, por excelência, o ator coletivo capaz de conduzir as ações necessárias e de organizar os investimentos públicos e privados catalisadores das transformações nos múltiplos setores da economia e da sociedade. As capacidades estatais e os modelos de gestão não são neutras: eles dependem dos propósitos e objetivos do Estado. Se a promoção do crescimento econômico ambientalmente e socialmente sustentáveis e o fortalecimento e consolidação de nossa democracia são os grandes objetivos do governo, as capacidades estatais e os modelos de gestão devem ser reconstruídos e renovados para alcançar tais fins.

De tal modo, torna-se imperativa a transformação da visão do papel do Estado e da gestão pública. Como afirma Mariana Mazzucato, a função do Estado não é apenas garantir contratos e corrigir falhas de mercados - ele pode criar ou estruturar novos, em parceria com o setor privado. Da mesma maneira, como mostrou Rainer Kattel e coautores, a burocracia pública não é intrinsecamente uma instituição rígida, rotineira e lenta - ela pode ser dinâmica e atuar como agente de transformação e inovação.

Por muito tempo fomos impregnados por uma visão negativa da ação do Estado, da política e dos servidores públicos. A chamada teoria da escolha pública, que argumentava que a intervenção governamental poderia agravar em vez de melhorar as falhas de mercado, influenciou o ideário da nova gestão pública, que prega reformas administrativas abrangentes, visando trazer modelos e práticas de gestão das empresas privadas para a administração pública. A pandemia do Covid-19 mostrou os problemas dos Estados que contam apenas com terceirizados para ofertar serviços públicos como também o valor de um serviço público profissional e estável. O pacote de investimentos do governo Biden trouxe de volta o Estado, por meio de vultosos investimentos em infraestrutura que privilegiam o desenvolvimento científico e tecnológico. Recuperou, entre outras medidas, os instrumentos de política industrial - como compras públicas - visando devolver à indústria norte-americana o seu protagonismo perdido para o Leste Asiático.

Existe uma heterogeneidade considerável nas capacidades do setor público brasileiro, sobretudo dentro do governo federal. Alguns setores de políticas têm burocracias relativamente profissionalizadas e eficientes, notáveis na inovação de processos para o setor público e serviços para a população. Outros ainda enfrentam o desafio de ampliar suas capacidades e capacitações, por falta de uma visão inovadora e de pessoal e expertise insuficientes. Independentemente dessas diferenças, deve-se reconhecer o papel essencial que o investimento para transformar e fortalecer a capacidade do setor público poderá desempenhar no enfrentamento dos desafios sociais neste momento histórico.

Deve-se repensar o papel das organizações e agentes públicos para que sejam atores de transformação. A redução da ineficiência não pode resumir o único propósito da gestão pública. O objetivo deveria ser a criação de valor para a sociedade. Recrutar novos e remunerá-los decentemente, são objetivos necessários, mas não suficientes. É preciso desenvolver senso de propósito e missão, motivá-los para o interesse público, enraizar capacitações para antecipar problemas futuros, além de dotá-los de competências e recursos necessários para inovar na solução de problemas e entregar os objetivos a serem alcançados. Os gestores públicos devem ter autonomia para tomar iniciativa e experimentar soluções inovadoras. Mas, para isso, são necessários novos e diferentes mecanismos de responsabilização que garantam segurança jurídica suficiente para que eles possam experimentar, eventualmente fracassar, corrigir e aprender.

Instrumentos de políticas precisam ser desenvolvidos e fortalecidos, a exemplo das compras públicas. Países de todo o mundo utilizam as compras como uma ferramenta para alcançar objetivos de política pública. Novos instrumentos financeiros para o financiamento de investimentos transformadores precisam ser criados. A digitalização deve focar não só na entrega efetiva de serviços para toda a sociedade, mas também nos métodos de estruturação da ação coletiva para lidar com os problemas públicos. Métodos e técnicas de previsão, prospecção e antecipação de futuros, como também de cenários que preveem tendências e incertezas críticas para o desenho de programas e projetos precisam ser adotados. Os contratos de parcerias entre atores dos setores público e privado devem conter formas de redistribuição de ganhos, para além da distribuição de riscos. Isso pode ser feito através da adoção de condicionalidades, de tecnologias limpas, de melhores condições de trabalho, e na forma de reinvestimento de lucros e benefícios alcançados.

Além disso, é preciso criar e desenvolver mecanismos para coordenar estrategicamente os portfólios de projetos transversais, evitando lacunas e sobreposições conflituosas. No que se refere ao monitoramento e à avaliação de políticas, é preciso utilizar técnicas e critérios que captam adequadamente o impacto dos projetos, suas externalidades positivas e principalmente os transbordamentos dos aspectos qualitativos e transformacionais no longo prazo. Mesmo que um objetivo específico não seja alcançado, a política ainda pode ser bem-sucedida se ela gerar efeitos colaterais positivos para a economia, sociedade ou meio ambiente.

Por fim, mas não menos importante, formas inovadoras de engajamento e envolvimento da sociedade na definição, implementação e avaliação das políticas devem ser criadas. A construção de apoio social para as políticas de governo torna-se imperativa nestes tempos de polarização e radicalização política. As ações do governo devem contar com ampla legitimidade e aceitação, por meio da construção de consensos. Assim, processos transparentes de participação, com a adoção de novas técnicas e tecnologias - inclusive digitais - são imprescindíveis.

Em resumo, além de reconstruir políticas públicas, caberá ao terceiro governo Lula novas formulações para enfrentar os grandes, complexos e urgentes desafios da sociedade brasileira definidos desde o primeiro momento. Tais políticas são transversais e requerem, para serem bem-sucedidas e entregarem resultados substantivos, o envolvimento e a cooperação entre atores públicos e privados. Elas enfrentarão a oposição ferrenha de setores e grupos antidemocráticos. Demandam, portanto, o desenvolvimento de novas capacidades estatais para implementá-las, o desenho de uma arquitetura financeira sustentável e a construção de coalizões sociopolíticas de suporte.

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