30 de janeiro de 2023

O estilo literário de Karl Marx é uma parte essencial de sua genialidade

Karl Marx não foi apenas um grande pensador, mas também um glorioso estilista de prosa. Seu brilhantismo como escritor era inseparável de sua grandeza como pensador.

Daniel Hartley

Jacobin

Litografía de Karl Marx, 1866. (Hulton Archive / Getty Images)

Resenha de Marx's Literary Style de Ludovico Silva, tradução de Paco Brito Núñez (Verso, 2023)

Karl Marx foi um dos maiores intelectuais do século XIX. Ele também foi um de seus maiores escritores. Como Charles Dickens, Honoré de Balzac e as irmãs Brontë, Marx se destaca entre os picos da prosa do século XIX.

O recém-traduzido Marx's Literary Style de Ludovico Silva, originalmente publicado como El estilo literario de Marx em 1971, mostra indiscutivelmente que os dois aspectos estão relacionados. Marx foi um dos maiores intelectuais porque foi um dos maiores escritores.

Um polímata venezuelano

Traduzido com entusiasmo por Paco Brito Núñez, a cuja iniciativa os leitores anglófonos têm uma dívida de gratidão, Marx's Literary Style é um daqueles livrinhos curtos (apenas 104 páginas) que tem um impacto muito maior do que seu tamanho diminuto. Ele deveria estar ao lado de Writing Degree Zero, de Roland Barthes, Jane Austen de D. A. Miller,, or The Secret of Style, de D. A. Miller, e A Grammar of the Multitude, de Paolo Virno, como um clássico do gênero.

Educado em um colégio jesuíta particular em Caracas, depois em Madri, Paris e Freiburg, Ludovico Silva (1937-1988) foi um polímata venezuelano: poeta, ensaísta, editor e professor de filosofia. Ele desempenhou um papel ativo na frente cultural latino-americana, fundando e editando uma série de jornais de vanguarda.

Silva mantinha distância das organizações oficiais da esquerda revolucionária, embora, como nos informa Alberto Toscano em sua excelente introdução, fosse simpático ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria. Na década de 1970, ele se referiu positivamente às experiências iugoslavas de autogestão e à experiência do poder popular em Matanzas, Cuba.

Sua morte prematura, aos cinquenta e um anos, foi causada por cirrose hepática, levando a um ataque cardíaco. "Existência atormentada? Sim!" relembrou seu irmão mais velho, Héctor, em 2009: "Juntos, viajamos para o reino claro-escuro do álcool". Baudelaire pairava como um padroeiro doente sobre sua vida e obra.

Marxismo e estilo

O estilo literário provou ser um conceito curiosamente produtivo para os críticos marxistas. Para Fredric Jameson, estilo é sinônimo de modernismo: a invenção ex nihilo de tantas linguagens particulares que são o DNA literário de seus criadores — de Marcel Proust e Gertrude Stein a Martin Heidegger e Ernest Hemingway.

Tal é a imbricação do estilo com o modernismo que, para Jameson, torna-se uma categoria de periodização. Ele equipara a era do capitalismo de mercado com o impulso narrativo do realismo e afirma que, quando o capitalismo monopolista se tornou dominante, restringiu o poder da narrativa, liberando as minúcias afetivas capturadas nos elaborados idiomas privados do estilo modernista. Este último, por sua vez, acabou cedendo sob o capitalismo tardio para a falta de estilo do pós-modernismo, no qual apenas o afeto vazio do pastiche sobreviveu.

Para Terry Eagleton, entretanto, o estilo é ao mesmo tempo político e teológico. Ele vê a polêmica como um pré-requisito estilístico para qualquer revolucionário, transpondo a insurgência incipiente do proletariado para o domínio do discurso. Ao mesmo tempo, o estilo é uma forma de sensualidade lingüística: ele deve figurar o mundo, mas nunca esquecer sua própria materialidade, trilhando uma linha tênue entre a objetividade autonegada e o formalismo autocentrado.

Estilo fino, para Eagleton, é sempre um compromisso entre o imediatismo corporal e a abstração conceitual. Em seus primeiros trabalhos (aos quais voltou recentemente), ele viu isso como uma prefiguração católica e sacramental da superação da alienação. O estilo literário provou ser um conceito curiosamente produtivo para os críticos marxistas.

Finalmente, para Raymond Williams, que era muito mais cético em relação à categoria do que Eagleton ou Jameson, o estilo era um modo linguístico de relação social. Ele via as lutas estilísticas de escritores como Thomas Hardy, que procuravam combinar as expressões realistas de homens e mulheres comuns da classe trabalhadora com os modos mais avançados de articulação burguesa, como uma internalização literária da natureza dividida em classes de linguagem na sociedade capitalista em geral. Williams via a batalha pela boa prosa como coextensiva à luta por relações sociais justas, a partir das quais o estilo não poderia ser julgado isoladamente.

