5 de janeiro de 2023

O F-35, símbolo de tudo o que está errado com o complexo militar-industrial americano

O caça F-35 tem sido flagelado por avarias e custos excessivos durante anos. No entanto, o Congresso continua a encomendar mais. O consenso bipartidário para financiar ferramentas de guerra em vez de programas a favor dos trabalhadores, como habitação acessível ou cuidados infantis, continua a ser forte.

Michael Brenes

Jacobin

O caça Lockheed Martin F-35 Lightning Stealth da Força Aérea Americana sobrevoa a baía de São Francisco na Califórnia a 13 de Outubro de 2019. (Yichuan Cao / NurPhoto via Getty Images)

Tradução / Na quinta feira passada um Lockheed Martin F-35B despenhou-se numa base da Força Aérea em Fort Worth, Texas, e as filmagens desse desastre tornaram-se virais. O vídeo de 37 segundos mostrou o avião a pairar constantemente sobre a pista antes de aterrar, a saltar e a roda dianteira a desprender-se, o que fez com que o avião mergulhasse e girasse no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O piloto ejectou-se então antes de sofrer ferimentos graves. Este foi apenas o último de uma série de acidentes com o F-35 – houve dois outros acidentes um no início do ano e o mais recente em Outubro numa base da Força Aérea em Utah.

A filmagem tornou-se viral, provavelmente, em parte devido à forma desconcertante e absurda como o acidente ocorreu – o F-35 mais parecia um avião de papel lançado ao ar e girando na brisa do que um avião no valor 100 milhões de dólares – mas também porque o F-35 tornou-se um símbolo das prioridades políticas erradas dos Estados Unidos: a ânsia, tanto dos Republicanos como dos Democratas, em financiar instrumentos de guerra em vez de desenvolverem a habitação a preços acessíveis, enfrentarem a desigualdade racial e económica, instituírem a licença de maternidade e financiar o serviço das creches ou fazerem outras coisas mais produtivas socialmente com fundos federais. Visto sob esta perspetiva, os fracassos do F-35 tornam-se um espelho de nós mesmos, da eterna incapacidade dos Estado Unidos de olhar para dentro e não para fora para resolver os nossos problemas. As inovações na guerra são necessárias mas é para satisfazer as nossas ansiedades sobre a “competição” com a China, bem como as nossas ansiedades sobre o futuro da supremacia americana.

“Gastámos 1,7 triliões de dólares no F-35”, tuitou o comentador Kyle Kulinski em resposta ao acidente. Não é bem assim. É certo que este número é o custo total projectado ao longo de 66 anos, pelo que não é real, ainda. (Mas um número desta ordem, 1,7 triliões de dólares, é o equivalente ao montante da lei de gastos recentemente aprovada pelo Congresso para manter o governo federal a funcionar no próximo ano e é também o equivalente ao total da dívida estudantil sob a forma de empréstimos federais). No entanto, o F-35 não pode ser resumido pelo seu custo exorbitante. De certa maneira, esse custo retira importância ao seu impacto no futuro do negócio da guerra conduzido pelo complexo militar-industrial dos EUA.

O Congresso impotente face à Lockheed Martin

A saga F-35 começou há mais de vinte anos. Após a Guerra Fria, a Força Aérea quis substituir os seus jactos de caça F-16 desatualizados. Após receber propostas concorrentes da Lockheed e da Boeing, o Pentágono fez uma encomenda à Lockheed para um novo jato de caça em 2001. O F-35 fez a sua estreia em 2006. Mas nos mais de 15 anos desde que os F-35 começaram a sair da linha de produção, foram confrontados com uma miríade de problemas: o peso da aeronave, o seu software, e mesmo a sua capacidade de manobrar corretamente. Em 2015, após mais de uma década de investimento, quando ainda se esperava que a aeronave custasse menos de 1 milhão de milhões de dólares, o F-16 continuava sempre a ter um melhor desempenho.

No entanto, os problemas que assolaram o F-35 são históricos; são sistémicos em toda a indústria da defesa. Efetivamente, o F-35 não é uma anomalia. Trata-se de uma característica, não de um erro, é o produto puro da forma como o sistema de defesa dos EUA funciona, do processo de aquisição a grandes empresas e da relação público-privada entre os militares, as empresas de defesa e o Congresso. Um sistema cujas origens remontam ao início da Guerra Fria.

