12 de janeiro de 2023

O assalto a Brasília

Algumas reflexões sobre a revolta protagonizada neste domingo pela extrema direita brasileira, formada pelo setor mais radical do bolsonarismo.

Leonardo Frieiro


Destruição no Senado por ocupação de manifestantes de Bolsonaro, em Brasília, no dia 8 de janeiro. (Marcelo Camargo, via Wikimedia Commons)

Na tarde de domingo, alguns milhares de manifestantes vestidos com camisas da seleção brasileira invadiram os prédios onde funcionam os três poderes do governo: o palácio presidencial do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal de Justiça. O objetivo dos participantes pode ter sido uma armação para gerar uma insurreição que quebrasse a ordem pública, obrigando as Forças Armadas a intervir, que nesse ato deslocasse o atual governo de Lula da Silva, e que acabaria por devolver o poder para Jair Bolsonaro.

Se assim for, já que neste ponto ainda é difícil saber, o movimento altamente pretensioso não saiu conforme o planejado. Apesar de os manifestantes terem conseguido entrar nos prédios, diante da resistência zero das forças de segurança presentes, não conseguiram seu objetivo: cinco horas depois as forças de segurança retomaram o controle dos prédios, prendendo mais de 1.200 manifestantes e Lula decretou a intervenção federal de Brasília, governada por Bolsonaro Ibaneis Rocha, ao mesmo tempo em que foi expedido mandado de prisão contra Anderson Torres, secretário de Segurança de Brasília, que está nos Estados Unidos e é suspeito de ter visitado Orlando, local onde Jair Bolsonaro se encontra desde sua fuga do Brasil. Rocha demitiu Torres, mas não pôde deixar de se encontrar na posição mais embaraçosa que se possa imaginar.

Na manhã desta segunda-feira, enquanto Lula já havia assumido o controle de Brasília, outro grupo de militantes de Bolsonaro tentou bloquear o acesso a São Paulo, cercando também vários prédios militares. Mais uma vez eles falharam e foram despejados.

Dado o que aconteceu, alguns pensamentos rápidos:

1. A derrota eleitoral de Bolsonaro dissolveu o bloco de direita que ele liderava, e a autonomização da extrema direita é uma de suas consequências.

O bolsonarismo surgiu em uma situação excepcional na política brasileira: a queda dos partidos tradicionais desde a transição democrática e a prisão e proscrição de Lula. Sua chegada fugaz à presidência permitiu que a extrema direita no Brasil, marginal antes de Bolsonaro chegar ao poder, se tornasse a identidade política hegemônica da direita. Sua derrota eleitoral, e principalmente a falta de apoio por desconsiderar o resultado das eleições, gerou uma ruptura em sua aliança política: a extrema direita (que não reconhece a soberania popular, nem valoriza o exercício da democracia e promove uma mudança de regime autoritário) autonomizou-se da direita radical (os setores que entendem a derrota de Bolsonaro como uma possibilidade válida e que tentarão reconstruir sua proposta política para torná-la majoritária no menor tempo possível, segundo as regras básicas da competição democrática).

Com a investida da extrema-direita já derrotada, o cenário mais provável é que se amplie o fosso entre as duas formas contemporâneas de ultradireitismo, algo que já podemos perceber nas piruetas políticas dos governadores que se elegeram como bolsonaristas, especialmente em Brasília.

Por outro lado, a dificuldade de Bolsonaro em se pronunciar tanto sobre o ataque quanto sobre o resultado das eleições quando foi expulso da presidência, aponta para a indecisão do ex-presidente do Brasil em optar por uma das duas "almas" da extrema direita.

2. A extrema direita, ou seja, o setor mais radical do bolsonarismo (e não sua massa total de apoiadores e eleitores), só pode atuar de forma performativa.

Uma das questões centrais sobre o que aconteceu no domingo é se o ataque foi espontâneo ou orquestrado. O momento do ataque e a suposta colaboração política das autoridades encarregadas de administrar a segurança dos prédios indicam que houve algum grau de coordenação entre os manifestantes e alguma autoridade política ligada ao bolsonarismo. Por outro lado, a presença do secretário de Segurança de Brasília nos Estados Unidos, a presença de Bolsonaro em Orlando e as declarações de Steve Bannon na última reunião do CPAC no México, onde ele instou Bolsonaro a ignorar o resultado das eleições e apoiadores de Bolsonaro a resistirem nas ruas, aponta que há uma clara ligação entre o exílio do clã Bolsonaro nos Estados Unidos, os circuitos de extrema-direita nos Estados Unidos e o que aconteceu no domingo no Brasil.

