23 de janeiro de 2023

Depois de Bolsonaro, Lula pode refazer o Brasil?

Após uma pena de prisão, uma eleição tensa e um quase golpe, pela terceira vez o presidente assume o comando de um país fraturado.

Jon Lee Anderson

The New Yorker

Governar após quatro anos de governo divisivo será um profundo desafio. "O peso nas minhas costas é maior", disse Lula. Fotografia de Tommaso Protti

Tradução / Por toda a imensa cidade de São Paulo, cartazes em postes telefônicos exibem uma imagem pop art do recém-eleito presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva - Lula, como é universalmente conhecido. Sua cabeça é coroada por cachos escuros, seu rosto adornado com uma estrela vermelha, símbolo de seu Partido dos Trabalhadores. É uma visão de Lula em seus primeiros dias: o idealista de esquerda, o líder grevista carismático, o profeta de um futuro imaginário em que o Brasil se tornaria um centro de justiça social onde ninguém passaria fome, a floresta tropical seria protegida, e a inimizade entre raças e classes se dissolveu. É um velho clichê dizer que o Brasil é o país do futuro - um futuro que nunca chegará. Também é verdade que o colosso da América Latina não realizou muitas das esperanças de seu povo.

Por gerações de brasileiros, Lula é a figura pública mais familiar do país. Ele cumpriu dois mandatos anteriores como presidente, de 2003 a 2010. Em 2018, foi preso sob a acusação de lavagem de dinheiro e corrupção. Lula negou qualquer irregularidade, insistindo que foi vítima de um esquema de vingança política. Sua candidatura representou um retorno quase sem precedentes.

Depois de uma longa carreira de crises constantes, de triunfos e batalhas, Lula parece ter a idade que tem. Ele tem 77 anos, baixo e robusto, com postura ereta de galo e peito estufado. Suas mãos são duras, como as de um boxeador, mas sua pele é pálida e seu cabelo encaracolado ficou ralo e branco. Quando o vi em novembro passado, poucos dias depois de ter vencido a eleição presidencial, ele entrou na sala de uma suíte de hotel em São Paulo cercado por uma falange de assessores e seguranças. Ele estava vestido com um paletó cinza de político e calças, que ele parecia desejar poder trocar por sua costumeira guayabera e jeans.

Lula parecia não apenas exausto, mas também indisposto. Em 2011, apenas um ano depois de quebrar o hábito de fumar de meio século, ele recebeu o diagnóstico de câncer na garganta e passou por quimioterapia. Os médicos o instaram a tomar cuidado especial com a garganta, mas é claro que ele os ignorou durante a campanha e, muitas vezes, quando falava agora, sua voz se reduzia a um grunhido rouco e teatral. Durante o anúncio da vitória, ele parecia se esforçar para produzir um sussurro apaixonado.

Os discursos de campanha de Lula sugeriam que ele estava envolvido em um conflito existencial. Seu oponente era Jair Bolsonaro, o presidente, um populista de direita que ficou conhecido como “o Trump dos trópicos” e um dos líderes mais controversos do hemisfério. Como Trump, ele chegou ao poder apelando aos eleitores indignados com o direito ao aborto, o casamento gay e a educação sexual nas escolas primárias. Ao longo de sua carreira, sua retórica foi muitas vezes odiosa. Certa vez, ele dispensou uma deputada dizendo que ela “não valia a pena estuprá-la, ela é muito feia”. Sobre o assunto da homossexualidade, disse: “Se seu filho começar a ficar assim, um pouco gay, você bate nele e muda o comportamento dele”. No cargo, ele permitiu que corporações invadissem a floresta tropical praticamente sem impedimentos e que a polícia atirasse em suspeitos sem restrições. Respondendo ao covid-19, foi negligente e muitas vezes cruel, dizendo a seus cidadãos: “Todo mundo tem que morrer um dia. Temos que deixar de ser um país de maricas.” O Brasil teve quase 700 mil mortes relatadas, perdendo apenas para os Estados Unidos.

Lula, em sua campanha, havia falado em termos quase messiânicos sobre seu desejo de “resgatar” o Brasil. Ele também começou a falar sobre Deus, sua idade, como se sentia sortudo por ter suportado suas adversidades. Na noite em que finalmente venceu, disse: “Eles tentaram me enterrar vivo, mas eu sobrevivi. Aqui estou.”

Quando vi Lula pela última vez, em dezembro de 2019, ele parecia vigoroso e relativamente jovem. Agora, apesar de sua retórica de campanha, ele parecia um pouco sobrecarregado com as perspectivas que enfrentava em sua missão de salvar o Brasil. Afundando em uma cadeira e exalando pesadamente, ele disse que tinha estado ao telefone durante toda a manhã com líderes mundiais que ligaram para parabenizá-lo. Quando perguntei quais iniciativas políticas planejava, ele falou quase de cor, como se ainda estivesse em campanha. Mas quando eu disse que, fora do Brasil, muita gente esperava que ele salvasse não só o seu país, mas o meio ambiente global, revertendo o desmatamento da Amazônia, seus olhos se arregalaram quase com medo, e ele exclamou: “Sim, eu sei!” Estendendo a mão para agarrar meu joelho, ele se inclinou e começou a falar intensamente sobre remodelar o país. “As pessoas estão muito otimistas sobre nossa governança”, disse ele. “As pessoas estão esperando que algo mude, e isso vai mudar.” Era o Lula do cartaz da pop art, o militante da esquerda que encantava os brasileiros desde sua primeira aparição no cenário nacional, quarenta anos antes. Mas agora o país ao seu redor é diferente, dividido nitidamente entre aqueles que o amam e aqueles que o desprezam.

No dia de Ano Novo, Lula tomou posse na capital, Brasília, uma cidade extensa esculpida no cerrado no final dos anos 1950. Em discurso no Palácio do Planalto, prédio modernista que abriga a Presidência da República, fez uma tentativa de conciliação. “Não existem dois Brasis”, disse. “Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reaproximar as famílias, de refazer os laços rompidos pela propagação criminosa do ódio”.

Uma semana depois, apoiadores de Bolsonaro invadiram a capital, chegando em mais de cem ônibus de todo o país para derrubar o que eles insistiam ser uma eleição roubada. Gritando: “Derrube os ladrões!” e “Morreremos pelo Brasil!”, invadiram a Presidência da República, o STF e o Legislativo, ateando fogo e destruindo tudo o que encontravam.

Por ordem de Lula, as autoridades brasileiras agiram rapidamente para reverter o cerco, prendendo mais de 1.500 manifestantes e prometendo um inquérito sobre as origens da violência. Lula também orquestrou uma demonstração de união: dezenas de líderes dos governos estaduais, incluindo alguns leais a Bolsonaro, caminharam de braços dados pela vasta praça que liga o Palácio do Planalto ao Supremo Tribunal Federal. Foi um gesto eficaz — um lembrete dos protestos de rua que ajudaram a estabelecer sua reputação décadas antes. Mas Lula parece consciente de que fazer o país funcionar depois de quatro anos de governo autoritário será um desafio profundamente maior. “Minha responsabilidade é muito maior agora”, ele me disse. “O peso nas minhas costas é maior.”