Quando leio histórias sobre o mau funcionamento do F-35, os excessos de custos para corrigir esses problemas, e as audiências do Congresso que repreendem – de forma branda, se não mesmo com simpatia – o Pentágono e as empresas de defesa por estes atrasos e despesas excessivas, fazem-me lembrar o avião de carga Galáxia C-5A. Emblemático do “esbanjamento” militar dos EUA na Guerra Fria, o C-5A tinha aproximadamente o tamanho de um campo de futebol. Não era um caça avançado como o F-35, mas um avião de transporte concebido para transportar duzentas mil libras de carga (cerca de 100 toneladas). A Lockheed Martin ganhou o contrato para o C-5A nos primeiros meses da Guerra do Vietname em 1965, um contrato de 3 mil milhões de dólares que se transformou numa despesa de 9 mil milhões de dólares para o governo federal no início dos anos 70. O C-5A tinha fendas nas asas e acabou por se revelar incapaz de cumprir o seu objetivo, só conseguindo transportar cerca de metade da carga para a qual foi concebido. A Lockheed gastou mais milhões para resolver os problemas, mas em vão.

Devido à sua ineficiência e custo, a Força Aérea reduziu as suas encomendas para o C-5A em 1970, deixando a Lockheed num impasse. Em 1971, as ultrapassagens de custos no C-5A, bem como no avião comercial TriStar L-1011, levaram a Lockheed à beira da falência. Na Primavera de 1971, os bancos privados deixaram de conceder empréstimos à Lockheed e era provável que a empresa entrasse em falência.

Só o governo federal poderia salvar a Lockheed. A empresa solicitou ao Congresso um resgate sob a forma de garantias de empréstimo num total de 250 milhões de dólares. Se não conseguisse estes fundos, a Lockheed entraria em colapso e levaria consigo “25.000 a 30.000 empregos” em trinta e quatro estados americanos, para não mencionar a sua importância para a segurança nacional dos EUA. O pedido da Lockheed foi assim um ultimato ao Congresso; apontou uma arma à cabeça do legislador, por assim dizer. O congressista democrata William Moorhead (Pensilvânia) resumiu muito bem a situação: “É como um dinossauro de oitenta toneladas que aparece à tua porta e diz: ‘Se não me alimentas, vou morrer, e o que vais fazer com oitenta toneladas de dinossauro fedorento no teu quintal?’” Assim, a Lockheed tornou-se uma das primeiras empresas “demasiado grandes para falir”, como sugeriu o cientista político Bill Hartung no seu livro “Profetas de Guerra“.

Após um controverso e renhido debate no Senado – que teve lugar durante o auge da oposição pública à Guerra do Vietname – as garantias de empréstimo pedidas pela Lockheed foram aprovadas. O Congresso não quis perder o seu investimento na aeronave, nem quis cortar postos de trabalho à medida que a economia entrava em recessão e a inflação aumentava. Assim, o C-5A continuou a funcionar em conflitos liderados pelos americanos, acabando por ser reequipado e actualizado para o C-5B e depois para o C-5C. Agora voa como o C-5M.

A Força Aérea Americana está agora a rever o seu compromisso com o F-35 e a considerar se deve reduzir as suas aquisições planeadas da aeronave. Será então possível que o F-35 seja o sucessor do C-5A no sentido de que os seus excessos de custos levem à insolvência da Lockheed (mais uma vez), e forcem o escrutínio e mesmo uma reavaliação do complexo militar-industrial?

Infelizmente, isto parece-me altamente improvável.

Um jacto de caça F-35B realiza uma aterragem vertical durante operações de voo no Oceano Atlântico. (Marinha dos EUA / Nathan T. Beard / Wikimedia Commons)

Chantagem sobre empregos

Aqueles que desejam cortar e reformar o orçamento da defesa e cancelar programas como o F-35 – já para não falar de desmilitarizar a economia dos EUA – enfrentam vários obstáculos. O mais evidente deles é o argumento do emprego, a alegação de que a paragem do F-35 enviará americanos diretamente para o desemprego. A produção das aeronaves C-5A tinha afetado os trabalhadores principalmente num punhado de estados: Geórgia, Califórnia e Wisconsin. As peças de F-35, por outro lado, são fabricadas em quarenta e cinco estados e em Porto Rico. Incluindo os vários subcontratantes que trabalham na F-35, isto dá um total de cerca de 300.000 postos de trabalho. É certo que isto não é enorme em comparação com os 163 milhões de americanos que integram a força de trabalho. Mas a dispersão de empregos pelo país dissuade mesmo os legisladores mais progressistas, como o senador independente de Vermont Bernie Sanders, de impedir a produção de F-35 no seu estado.