O próprio Marx tinha plena consciência da importância do estilo. Em um de seus primeiros artigos jornalísticos, publicado em 1842, ele criticou um decreto de censura prussiano promulgado por Friedrich Wilhelm IV que supostamente “não impediria uma investigação séria e modesta da verdade”. Ao dizer isso, no entanto, o decreto limitou o próprio estilo em que os jornalistas eram legalmente autorizados a escrever.

Marx foi desdenhoso:

A lei permite-me escrever, mas devo escrever num estilo que não é o meu! Posso mostrar meu semblante espiritual, mas primeiro devo colocá-lo nas dobras prescritas! Que homem de honra não corará com essa presunção...?

Marx equipara o estilo de um escritor com sua fisionomia única ou ser espiritual interior. A lei de censura do estado efetivamente exigia que os escritores enroscassem seus rostos literários em um rictus decretado pelo estado, impondo-lhes uma identidade estranha que sufocava seus próprios modos únicos de expressão.

A resposta de Marx informou sua crítica inicial mais geral do estado moderno. Ele via esta última como premissa de uma divisão entre sociedade civil e política: entre “o homem em sua existência sensível e imediata” (burguês) e “o homem como uma pessoa alegórica e moral” (cidadão). Essa divisão, argumentou ele, era a forma política da alienação capitalista.

Dos poemas de amor aos sistemas

Ludovico Silva é um importante colaborador dessa rica veia de estilística materialista. É impossível ler o Estilo Literário de Marx e não emergir com uma compreensão do literário muito diferente daquela com a qual se começou.

Estilo tem sido visto historicamente como “a vestimenta do pensamento” – um suplemento estético ou “acabamento” superficial adicionado ao significado primário comunicado. Como Silva se esforça para mostrar, no entanto, essa visão de estilo de senso comum é inadequada para uma verdadeira compreensão da obra de Marx. O estilo de Marx é um aspecto constitutivo de seu projeto geral de crítica. É também o meio pelo qual ele torna o conceitualmente abstrato perceptível sensivelmente e, nesse sentido, tem uma função pedagógica.

No capítulo 1, Silva localiza as origens do estilo literário maduro de Marx em quatro áreas: suas primeiras (fracassadas) composições poéticas; seu intenso estudo estético e linguístico dos clássicos (latim e grego); sua paixão juvenil pela idealização metafórica; e sua crítica implacável inicial de suas próprias tentativas formativas de escrita literária. Marx percebeu muito rapidamente a inadequação do sentimentalismo romântico abstrato que caracterizou os primeiros poemas de amor que escreveu para Jenny von Westphalen, com quem se casou mais tarde. Conforme ele expressou em uma notável carta a seu pai em 1837: “Tudo o que é real tornou-se nebuloso e o que é nebuloso não tem contorno definido.”

A carta testemunha a conversão ofegante de Marx da poesia para a filosofia hegeliana, mas a trajetória além de Hegel já está prefigurada: Marx percebeu a necessidade de um estilo que adere estreitamente ao real e ao atual, que é concentrado e comprimido, e animadO pela densidade objetiva. Esse é o estilo que caracterizaria o trabalho publicado subsequentemente de Marx e está encapsulado na frase paradoxal de Silva “espírito concreto”.

O capítulo 2 é o mais longo do livro e expõe as características fundamentais do estilo de Marx. Silva argumenta que a obra de Marx deve ser entendida como uma única “arquitetônica”, termo que toma emprestado de Immanuel Kant, que a define como “a arte dos sistemas” [die Kunst der Systeme]. A arquitetônica é comum à ciência e à arte: a ciência tem como premissa o conhecimento sistemático e, para que a expressão se transforme em arte, ela deve, na leitura de Silva, ser regida pela arte dos sistemas.

Silva insiste ao longo do livro em uma divisão nítida na obra de Marx entre aquelas obras que ele preparou cuidadosamente para publicação e aqueles intermináveis manuscritos ou cadernos inacabados que ele nunca publicou. Embora todos esses escritos façam parte da arquitetônica da ciência (um único projeto de crítica da economia política), apenas as obras que Marx retrabalhou para publicação – a mais famosa, o volume 1 de O capital – exemplificam a arte do sistema ao sobrepor a estrutura esquelética. da ciência com a carne vital da expressão metafórica.

A invocação casual de Silva da arquitetônica kantiana levanta uma questão espinhosa: até que ponto podemos dizer que o materialismo histórico de Marx herda noções preexistentes de ciência e sistematicidade do idealismo alemão? Silva passa o assunto em silêncio.