No último dia 1º de outubro, um dia antes do início da votação para a eleição presidencial, Lula estava na traseira de uma caminhonete que circulava pela Rua Augusta, uma rua estreita de São Paulo conhecida por seus bares, sex shops e vida noturna barulhenta. Multidões se aglomeraram nas calçadas e nas varandas dos apartamentos, e mais congestionaram a rua ao redor de sua caminhonete. As eleições brasileiras têm dois turnos, mas qualquer candidato que obtiver maioria simples no primeiro turno pode garantir a Presidência. Lula, que está em sua melhor forma em meio a uma multidão de apoiadores, esperava inspirar os eleitores a colocá-lo no cargo sem demora.

As regras eleitorais proíbem os candidatos de falar com os eleitores no último dia de campanha, então Lula acenou em silêncio e jogou beijos. A multidão era barulhenta, porém: a música tocava nos alto-falantes de seu veículo e as pessoas dançavam nas ruas. De repente, Lula começou a pular no caminhão, como uma criança em uma roda de dança punk. Com seu incentivo, o aliado de campanha Fernando Haddad, duas décadas mais novo e uma cabeça mais alto, também começou a pular. Enquanto eles saltavam, mais ou menos no ritmo da música, os espectadores os aplaudiam. O vídeo do espetáculo logo se espalhou nas redes sociais.

Foi um momento de animação em uma campanha contenciosa, que dividiu os eleitores sobre questões sobre que tipo de país o Brasil é e que tipo deveria ser. Os seguidores de Lula tendiam a ser mais jovens, multirraciais e de baixa renda, com um considerável contingente LGBTQ; Bolsonaro é mais velho, mais branco e mais rico. Enquanto a barulhenta cavalgada de Lula descia a rua Augusta, uma procissão de Bolsonaro atravessou uma avenida próxima, acompanhada por esquadrões de homens em motocicletas.

A maioria das pesquisas sugeria que Lula venceria por uma margem confortável. Mas era incerto se Bolsonaro honraria o resultado da eleição caso perdesse. Assim como Donald Trump, com quem havia estabelecido um relacionamento próximo, Bolsonaro há muito questionava a segurança das urnas eletrônicas do Brasil – embora elas tivessem afirmado sua vitória na eleição anterior. Em 2021, ele disse a um grupo de partidários que via apenas três cenários possíveis para si mesmo na eleição: vitória, prisão ou morte. Ele parecia estar preparando seus apoiadores, os bolsonaristas, para rejeitar qualquer resultado que favorecesse Lula. Também havia insinuado repetidamente que as Forças Armadas, onde mantinha grande apoio, o apoiariam em uma eleição contestada. Seu ministro da Defesa, um ex-general linha-dura, fez comentários ameaçadores sobre a possibilidade de intervenção militar.

Nos Estados Unidos, os aliados de Trump ajudaram a ampliar os argumentos de Bolsonaro. Na Fox News, Tucker Carlson alertou que Lula seria uma marionete do presidente chinês, Xi Jinping. “Permitir que o Brasil seja uma colônia da China seria um golpe significativo para nós e potencialmente uma ameaça militar muito séria”, disse. “A administração Biden parece ser a favor disso. Uma pessoa que enfaticamente não é a favor disso é o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro”. (Dias antes, Carlson havia conduzido uma entrevista bajuladora com Bolsonaro, sugerindo que ele era um líder melhor do que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e posando com ele para fotos depois usando um cocar de penas indígenas.) O ex-funcionário de Trump, Steve Bannon, alimentou temores que Lula pretendia trapacear para chegar ao poder: “Bolsonaro vai ganhar se não for roubado por, adivinhe?”

Com as preocupações crescentes, o governo Biden silenciosamente enviou emissários, incluindo o secretário de Defesa Lloyd Austin, para alertar Bolsonaro, seus altos funcionários e os militares para não interferir na eleição. Como me disse um funcionário dos EUA familiarizado com o alcance: “Fizemos uma política concertada para que eles soubessem onde estavam os limites para nós. O resultado da eleição era problema deles, mas o que nos importava era que o processo fosse respeitado. Achamos que eles ouviram”.

O Tribunal Superior Eleitoral do Brasil também se juntou ao esforço. Seu chefe, Alexandre de Moraes, agiu rapidamente para envolver as Forças Armadas, convidando-as a participar de uma comissão de transparência eleitoral. Para neutralizar as reivindicações de Bolsonaro, também providenciou para que os militares inspecionassem várias máquinas de votação no dia da eleição. A proposta atraiu críticas de defensores da independência eleitoral, mas as Forças Armadas concordaram. Aconteça o que acontecer, ao que parece, é improvável que lancem um golpe.

As preocupações com a estabilidade do governo não eram levianas. A democracia tem raízes tênues no Brasil. De 1964 a 1985, o país foi governado por uma ditadura militar, cujos oficiais oprimiram duramente sindicalistas, clérigos, acadêmicos e o minúsculo contingente de guerrilheiros marxistas do país. Quase quinhentas pessoas foram mortas e milhares foram presas e torturadas – incluindo Dilma Rousseff, a sucessora de Lula como presidente, que foi capturada quando jovem. Ela era uma guerrilheira urbana.

Alguns dos vizinhos do Brasil sofreram muito pior. Na Argentina, entre 9 mil e 30 mil pessoas foram torturadas, assassinadas e “desaparecidas” pelos militares. Mas, enquanto a Argentina reconheceu as atrocidades do regime em uma série de julgamentos, o Brasil deixou seus militares intocados, aprovando uma lei em 1979 para conceder anistia para abusos. Como instituição, não expressou nenhum remorso.

O legado relativamente não examinado da ditadura brasileira, na qual os militares de extrema direita atacaram tanto os manifestantes de esquerda quanto os democratas, ainda informa a política do país. Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, era um participante ávido da ditadura e, durante um mandato de 27 anos no parlamento, muitas vezes pediu o retorno ao regime militar. Em uma famosa explosão, ele disse que os militares não tinham ido longe o suficiente — que, se tivessem matado mais 30 mil pessoas, os problemas do Brasil com os esquerdistas teriam sido resolvidos. Em 2016, quando o Congresso do Brasil aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro votou em nome de um notório coronel militar que comandou a unidade que a torturou.

Lula, por outro lado, é o arquétipo da esquerda brasileira. Ele nasceu pobre, o sexto de sete filhos. Seus pais trabalhavam como fazendeiros em Pernambuco, um estado atingido pela fome no nordeste do país. Quando Lula era criança, seu pai partiu para São Paulo, em busca de uma vida mais estável, e encontrou trabalho como diarista. Quando o resto da família pôde se juntar a ele, e Lula tinha 7 anos, já havia encontrado outra mulher e começado uma nova família. Por quatro anos, todos viveram juntos até que a mãe de Lula conseguiu outro lugar — um quarto apertado atrás de um bar.

Lula não aprendeu a ler até os 9 anos e abandonou a escola logo depois. Trabalhou como vendedor ambulante, engraxate, almoxarife e, eventualmente, operador de máquina em uma fábrica de parafusos. Aos 19 anos, machucou o dedo mínimo da mão esquerda em um acidente com uma prensa mecânica. E não conseguiu tratamento médico até o dia seguinte. Para sua consternação, o médico realizou uma amputação completa. Com o tempo, seus oponentes começaram a ridicularizá-lo como “nove dedos”.