As vendas de F-35 a países estrangeiros são também críticas para a forma como os EUA conduzem os seus negócios diplomáticos. Os EUA autorizaram as vendas de F-35 a países como a Polónia e estão a considerar as vendas à Turquia para conter a influência russa naquele país. Estas vendas – e a perspetiva de mais – tornaram-se ainda mais importantes para os interesses da política externa dos EUA desde a invasão da Ucrânia em Fevereiro de 2022. Além disso, a explosão do comércio global de armas desde os anos 70 – um tema discutido pelo historiador Jonathan Ng – fez do F-35 um instrumento central para a construção de alianças numa era de grande concorrência entre as grandes potências.

Depois, evidentemente, há o papel que as empresas de defesa desempenham na economia política em geral. Num artigo de 2019 para o New York Times, a jornalista Valerie Insinna, que fez uma excelente reportagem sobre o F-35 para Breaking Defense e Defense News entre outros, revelou como a Lockheed Martin exerceu a sua influência – directa mas discreta – sobre o futuro orçamental do F-35, e como o processo de contratação permitiu à Lockheed gerir livremente um produto governamental. De certa forma, as raposas estavam a vigiar o galinheiro. Como escreveu Insinna:

“Um dos fatores que tem desviado consistentemente o programa F-35 para fora do seu caderno de encargos é o nível de controlo que a Lockheed exerce sobre o programa. A empresa não só produz o próprio F-35, como também o equipamento de formação para pilotos e técnicos de manutenção, o sistema logístico da aeronave e o seu equipamento de apoio, tais como carrinhos e plataformas. A Lockheed também gere a cadeia de abastecimento e é responsável por grande parte da manutenção da aeronave. Isto dá à Lockheed um poder significativo sobre quase todas as partes que estão envolvidas no F-35. “Fiquei com a impressão, após os meus primeiros 90 dias, de que não era o governo que tinha o programa a seu cargo”, disse o Tenente da Força Aérea Christopher Bogdan, que assumiu a supervisão do programa em Dezembro de 2012. Parecia “que todas as grandes decisões, quer fossem técnicas, quer fossem sobre o calendário, quer fossem contratuais, eram realmente todas tomadas pela Lockheed Martin, e o departamento governamental responsável pelo programa estava apenas a observar”.

O F-35 da Lockheed, ao contrário do C-5A, está a ser produzido numa altura em que a indústria da defesa tem sido cada vez mais privatizada desde os anos 70. Como os historiadores Jennifer Mittelstadt e Mark Wilson argumentam num recente ensaio no seu livro The Military and the Market, a privatização das forças armadas nas últimas décadas foi de facto “um projeto político … decidido tanto por posições ideológicas rígidas a favor da iniciativa privada como pela procura de maiores lucros através da aquisição de recursos e funções governamentais”.

Acrescente-se a isto o atual clima de política externa, em que os receios de guerra com a China estão a levar os americanos ao pânico, e em que os aviões de combate F-35 se tornam um instrumento necessário a utilizar se e quando os chineses decidirem invadir Taiwan. Os dirigentes da Força Aérea estão também a mostrar-se condescendentes com o potencial do F-35, mais que com as suas capacidades atuais, acreditando que as deficiências do F-35 podem ser corrigidas em devido tempo.

Estes vários ingredientes são uma receita perfeita para o contínuo desperdício de recursos federais e do dinheiro dos contribuintes. Mas da perspetiva da Lockheed, esta receita é um sucesso. Pois enquanto o F-35 está a ser ridicularizado online, a Lockheed está também a gozar com o contribuinte ao olhar para a sua conta bancária bem gorda. Assim, o principal desafio que nós, americanos, enfrentamos é o de como exercer o controlo democrático sobre uma estrutura tão antidemocrática. Comecemos por visar o F-35.

Republished from Warfare and Welfare.

COLABORADOR

Michael Brenes leciona história na Universidade de Yale. Seu novo livro é For Might and Right: Cold War Defense Spending and the Remaking of American Democracy.

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