Mas, por outro lado, a aposta é estranha. Vale lembrar que quando estouraram as manifestações de Bolsonaro após a derrota eleitoral, foi o próprio ex-vice-presidente do Brasil, general da reserva Hamilton Mourão, quem postou via Twitter que era impossível o golpe de Estado ser dado pelo exército devido à frágil situação internacional em que isso deixaria o Brasil. Claro, Mourão também sabia que sem o apoio dos Estados Unidos - que foi um dos primeiros países a reconhecer o resultado eleitoral a favor de Lula - era impossível sequer tentar um golpe. Hoje, com o governo Lula já no cargo, as chances do Exército de interromper um mandato presidencial reconhecido internacionalmente (e a enorme popularidade de que Lula goza) são praticamente impossíveis.

Com isso queremos dizer que, se o ataque foi arquitetado pelo clã Bolsonaro e pelos políticos que lhe são fiéis, surpreende a falta de cálculo, previsão e perspectiva. Hoje Bolsonaro se encontra em uma situação muito mais frágil do que ontem, pois uma novo fracasso pesa sobre suas costas, seja ele ou não o autor intelectual do assalto a Brasília. De qualquer forma, o que aconteceu no domingo mostra principalmente os limites políticos, ideológicos e intelectuais da extrema direita, quanto de suas lideranças políticas que (excepcionalmente) chegaram a cargos governamentais graças à explosão eleitoral do bolsonarismo.

Por fim, os manifestantes que invadiram o Planalto ergueram uma bandeira do Império Brasileiro, estranha semelhança com a célula de extrema-direita alemã que tentou fazer o mesmo no Reichstag com a bandeira imperial prussiana. Não é uma surpresa, pois sabemos que a extrema direita tenta rejeitar todos os princípios modernos de soberania popular e autogoverno do povo, mas é uma coincidência marcante, também por sua inutilidade (nem no Brasil, nem em Alemanha existe alguma possibilidade de retorno a qualquer fantasia imperial).

3. O peso do bolsonarismo nas forças armadas e de segurança é o verdadeiro problema com o qual Lula terá de lidar.

A base de apoio mais forte para a extrema-direita contemporânea está frequentemente nas forças armadas e de segurança. Acontece com Trump nos Estados Unidos, com o Vox no estado espanhol, e acontece com o caso de Bolsonaro. Mesmo assim, a dinâmica dessa relação entre as Forças Armadas e a extrema-direita não é linear.

No início de seu governo, Bolsonaro fez todos os esforços para partidarizar as Forças Armadas e para se tornar o líder político (e civil) do exército. Para tanto, encheu a administração pública com os militares. Antes de Bolsonaro, apenas um oficial era militar de profissão, quando Bolsonaro saiu eram 84. Na Saúde, ministério que aprovou o uso de medicamentos não testados contra a COVID-19, a presença de militares aumentou quase 500%.

Mas isso não funcionou muito bem. Quatro meses depois de assumir a presidência, Bolsonaro (e principalmente seus filhos) entrou em conflito com o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, o militar de maior prestígio no Brasil e reconhecido internacionalmente depois de ter servido como chefe da Missão de Estabilização das Nações no Haiti em 2007 e como comandante das tropas das Nações Unidas que intervieram na República Democrática do Congo em 2013.

O general Santos Cruz havia sido convocado como secretário de Governo, mas perdeu a confiança do clã Bolsonaro quando o astrólogo Olavo de Carvalho, e o mais importante intelectual de extrema direita do Brasil até sua morte, o considerou muito centrista (ou não muito de direita). Bolsonaro o demitiu junto com outros militares de algum prestígio e ideologicamente próximos a ele.

De forma um tanto esquemática, poderíamos dizer que à medida que o governo Bolsonaro avançava, sua relação com o alto comando das Forças Armadas se deteriorava. Isso chegou ao ponto absurdo de Steve Bannon (provavelmente em coalizão com os filhos de Bolsonaro) declarar em 2019 que o vice-presidente Mourão deveria renunciar e virar adversário. Por outro lado, Bolsonaro também tratou de manter os gastos militares fora das políticas de ajuste neoliberal, então a relação não é simples.

Por outro lado, se é possível traçar a relação de Bolsonaro com o alto comando militar, é muito mais difícil fazer o mesmo com o restante das forças de segurança, principalmente a polícia. Se olharmos para outros casos, lembremos que foi a polícia, e não o exército, que deu a Recep Tayyip Erdoğan o apoio necessário na Turquia para resistir a uma tentativa de golpe que lhe permitiu virar para a extrema direita, permitindo que o Partido do Movimento Nacionalista e a organização de extrema-direita Los Lobos Grises entrassem no governo.

Por fim, a camaradagem demonstrada pelos policiais militares durante o assalto a Brasília, onde tiraram fotos e conversaram com os manifestantes de Bolsonaro, alerta para a capilaridade do apoio a Bolsonaro entre as tropas. A nomeação de Flávio Dino como ministro da Justiça e Segurança, do Partido Socialista Brasileiro, pode apertar ainda mais a corda, embora uma agenda progressista em matéria de segurança e de formação das tropas também pareça ser o único caminho possível. Não vai ser fácil.

4. O fracasso da extrema direita no Brasil permite pensar no real peso do bolsonarismo na sociedade brasileira e colocar em perspectiva a excepicional última eleição de Bolsonaro.