Lula logo se envolveu na política sindical, organizando protestos fora das fábricas e exibindo um dom para a oratória. Foi preso por liderar uma greve ilegal, mas saiu depois de um mês e, nos últimos anos da ditadura, havia se tornado um importante líder trabalhista em São Paulo. Em 1980, quando as Forças Armadas se preparavam para abrir mão do poder, fundou o Partido dos Trabalhadores, de esquerda, conhecido como PT. Logo começou a concorrer a cargos políticos e, ao longo dos anos, ganhando ou perdendo eleições deles, tornou-se o líder indiscutível da esquerda brasileira. “Não há mais ninguém de sua estatura no hemisfério”, disse uma autoridade ocidental que se encontrou com ele várias vezes. “Ele é o chefe.”

Com o resultado do primeiro turno, a equipe de campanha de Lula se reuniu em um hotel de São Paulo. Em uma sala de briefing, dezenas de jornalistas, parasitas e políticos se aglomeraram em torno de uma enorme tela de televisão, observando a contagem pender para um candidato, depois para outro. O som da sala acompanhava os resultados: silêncio agitado quando Lula estava atrás, risos e gritos de “Lula-lá!”, refrão de uma velha canção de campanha, quando ele assumia a liderança.

No início da manhã, Lula tinha 48,4% dos votos – cinco pontos à frente de Bolsonaro, mas aquém do que precisava para vencer a Presidência no primeiro turno. Além disso, Bolsonaro atraiu muito mais eleitores do que as pesquisas previam. A equipe de Lula estava percebendo não apenas que um segundo turno seria necessário, mas que, mesmo que seu candidato vencesse, o Brasil havia se tornado um país muito diferente daquele que ele havia presidido 12 anos antes.

Lula deixou o cargo em 2010 com um histórico índice de aprovação de 88%. A economia havia crescido durante seu mandato, em grande parte graças ao aumento dos preços das commodities, a uma descoberta significativa de petróleo na costa e ao crescimento explosivo da China, um grande comprador das exportações brasileiras. Em 2010, a taxa de crescimento econômico foi de 7,5%, a mais alta em décadas. O Brasil pertencia a um grupo de nações em rápido crescimento conhecido como Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Mas, desde então, a economia caiu, e o Brasil, que já foi a quinta maior economia do mundo, agora é a nona.

Bolsonaro trabalhou para tornar o Brasil mais amigável aos negócios, mas muitos de seus apoiadores foram mais energizados por sua guerra cultural. Ele havia conquistado a Presidência em 2018 com o apoio do poderoso consórcio conhecido como os três B’s: boi, bíblias e bala, significando o agronegócio, a igreja evangélica e o lobby das armas. Em aparições públicas, seu gesto característico era disparar pistolas de faz de conta. Ele gozou de amplo apoio entre os grupos de aplicação da lei, especialmente a polícia militar, que tem reputação de usar força indiscriminada e de envolvimento com o crime organizado.

No cargo, expandiu os departamentos de polícia e deu-lhes ampla margem de manobra para lidar com criminosos. Em 2020 e 2021, a polícia no Brasil matou mais de 6 mil pessoas por ano – seis vezes o total nos Estados Unidos. Bolsonaro também afrouxou as leis sobre armas, argumentando que os cidadãos precisavam se defender contra criminosos e invasores de terra de esquerda. A posse de armas registradas aumentou seis vezes enquanto ele estava no cargo; lojas de armas e campos de tiro floresceram.

É ilegal no Brasil fazer comentários racistas, mas Bolsonaro regularmente encontrava maneiras de insultar os habitantes não-brancos de seu país, dizendo que os membros das comunidades afro-brasileiras “não eram bons nem para procriar” e que os indígenas estavam “cada vez mais se tornando seres humanos apenas como nós”. Os refugiados eram “a escória da terra”. A violência contra essas comunidades e contra pessoas LGBTQ aumentou durante seu mandato.

À medida que a popularidade de Bolsonaro crescia, os políticos brasileiros de direita começaram a proclamar sua adesão ao bolsonarismo. Nas eleições recentes, os candidatos simpatizantes de suas ideias se saíram inesperadamente bem, conquistando a maioria das cadeiras do Senado e do governo. Um dos que conquistou cargos legislativos foi Eduardo Pazuello, general do Exército que comandou por um tempo a resposta calamitosa de Bolsonaro à pandemia. Outro foi Ricardo Salles, o primeiro ministro do Meio Ambiente, que deixou o cargo sob investigação por conspiração para traficar madeiras nobres da Amazônia. (Ele nega as acusações).

No estado de São Paulo, o maior eleitorado do Brasil, os retornos foram mistos. A capital balançou para Lula. Cidades menores e o interior foram para Bolsonaro, como em muitos outros lugares onde a pecuária e o agronegócio impulsionam a economia. Na sala de imprensa da campanha, Lula se manifestou confiante: “Vamos ter que lutar, mas vamos vencer”. Seu protegido Guilherme Boulos colocou isso de forma mais dura. Concorrer contra Bolsonaro, disse ele, era “uma guerra entre a democracia e a barbárie”.

Lula começou a concorrer à Presidência assim que pôde. Ele lançou sua primeira campanha em 1989, apenas um ano depois que uma nova Constituição, adotada quando o Brasil voltou à democracia, tornou legal a candidatura de partidos de esquerda. E perdeu por pouco para Fernando Collor de Mello, um jovem proponente bem-vestido das ideias de livre mercado. Collor de Mello renunciou dois anos depois, derrubado por um escândalo de corrupção. (Ele foi posteriormente absolvido).

Lula concorreu novamente em 1994 e 1998, e perdeu nas duas vezes para Fernando Henrique Cardoso, um acadêmico de esquerda que certa vez marchou ao lado dele em protestos de rua. Como presidente, Cardoso mudou-se para o centro, apoiando a privatização de várias grandes empresas estatais. Lula continuou um esquerdista convicto, atacando as reformas “neoliberais” que varreram a região, com incentivo americano. Enquanto Cardoso se tornou amigo de Bill Clinton e Tony Blair, Lula era mais filosoficamente alinhado com Fidel Castro e Hugo Chávez.

Mas quando Lula finalmente conquistou a Presidência, em 2002, mostrou um pragmatismo surpreendente, aliado a uma astúcia de sobrevivente político. Ele resistiu a um escândalo envolvendo um esquema de compra de votos de parlamentares, que ficou conhecido como mensalão. Embora vários de seus deputados mais próximos estivessem implicados, ele não foi acusado. Nos mesmos anos, lançou um programa de transferência de renda, conhecido como Bolsa Família, que tirou cerca de 30 milhões de brasileiros da pobreza extrema e iniciou um ambicioso programa para levar eletricidade a áreas negligenciadas do interior. Durante seu mandato, a destruição ilegal da floresta amazônica diminuiu drasticamente, pois implementou programas para policiar a região e designou vários milhões de acres como áreas de conservação e reservas para os indígenas.