Dialética da expressão e da metáfora

A segunda característica do estilo de Marx é o que Silva chama de “a expressão da dialética” ou “a dialética da expressão”. Ele está se referindo aqui ao uso constante de Marx de quiasmos ou inversões sintáticas nas quais os termos da primeira metade de uma frase são invertidos na segunda: “A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida” (A Ideologia Alemã), ou “ A hipoteca que o camponês tem sobre as posses celestiais garante a hipoteca que o burguês tem sobre as posses camponesas” (The Class Struggles in France, 1850).

É uma figura que encarna o movimento dialético da própria realidade: "O segredo literário por trás de quão 'arredondadas' e impressionantes são tantas frases de Marx", escreve Silva, “é também o segredo por trás de sua concepção dialética da história como luta de classes ou uma luta de opostos”. O estilo de Marx é uma reprodução ou performance mimética dos movimentos reais da história: “A linguagem de Marx é o teatro de sua dialética”.

A terceira e mais importante característica do estilo de Marx é o uso da metáfora. O livro enfoca três dos mais influentes: a (in)famosa metáfora base-superestrutura, a noção de “reflexão” e a religião como uma figura de alienação. Como Aristóteles antes dele, Silva enfatiza a importância cognitiva de tais metáforas, mas também – crucialmente – insiste na distinção necessária que deve ser feita entre metáforas e conhecimento científico teórico.

Em uma série de análises de bravura, ele revela a total inadequação da base-superestrutura e das metáforas de reflexão como base para a teoria científica, mas ainda mantém seu potencial pedagógico. Percebe-se aqui o desprezo de Silva pelas travessuras dogmáticas da obra de Marx nos manuais oficiais do Partido Comunista da época. Seu argumento se aproxima estranhamente do trabalho de Williams, Marxismo e Literatura, publicado apenas seis anos depois, que também desafiou as metáforas base-superestrutura e reflexão.

Williams e Silva concordam que, se seguidas até sua conclusão estritamente lógica, essas metáforas convidam à divisão entre uma base econômica e um reino celestial de ideias precisamente onde Marx procurou expor sua total inter-relação. Não surpreende, portanto, que Silva tenha escolhido como uma de suas epígrafes a frase “linguagem é consciência prática” (de A Ideologia Alemã), que também formou a base da teoria madura de Williams sobre linguagem, literatura e forma.

Ironias da história

O resto do livro revela a conexão sutil entre polêmica, zombaria, ironia e alienação que se repete em toda a escrita de Marx. Wilhelm Liebknecht escreveu certa vez sobre o estilo de Marx que o lembrava das raízes etimológicas da própria palavra: esfaqueamento.”

Marx sabia escrever sujo; ele era o mestre da lâmina de perto. No entanto, Silva também insiste, com razão, que a indignação ardente de Marx andava de mãos dadas com a ironia: “Quantos tentaram imitar o estilo de Marx, apenas para copiar a indignação, esquecendo a ironia!” Assim como a “dialética da expressão” era uma estilização do movimento dialético da realidade, a ironia é o modo estilístico da concepção geral da história de Marx. Segundo Silva:

Se Marx é materialista, é porque sempre procurou descobrir, indo além ou abaixo da aparência ideológica dos acontecimentos históricos (estado, direito, religião, moral, metafísica), suas estruturas materiais subjacentes. É por isso que suas ironias estilísticas sempre desempenham um papel fundamental: o da denúncia, da iluminação da realidade.

Mais uma vez, um atributo do estilo de Marx é lido como uma formalização literária de um processo histórico.

O livro termina levando essa linha de argumentação à sua conclusão lógica: a alienação é uma grande metáfora. Assim como a metáfora requer a transferência de um significado para outro, na sociedade capitalista “encontramos uma transferência estranha e abrangente do significado real da vida humana para um significado distorcido”. Ao invés de ser uma simples figura retórica que pode ser extraída da realidade que ela “meramente” representa, Silva insiste que a própria alienação capitalista tem uma estrutura metafórica.

Talvez o mesmo possa ser dito dos indivíduos, que são tratados em O capital vol. 1, nas famosas palavras de Marx, “apenas na medida em que são a personificação de categorias econômicas, os portadores [Träger] de relações e interesses de classe particulares”. Quando Marx se referiu aos capitalistas individuais como “o capital personificado”, ele não estava sugerindo que os capitalistas agem como se fossem personificações (alegóricas), mas que são personificações vivas do capital, derrubando assim qualquer distinção nítida entre figura literária e conteúdo histórico.

Quando o estilo se torna uma questão do movimento fundamental da própria história, não pode mais ser descartado como mera afetação literária. Silva apresenta o ponto graciosamente, com não pouca força e concisão admirável.

Colaborador

Daniel Hartley é professor assistente de literatura mundial na Durham University (Reino Unido). É autor de The Politics of Style: Towards a Marxist Poetics (Brill, 2017).

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