As eleições mostraram que o bolsonarismo é a identidade política hegemônica da direita no Brasil. Agora, isso deve ser compensado pelo fato de que a incorporação da centro-direita à coalizão de Lula deixou o antipetismo com apenas uma opção eleitoral. Sem outra opção, se entendermos que as demais candidaturas foram apenas testemunhais (e a maior parte de seu objetivo principal era negociar com Lula no último momento, em melhor posição), Bolsonaro concentrou uma base bastante ampla de eleitores que concordou em sua oposição ao retorno de Lula ao poder.

Isso não quer dizer que Bolsonaro não tenha um núcleo importante de apoiadores que se situam na extrema direita e que estão inseridos na sociedade de formas muito variadas, mas também não quer dizer que esse núcleo lidere politicamente os 58 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro no segundo turno eleitoral.

5. A insurreição da extrema direita no Brasil é um acontecimento incômodo para a extrema direita global, que acaba por evidenciar as complexidades e contradições desse universo.

A recepção da extrema direita global ao que aconteceu é mais do que interessante. Giorgia Meloni, que já havia mostrado algumas divergências com alguns de seus companheiros de extrema-direita —como Steve Bannon e Santiago Abascal— condenou o ataque, algo que também fez a ex-candidata do Vox na Andaluzia Maracarena Olona, ​​​​que atualmente está procurando seu lugar no mundo.

Por outro lado, outros receberam a notícia com entusiasmo: Hermann Tertsch, eurodeputado do Vox, e Javier Milei, candidato de extrema-direita às próximas eleições na Argentina, compartilharam no Twitter as postagens de diferentes mídias digitais e influenciadores de extrema-direita comemorando o início de uma revolta popular (depois de algumas horas Milei apagou esses retweets. A conta original que os publicou, La Derecha Diario, também apagou os tweets originais, embora existam prints). Após o fracasso, ambos compartilharam postagens dizendo que a tomada dos prédios foi uma operação de bandeira falsa orquestrada pelo PT. Milei até interagiu com um post que a comparou (um tanto confusamente) ao incêndio do Reichstag.

Para salvar seus membros da vergonha pública, o espaço de extrema-direita Foro Madrid publicou uma declaração que foi compartilhada por grande parte da extrema-direita da região e que os eximi de usar suas próprias palavras.

Uma menção especial vai para José António Kast, líder do Partido Republicano no Chile, que afirma que Lula cometeu fraude eleitoral e não sabe o resultado das eleições, sem dúvida o mais frontal dos líderes de extrema-direita na América Latina. Mesmo assim, publicou um tweet onde diz rejeitar a violência. Por outro lado, nem o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, nem o prefeito de Lima, o ultradireitista Rafael López Aliaga, fizeram qualquer tipo de comentário publicamente.

Por fim, é provável que o fracasso do assalto a Brasília acabe isolando Bolsonaro internacionalmente, que só receberá apoio de Trump, que também não vive seus melhores dias, de Steve Bannon, e de alguma outra figura do universo da extrema direita. Alguns podem querer confraternizar com um golpista, mas poucos vão querer estar perto de um golpista que falhou em seu empreendimento.

6. Temos que evitar o alarmismo.

O objetivo central da extrema direita é gerar um estado de exceção. Ontem, os grupos mais radicais da extrema direita do Brasil protagonizaram uma insurreição atípica, ainda que confusa e até mesmo inclassificável. Se sua tentativa foi demonstrar seu poder de ação e mobilização, o assalto a Brasília foi um fracasso retumbante.

O mesmo é verdade se o objetivo fosse mostrar às forças armadas e de segurança que havia capital civil para sustentar a interrupção da ordem democrática. Se, por outro lado, este é o início de uma luta pela liderança da direita brasileira que toma as ruas como palco de disputa, então ainda é cedo para fazer um balanço.

Se analisarmos o que aconteceu ontem no Brasil com o que aconteceu nos Estados Unidos, a Tomada do Capitólio inaugurou um processo que culminou em um retrocesso do trumpismo nas eleições de meio de mandato, onde se acreditava que as candidaturas de extrema-direita dentro do Partido Republicano conseguiria uma vitória confortável, algo que não aconteceu.

Os limites da extrema direita e sua mais do que provável retirada no caso do Brasil não significam que a extrema direita esteja em decomposição. A direita radical, presente de múltiplas formas na sociedade brasileira, pressionará por sua rearticulação, mesmo que tenha que encontrar lideranças alternativas às do clã Bolsonaro. Muito do futuro próximo do Brasil, e das possibilidades reais da extrema direita voltar ao poder, vai depender de qual é o Lula que voltou ao poder.

Colaborador

Leonardo Frieiro é cientista político (UBA), mestre em Estudos Internacionais (UTDT) e bolsista de doutorado do CONICET na área de teoria política. Fundador da Revista Espartaco.

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