O carisma pessoal de Lula é provavelmente seu maior trunfo político e, ao contrário de outros esquerdistas latino-americanos de sua geração, ele mostrou uma habilidade excepcional para trabalhar nos dois lados do corredor político. Apesar de sua oposição à Guerra do Iraque, cultivou um relacionamento cordial com George W. Bush. Quando Barack Obama apertou a mão de Lula pela primeira vez, na cúpula do G-20 em 2009, disse às autoridades: “Eu amo esse cara. Ele é o político mais popular da Terra.” (Na verdade, os dois não se davam muito bem; Lula me disse que tinha uma relação melhor com Bush, que, apesar das diferenças, era um cara com quem você poderia fazer um churrasco. Obama, por sua vez, escreveu em suas memórias de que Lula era “impressionante”, mas “supostamente tinha os escrúpulos de um chefe de Tammany Hall”.)

Em alguns momentos da campanha do ano passado, porém, Lula parecia ter perdido sua destreza. Em um estúdio de televisão no Rio, eu o vi participar do último dos três debates presidenciais. O tema insistente de Bolsonaro era que, se Lula ganhasse de volta a presidência, o Brasil se tornaria como a Venezuela – um sinônimo de política de esquerda fracassada. Bolsonaro desfilou sombriamente pelo estúdio, chamando seu oponente de “ladrão, traidor da pátria e ex-prisioneiro”. Lula cuspiu negativas indignadas e gritou de volta que Bolsonaro era “sem-vergonha, repulsivo” e incapaz de ocupar a Presidência. Poucos partidários de Lula ficaram felizes com seu desempenho. Enquanto Bolsonaro era caracteristicamente vulgar, Lula reagiu mal a seus ataques e falhou em expressar novas ideias ou iniciativas políticas.

As acusações de Bolsonaro – que chamou Lula de “constrangimento nacional” – são complicadas pelo fato de que a corrupção tem sido endêmica no Brasil durante grande parte de sua história moderna. O governo é dono de grandes setores da economia e muitos legisladores esperam ser compensados ​​por sua cooperação. “O Parlamento é subserviente ou rebelde”, disse-me José Eduardo Cardozo, advogado e proeminente político brasileiro. “E, quando é subserviente, é porque participa do governo – tem o dinheiro. Se não está participando, quer que o governo saia”.

Lula, em seus dois mandatos, conseguiu cultivar o Congresso enquanto evitava as consequências do escândalo de compra de votos do mensalão. Sua sucessora, Dilma Rousseff, carecia da mesma agilidade. “Ela não era uma mulher que gostava de conversar com parlamentares”, disse-me Cardozo, que também foi ministro da Justiça de Dilma Rousseff. “Ela era um quadro que pensa em política, mas que não faz política”.

Rousseff foi a primeira mulher presidente do Brasil e uma figura formidável. Depois de sua passagem inicial como guerrilheira marxista, passou três anos na prisão, antes de servir como ministra de Energia de Lula e chefe de gabinete dele. Quando se tornou presidente, porém, a economia estava começando a estagnar e, em seu segundo mandato, uma queda nos preços das commodities fez com que o Brasil tivesse menos dinheiro entrando. Protestos de rua tornaram-se comuns. O mesmo aconteceu com as manobras de seus oponentes políticos para derrubá-la. Até seu vice, Michel Temer, apoiou pedidos de impeachment, ostensivamente por manipular o orçamento do país.

Uma ironia daqueles anos é que Lula e Dilma Rousseff fortaleceram o Judiciário, o que tornou a corrupção mais visível em seu próprio governo. Sob Dilma Rousseff, a Polícia Federal iniciou uma série de investigações conhecidas como Lava Jato. Durante vários anos, uma equipe liderada por um juiz chamado Sergio Moro operou em Curitiba, no conservador sul do Brasil. Investigou a corrupção em toda a América Latina, derrubando CEOs poderosos, funcionários do governo e até mesmo vários presidentes estrangeiros por seu envolvimento em lavagem de dinheiro e suborno.

Muitos dos esquemas estavam ligados à empresa estatal de petróleo do Brasil, a Petrobras, e à gigante da construção Odebrecht, ambas as quais prosperaram durante o mandato de Lula. Moro acusou Lula de ser o mentor de uma conspiração internacional, e começava ali uma investigação que se estendeu por anos. No final, as acusações foram reduzidas: Moro alegou que Lula recebeu a promessa ilícita de um apartamento à beira-mar e que amigos haviam comprado um sítio para seu uso, onde a Odebrecht fez reformas a pedido da sua esposa.

Em uma dramática audiência televisionada, Moro interrogou friamente Lula, que negou furiosamente as acusações e exigiu provas das acusações. Os partidários de Lula argumentam persistentemente que há poucas evidências que o liguem às propriedades. Mas, pouco depois das audiências, Moro divulgou gravações que seus agentes haviam feito de conversas telefônicas entre Dilma e Lula, nas quais ela dizia que estava enviando a ele documentos que lhe garantiriam um cargo ministerial. Dilma Rousseff disse que o cargo era rotineiro; Moro afirmou que ela estava tentando proteger Lula da prisão. Alguns meses depois, o Congresso expulsou Dilma Rousseff e Temer assumiu seu lugar.

A corrupção política não diminuiu no Brasil. Eduardo Cunha, que liderou a campanha do Congresso contra Dilma Rousseff, foi considerado culpado de aceitar 40 milhões de dólares em propinas. O próprio Temer foi implicado, mas o mesmo Congresso que votou pelo impeachment de Dilma optou por deixá-lo no cargo, em nome do que o juiz presidente chamou de “estabilidade do sistema eleitoral”.

Com a aproximação da eleição presidencial de 2018, Lula continuava sendo o político mais popular do país, com o que uma pesquisa dizia ser uma vantagem de 15 pontos sobre seu concorrente mais próximo. Mas ele estava cada vez mais envolvido em investigações criminais. Poucos meses antes da votação, a polícia invadiu a casa de Lula em busca de provas; Marisa Letícia, sua esposa por quatro décadas, morreu de um derrame logo depois. Lula foi condenado por corrupção, sentenciado a 13 anos de prisão e internado em uma unidade da Polícia Federal em Curitiba.

Um contingente de apoiadores acampou do lado de fora da cela de Lula, cumprimentando-o todas as manhãs com gritos de “Bom dia, Lula”. Mas a investigação de Moro garantiu que fosse impedido de ocupar cargos públicos, instantaneamente tornando Jair Bolsonaro o favorito presidencial. Na eleição, Bolsonaro garantiu uma vitória apertada sobre o substituto de Lula, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Logo após ser eleito, fez de Moro seu ministro da Justiça.

Entre os partidários que visitaram Lula na prisão estava o amigo Emídio de Souza – um homem cordial e corpulento de 60 e poucos anos, que serviu durante anos como deputado estadual do PT Quando Lula foi preso, foi Souza quem negociou sua rendição, persuadindo a polícia a cumprir duas condições: “Sem corte de cabelo, sem algemas”. Ele também providenciou para que Lula fosse pego discretamente, fora da vista de uma equipe de televisão circulando em um helicóptero nas proximidades, na esperança de evitar a humilhação pública.

Mesmo assim, a prisão afetou profundamente Lula. “Ele esperava ficar na prisão por uma semana, talvez, ou dez dias”, disse Souza a mim em São Paulo. “Mas sua prisão prolongada mostrou a ele que o mundo iria se mover contra ele”. Lula passou o tempo trabalhando na lista de leituras de um estudante de graduação: uma história da escravidão no Brasil, um tratado sobre como o petróleo levou a guerras, uma biografia de Nelson Mandela. E continuou a acompanhar a política partidária, disse Souza: “Ele não tinha permissão para acessar a internet, mas recebia diariamente relatórios escritos, recortes de notícias, às vezes análises da situação política do país. E também gravava as reuniões do PT em um pendrive e depois as assistia na TV”.

Da prisão, Lula assistiu enquanto Bolsonaro começava a gerar seus próprios escândalos de corrupção. Embora tivesse feito campanha como reformador, ele e seus familiares foram acusados ​​de uma série de crimes. Os promotores alegam que dois de seus filhos desviaram recursos públicos e que um assessor envolvido em um dos esquemas canalizou dinheiro para uma conta da esposa de Bolsonaro. Descobriu-se que a família comprou pelo menos 51 propriedades, principalmente em dinheiro. (Bolsonaro deu uma resposta blefada: “O que há de errado em comprar casas em dinheiro?”) Para cultivar aliados políticos, o governo de Bolsonaro manteve um “orçamento secreto”, que deu ao legislativo acesso a cerca de 3 bilhões de dólares – um quinto de todos os gastos discricionários – que podem ser distribuídos sem supervisão.

Em junho de 2019, The Intercept publicou vazamentos de mensagens telefônicas entre Moro e os promotores que julgaram Lula, revelando importantes lapsos éticos. Moro discutiu táticas ilicitamente com os promotores; o promotor principal expressou dúvidas de que Lula fosse realmente o dono do apartamento no centro do caso. Em outros vazamentos, os investigadores da Lava Jato admitiram que esperavam derrubar Lula e o PT. O Conselho de Direitos Humanos da ONU concluiu posteriormente que a investigação violou o devido processo legal.

Em novembro de 2019, Lula foi solto, após 580 dias de prisão. Souza me disse que Lula insistiu que poderia reconstruir sua imagem, dizendo: “Não vou entrar para a história como um cara que roubou”. Em seu primeiro discurso após ser solto, se autodenominou “a vítima da maior mentira jurídica já contada em 500 anos de história”.

Eu vi Lula algumas semanas depois, em um hotel com vista para a praia de Copacabana, no Rio. Ele tinha 74 anos — um ano antes da idade em que a Igreja Católica não permitiria mais que ele fosse bispo, brincou. Ele disse que estava malhando e se sentia mais em forma do que em anos. Apaixonara-se também por Rosângela (Janja) da Silva, socióloga e militante do Partido dos Trabalhadores 21 anos mais jovem. As cartas diárias dela o sustentaram na prisão, disse. Ele ainda estava legalmente impedido de fazer política, mas deixou claro que voltaria assim que sua proibição fosse suspensa. “Se eu for candidato em 2022, com certeza venceria”, afirmou. “Porque existe uma relação de fidelidade entre o povo brasileiro e eu”.

Quando Lula venceu o segundo turno, em 30 de outubro, a multidão em São Paulo ficou em êxtase. De um estúdio de dois andares acima da Avenida Paulista, a principal via da cidade, Lula acenou e jogou beijos, enquanto seus apoiadores dançavam e cantavam e agitavam bandeiras com imagens de seu rosto. Sua voz falhou de exaustão e emoção ao declarar: “O Brasil está de volta!”

Para muitos brasileiros com quem conversei, porém, o principal motivo para comemorar a vitória de Lula não era que ela devolveria o PT ao poder, mas evitaria mais quatro anos de Bolsonaro. João Moreira Salles, documentarista, fundador da revista Piauí e astuto observador político, disse-me: “É impressionante que ele tenha vencido nessas condições. Mas podemos lembrar da eleição como a parte mais admirável de Lula 3. A vitória foi realmente épica. Governar pode ser muito menos recompensador”.

A equipe de Lula estava apreensiva. Ele havia vencido por pouco mais de dois milhões de votos, tornando esta a eleição mais disputada da história do Brasil. Bolsonaro não cedeu e seus apoiadores insistiram que a eleição havia sido fraudada. Juntamente com um grande contingente de caminhoneiros bolsonaristas, invadiram as rodovias para bloquear o trânsito e, em alguns casos, erguer barricadas em chamas, interrompendo o comércio em todo o país.

Por dias, Bolsonaro permaneceu fora de vista e não emitiu declarações públicas. Por fim, compareceu ao Palácio do Planalto, aparentemente sob pressão de aliados. Em uma cerimônia breve e rígida, sugeriu que seus partidários tinham todo o direito de expressar sua raiva, mas não deveriam bloquear as estradas: “Nossos métodos não devem ser os da esquerda, que sempre foram ruins para a população”. Assim que Bolsonaro terminou, ele se virou e foi embora, enquanto seu chefe de gabinete ficou para dizer que os funcionários do atual governo estariam se reunindo com a equipe de Lula para começar a entrega do poder.

Haveria uma transição, ao que parecia. Mas, em poucos dias, as turbas que ocuparam as rodovias do país se mudaram para novas posições fora das guarnições militares. Lá, eles montaram acampamentos e exigiram uma intervenção para impedir que Lula – o ladrão, o comunista – tomasse seu país.

MOTIM Partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro tomaram o centro da capital do país em 8 de janeiro e invadiram as sedes dos Três Poderes

Do lado de fora dos portões principais do Comando Militar do Sudeste, um amplo quartel-general do Exército em São Paulo, várias centenas de bolsonaristas faziam vigília diária. Homens e mulheres envoltos em bandeiras brasileiras ou vestindo as cores nacionais de amarelo e verde gritavam: “SOS, Forças Armadas!” Alguns erguiam os punhos no ar. Vários se ajoelharam para orar, com os olhos fechados e os braços estendidos à moda do pentecostalismo, que tem muitos seguidores no Brasil. Alguns tinham seus rostos contorcidos em expressões de dor; outros olhavam para o céu, suplicantes.

Homens caminhavam na frente da multidão que cantava, incitando-os. Quando me aproximei de várias mulheres para perguntar por que estavam ali, os manifestantes próximos tornaram-se hostis, gritando para elas: “Não fale!” Com crescente hostilidade, a multidão começou a gritar: “Vá embora, imprensa suja!”. Até que recuei.

Ao sair, passei por um varal pendurado entre as árvores, onde estavam penduradas camisas de futebol, muitas das quais estampadas com um 10 – o número de Neymar, astro do futebol brasileiro, que recentemente se declarou bolsonarista. Ao lado deles havia uma faixa verde e amarela que dizia, em inglês: “Nossa bandeira nunca será vermelha. Fora o comunismo”.

Por todo o país, multidões se reuniram para protestar e rezar por uma intervenção. Nos Estados Unidos, Tucker Carlson transmitiu alegações de fraude em seu programa. Em 2 de novembro, disse: “De acordo com registros oficiais, um criminoso condenado e socialista declarado chamado Lula da Silva derrotou o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, por uma margem estreita neste fim de semana. E, no entanto, milhões de brasileiros — milhões — não acreditam que foi isso que realmente aconteceu… Há dúvidas sobre se todas as cédulas foram contadas. Por que tantos foram expulsos? Milhões. E se as leis eleitorais foram violadas no processo? Portanto, não podemos julgar essas questões, mas se você se preocupa com a democracia, se acha que o processo é essencial, deve investigar essas alegações”.

Steve Bannon ecoou Carlson. Poucos dias depois de ser condenado por se recusar a testemunhar perante o Congresso sobre seu papel na insurreição de 6 de janeiro, foi às redes sociais para alegar que a eleição do Brasil “foi roubada em plena luz do dia”. Ele chamou Lula de “marxista ateu criminoso” e os manifestantes pró-Bolsonaro de “combatentes da liberdade”.

Os militares do Brasil permaneceram em silêncio durante todo o processo eleitoral que durou um mês. Uma semana após o segundo turno, ainda não havia produzido o resultado da inspeção das urnas. Em São Paulo, Lula admitiu estar inquieto com a demora. “Este relatório deveria ter sido entregue antes das eleições”, disse.

Suas preocupações iam além do silêncio dos militares. Quando contei sobre os manifestantes do lado de fora do quartel do Exército, ele ficou sombrio. “Acho que precisamos descobrir quem está financiando e quem está alimentando, porque isso não é espontâneo”, disse. Na véspera, tivera uma conversa desanimadora com o governador do Pará, no Amazonas. “Quando a polícia foi e tentou desbloquear as estradas, os manifestantes atiraram em seus carros”, disse. “O país inteiro está assim. E Bolsonaro se trancou dentro de casa. Não estamos acostumados com esse tipo de coisa aqui. Desde o retorno da democracia, as eleições sempre foram respeitadas”.

Lula mencionou relatos de que policiais pró-Bolsonaro em todo o país interferiram com seus eleitores no dia da eleição e ajudaram bolsonaristas que bloquearam as rodovias. Lula disse que não estava preocupado em ficar fora do cargo: “Pode ser difícil, mas, veja bem, a lei existe para dar garantias à sociedade”. O problema era a instabilidade e a aparente disposição de Bolsonaro de mobilizar a polícia para manter Lula fora do cargo. “Esta eleição foi atípica”, disse, “porque foi a candidatura de um candidato contra o Estado – uma coisa absurda”.

Como muitos outros, Lula comparou o que estava acontecendo no Brasil ao fenômeno Trump nos Estados Unidos. O dia 6 de janeiro abriu um precedente desestabilizador em todo o mundo. “Quaisquer divergências que você possa ter com os Estados Unidos, eles ainda representam a face da democracia no planeta Terra”, disse. “Quando o país mais importante não exerce a democracia, você está dando um endosso a todos os malucos do mundo”.

Em discursos, Lula frequentemente levanta a necessidade de enfrentar a fome no Brasil, descrevendo-a como um imperativo moral inatacável. Ele falou longamente sobre a fome quando nos encontramos em 2019 e com crescente emoção em suas aparições de campanha no ano passado. Em nossa entrevista após sua recente vitória, surgiu quando o questionei sobre a Ucrânia. Alguns meses antes, ele fizera comentários mordazes sobre Volodymyr Zelensky e parecia sugerir, como fizera Vladimir Putin, que os Estados Unidos eram parcialmente responsáveis ​​pelo conflito. Aparentemente ansioso para deixar o assunto de lado, Lula me disse que pretendia conversar com Zelensky e Putin, e também com Biden, mas que só lhe importava a “paz mundial”. Logo, ele voltou à questão da fome. “Não posso, não posso, não posso trair essas pessoas”, disse, com lágrimas nos olhos. “Vou ter que brigar com o mercado às vezes, mas as pessoas têm que poder comer de novo. Não quero muita coisa, mas as pessoas têm que ter esperança de novo, e barriga cheia, com café da manhã e almoço e jantar”.

Lula continua a acreditar fervorosamente no projeto esquerdista na América Latina. Mas, como me disse Cardozo, ministro da Justiça de Dilma Rousseff, “Lula não é um homem que teoriza sobre política como Lênin ou Trotsky. Ele é um pragmático, um sindicalista”. E acrescentou: “Ele também é um gênio político e um homem carismático. Dentro do PT, todos abaixo de Lula lutam uns contra os outros, mas não contra ele. É assim que ele conserva seu poder”.

A equipe de Lula é formada principalmente por esquerdistas bastante doutrinários, mas ele trouxe alguma diversidade ideológica, em um esforço para tranquilizar o lobby empresarial e outros interesses conservadores. Seu vice-presidente é Geraldo Alckmin, um médico de centro-direita que já concorreu contra ele à Presidência. Sua ministra do Planejamento e Orçamento é Simone Tebet, que se inclina para a direita na economia. Mas Cardozo sugeriu que precisaria ir além para cultivar as pessoas que discordavam dele. “A extrema direita vai ser forte e fazer esforços permanentes para desestabilizar as coisas. Para manter o PT em seu lugar e a extrema direita em seu lugar, ele vai precisar de uma aliança ampla”, afirmou. “Você não pode apagar um incêndio com álcool”.

Alguns dias depois, Lula viajou para Brasília, na esperança de ampliar sua rede de aliados. Mesmo com a retomada da Presidência, o partido de Bolsonaro conquistou 99 cadeiras no Congresso, formando a maior bancada da Câmara dos Deputados; na câmara alta, garantiu 14 dos 81 assentos. Para Lula governar o país, ele teria que fazer um acordo com o Centrão, uma coalizão mutante de partidos de centro-direita que passaram a exercer um poder extraordinário na capital. O Centrão tem poucas fidelidades ideológicas; o principal imperativo de seus membros parece ser trocar seus votos por concessões lucrativas para seus eleitores e para eles mesmos.

Mas o Centrão está cada vez mais alinhado com a extrema direita. Ele havia eliminado Rousseff em 2016 e depois protegido seu sucessor, Temer. Também havia efetivamente feito parceria com Bolsonaro quando ele se juntou a um de seus partidos, o Partido Liberal, para concorrer às eleições do ano passado. Os políticos brasileiros mudam de partido com frequência. Bolsonaro já pertenceu a nove. O líder da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, já pertenceu a cinco. Lira foi o principal beneficiário do “orçamento secreto” de Bolsonaro e a pessoa que Lula mais precisava cultivar nesta viagem. A julgar pelo encontro, Lira estava ansioso para fazer um acordo; saiu do Congresso para cumprimentar Lula calorosamente.

Mas Valdemar Costa Neto, o presidente do Partido Liberal, decidiu ficar com Bolsonaro. Um homem astuto e amável na casa dos 70, Costa Neto foi um ex-aliado de Lula; em 2012, ele foi condenado por acusações de lavagem de dinheiro relacionadas ao esquema do mensalão e passou dois anos e meio na prisão antes de ser indultado. “Tive que reconstruir o partido quando saí, porque minha imagem foi destruída”, ele me disse. O Partido Liberal tradicionalmente se inclinava para o centro, mas ele mudou para a direita e, eventualmente, a filiação a Bolsonaro valeu a pena. “Agora temos 99 congressistas”, disse, rabiscando números em um pedaço de papel para demonstrar quanto financiamento eles estavam arrecadando. E explicou brilhantemente: “Temos que abrir espaço para os extremos agora.”

Costa Neto aponta que nada tem contra o novo presidente. Sorrindo, ele me disse que Lula havia perguntado recentemente se apoiaria sua coligação, mas mostrou a matemática e Lula entendeu. Mas, acrescentou, Bolsonaro não aprovava que falasse com Lula: “Bolsonaro não é como você ou eu. Ele não é normal”.

Costa Neto disse que acha que Lula ganhou a eleição de forma justa. Ele se lembra de ter dito a Bolsonaro para aceitar os resultados, relaxar, fazer uma pausa, se tornar o presidente honorário do Partido Liberal e se reconstruir para as próximas eleições. Mas Bolsonaro realmente acreditava que havia vencido, disse — estava ferido e “muito deprimido”. Costa Neto ergueu as mãos exasperado. Por insistência de Bolsonaro, ele contratou uma empresa para investigar suas denúncias de fraude em urnas eletrônicas e, disse Costa Neto, ela voltou com “dados preocupantes”. Ele explicou vagamente que o problema tinha a ver com máquinas de votação que tinham números de série inexplicavelmente idênticos. Em alguns dias, disse, daria uma coletiva de imprensa sobre o assunto.

Ele confessou estar ansioso, pois a denúncia de fraude certamente traria “três vezes mais pessoas às ruas do que as que já estavam acampadas em frente às bases do Exército”. Mas Bolsonaro era um aliado importante e Costa Neto havia prometido levar adiante sua causa. Alguns dias depois, deu sua coletiva de imprensa. A reclamação foi rapidamente rejeitada pelo tribunal eleitoral do Brasil; os militares já avaliaram sua amostra de urnas e declararam Lula o legítimo vencedor. Ainda assim, a reportagem gerou manchetes — o suficiente para alimentar a convicção dos bolsonaristas de que houve uma conspiração.

Na tarde de 8 de janeiro, apoiadores de Bolsonaro lotaram o Distrito Federal, invadindo o complexo que abriga os Três Poderes. Na praça, os manifestantes se reuniram para enfrentar os soldados que protegiam os prédios. Outros rezavam ou gritavam palavras de ordem: “O Brasil foi prostituído por essa gente nojenta e corrupta!” Os manifestantes forçaram a entrada, quebrando janelas e ateando fogo. A polícia, comandada por um ex-funcionário de Bolsonaro, ofereceu pouca resistência e, às vezes, forneceu ajuda.

Marina Dias, jornalista brasileira, estava perto do Ministério da Defesa quando viu uma mulher mais velha vestida com uma camisa camuflada, do tipo que os bolsonaristas usam em homenagem às Forças Armadas. A mulher disse que estava acampada no quartel-general de Brasília há dois meses. Ela havia se juntado ao protesto no dia 8 para pedir a Bolsonaro que se escondesse; ela explicou que Alexandre de Moraes, chefe do Tribunal Superior Eleitoral, estava conspirando para matá-lo.

Dias, como outros observadores, ficou confusa com o momento dos tumultos. Por que esperar até uma semana após a posse de Lula? Quando perguntou à mulher se ela se inspirou na insurreição de 6 de janeiro nos EUA, outro manifestante gritou: “Não responda a ela! Ela é jornalista, esquerdista!” Pressentindo uma ameaça, Dias se afastou, mas foi cercada por bolsonaristas, e alguém a derrubou. “Eu caí na rua, onde as pessoas me chutaram e me socaram”, ela me disse. “Dois homens tentaram me proteger, dizendo: ‘Você vai matá-la e arruinar nosso movimento’”. Mas as mulheres a estavam arranhando, puxando seu cabelo, agarrando seu telefone. Alguém agarrou seus óculos, quebrou-os e gritou: “Temos que matá-la!”

Finalmente, um oficial militar abriu caminho no meio da multidão e puxou-a para longe. Enquanto o policial a escoltava, “as pessoas gritavam que eu era uma prostituta e alguém jogava uma garrafa de água em mim”, ela me disse. “Ficou claro que eles sentiram que não haveria punição”.

No dia da insurreição, Lula e Janja visitavam a cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, a 800 quilômetros de distância. Mas eles conseguiram monitorar a situação, disse-me um assessor. Um dos guarda-costas de Lula entrou no Palácio do Planalto, registrou o tumulto e compartilhou com o presidente em tempo real. Ninguém notou o guarda-costas, disse o assessor, porque “eles também estavam se filmando”.

Do lado de fora do gabinete do presidente, no terceiro andar, os manifestantes destruíram móveis e objetos de arte: um relógio francês do século 17, uma pintura de Emiliano Di Cavalcanti, um antigo vaso chinês. Os vândalos quebraram quase tudo que encontraram, mas foram parados em uma porta de vidro do lado de fora do escritório particular de Lula por sua equipe de segurança pessoal – um grupo de antigos leais, que inclui um ex-policial federal que supervisionou a prisão de Lula e depois foi trabalhar para ele depois que foi libertado.

De São Paulo, Lula e sua equipe trabalharam para assumir o controle, começando por organizar a demissão do funcionário de Bolsonaro que chefiava a polícia distrital e substituí-lo por um legalista. Na confusão, Lula recebeu um telefonema de seu ministro da Defesa e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Eles propuseram que ele assinasse uma “garantia de lei e ordem” — uma diretiva que efetivamente lhes daria poder para restabelecer o controle. Lula recusou, temendo que fosse o primeiro passo de um golpe. Em vez disso, ordenou que a PM retomasse os prédios dos Três Poderes. A Suprema Corte e o Palácio do Planalto foram rapidamente protegidos e, em seguida, os oficiais voltaram seu foco para o Congresso, mobilizando cavalos, canhões de água e spray de pimenta para limpar o prédio e o telhado. Enquanto os helicópteros jogavam gás lacrimogêneo, os manifestantes corriam, tossindo e lutando para respirar.

Apesar da ferocidade da violência, muitos brasileiros acreditaram que se tratava menos de uma tentativa de golpe do que de um ato de teatro político. As pessoas tiraram selfies e abriam conversas com amigos do FaceTime. Um manifestante, transmitindo um vídeo ao entrar no Congresso, pediu aos espectadores que se inscrevessem em seu canal no YouTube. Vendedores vendiam aos espectadores frango grelhado e algodão doce. “Na superfície, 1/8 foi um fracasso retumbante”, disse João Moreira Salles. “A turba saqueou prédios vazios e nem tentou ocupá-los. Foi mais um simulacro de golpe, um espetáculo – um golpe para a era do Instagram”.

A ilegalidade do ataque demonstrou o controle de Bolsonaro sobre seus partidários, mas também o prejudicou politicamente. “Significa o fim de Bolsonaro como candidato democraticamente viável”, argumentou Moreira Salles. Logo após as eleições, Bolsonaro havia fugido para a Flórida, e teria ficado perto de Orlando, como convidado do lutador brasileiro de artes marciais mistas José Aldo. Depois de quatro anos turbulentos como presidente, de repente ele parecia não ter muito o que fazer. Procurou uma igreja para se filiar. Uma tarde, foi flagrado sentado sozinho em um KFC, comendo frango frito direto de uma caixa. Admiradores relataram, com espanto, que haviam conseguido passar em sua casa para bater um papo. “Ele está completamente isolado e sua influência está reduzida à periferia da extrema direita brasileira”, diz Moreira Salles.

O governo Biden disse que levaria a sério um pedido de extradição de Bolsonaro, mas Lula ainda não o apresentou. Mesmo de Orlando, porém, Bolsonaro pode ter um efeito na política brasileira. Como muitos de seus partidários, ele é um provocador habilidoso. Durante sua Presidência, seus oponentes enfrentaram ataques tão violentos online que os brasileiros falaram sobre um “gabinete do ódio” clandestino, dirigido por aliados de Bolsonaro. O PT é menos habilidoso nas redes sociais. (Seus líderes são em grande parte mais velhos; um deles me disse que 60 anos é considerado jovem na legenda.) Membros do governo Lula me disseram que a solução era uma maior regulamentação da mídia, principalmente na Internet. “Você pode permitir a liberdade total, mas não pode permitir que o mal, o ódio, o incentivo à mentira ganhem espaço”, disse Lula.

Na visão de Moreira Salles, as pessoas que se radicalizaram online dificilmente conseguiriam derrubar o governo. “O perigo é uma repetição interminável de 8 de janeiro menores em todo o país”, afirma. “Estradas bloqueadas, refinarias ocupadas, esse tipo de coisa. Se eles não podem tomar o poder, a próxima melhor coisa é tornar a atual Presidência totalmente caótica”.

Ainda assim, a ameaça de violência política permanece real; em dezembro, a polícia deteve um atentado a bomba contra Lula. Pessoas próximas a ele estão particularmente preocupadas com os militares e perplexas com sua relutância em reprimir a violência em 8 de janeiro. Ele tem bases perto dos prédios dos Três Poderes e suas tropas protegeram o complexo durante uma manifestação em 2017 – mas desta vez, apesar dos repetidos pedidos nos dias anteriores para aumentar a segurança, ele interveio tarde e aparentemente sem entusiasmo. Pelo menos 15 militares e forças de segurança estão ligados à insurreição, incluindo um oficial superior reformado da Marinha e um general reformado da reserva do Exército.

Quando Bolsonaro era presidente, entregou grande parte do governo às Forças Armadas, nomeando mais de 6 mil militares para a burocracia civil. Para fazer valer o controle, Lula sabe que terá que expurgar alguns oficiais e cultivar muitos outros. Será um trabalho delicado e impopular. “As Forças Armadas não se juntaram aos esforços de Bolsonaro para permanecer no poder, caso contrário ele ainda estaria em Brasília”, afirma Moreira Salles. “Mas eles não estão se apresentando para condenar os eventos de 8 de janeiro. Lula tem que decifrar esse silêncio e trazer os militares para o lado dele. Vai ser uma das suas tarefas mais difíceis. A história mostra que as Forças Armadas na América Latina não são garantias da democracia”.

Alguns dos políticos que se beneficiaram com a ascensão de Bolsonaro estão descobrindo como manter seu ímpeto sem ele. Sergio Moro, o juiz que prendeu Lula, foi durante algum tempo uma espécie de herói popular do Brasil de direita. Nas últimas eleições, lançou uma campanha para presidente antes de desistir para apoiar Bolsonaro, a quem treinou nos debates. Ele também concorreu ao Senado e ganhou uma cadeira, representando seu estado natal, o Paraná, no sul do Brasil.

Eu o conheci em seu escritório em Curitiba, a capital do estado, em uma torre moderna que se erguia sobre um centro de gramados bem cuidados, igrejas e churrascarias. Homem bem-arrumado e com seriedade de diácono, foi imperturbável enquanto conversávamos sobre seu papel no combate político dos últimos anos.

Quando perguntei por que ele havia aceitado servir como ministro da Justiça de Bolsonaro, Moro disse que esperava fazer algo de bom para o país: “Quem não tentaria isso?” Antes de 2018, ele disse, não sabia quase nada sobre Bolsonaro. Quando observei que Bolsonaro já era famoso pelo comportamento ofensivo, Moro se inquietou. “Ouvi muitas pessoas dizerem: ‘Estou aliviado por você entrar para o governo, porque você será a voz da moderação’. E nunca endossei nenhum tipo de ataque, ataques verbais do presidente contra mulheres ou qualquer coisa do tipo”, afirmou.

Moro destacou que havia deixado o cargo após um ano e meio, após Bolsonaro impedir uma investigação policial sobre a atuação de um de seus filhos. Quando perguntei se acreditava que Bolsonaro era culpado dos crimes pelos quais era acusado, ele assentiu. Então por que voltou a se juntar a ele durante os debates com Lula? “Nunca me arrependi do que disse no passado”, afirmou. “Passado é passado. Mas, se você tem um segundo turno com duas opções, precisa fazer uma escolha”. Mas por que prender um político que você considera corrupto e ajudar outro? “Bem, estamos falando de diferentes níveis de corrupção. E você precisa considerar outras questões. Não acredito no pensamento econômico do Partido dos Trabalhadores”.

Moro não negou que Lula tivesse vencido a eleição, mas falou com simpatia sobre as pessoas que questionaram sua legitimidade. “Sou contra qualquer tipo de violência ou qualquer tipo de golpe”, afirmou. “Mas tem muita gente insatisfeita com a volta de Lula, porque há essa percepção de que os escândalos de corrupção não foram resolvidos da forma adequada. Então essa gente acha que o Lula nunca deveria ter sido candidato”. Mesmo antes de 8 de janeiro, reconheceu que os manifestantes haviam “cometido alguns erros”. Mas, disse, “acredito que a democracia brasileira deveria dar uma resposta a essas pessoas e entendê-las, e não tratá-las todas como vilões. Eles não são. Eles têm famílias — eles têm filhos”.

Pessoas próximas a Lula estavam lutando com a mesma preocupação essencial: como poderiam trazer os eleitores de Bolsonaro para o lado deles? O protegido de Lula, Guilherme Boulos, é um ativista e político de 40 anos. Nos encontramos para o café da manhã em um restaurante tipo buffet “a quilo”, onde os clientes pagam de acordo com o peso da comida empilhada em seus pratos. Ele lamentou: “Antes, a oposição era, digamos assim, civilizada. Temos um problema real no campo”.

Como fundador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Boulos passou anos organizando ocupações de prédios abandonados para fornecer abrigo aos brasileiros necessitados. Ele ganhou uma cadeira legislativa nas últimas eleições e trabalhará de perto com Lula. Quando perguntei sobre os bolsonaristas, disse: “Temos que aprender a conversar com essas pessoas”. Mas ele sugeriu, no tom de um nova-iorquino falando sobre os texanos, que as áreas rurais do Brasil eram efetivamente um país diferente. “É uma cultura predominantemente de direita, que gira em torno da ideia de que as propriedades devem ser protegidas das invasões de terras da esquerda”, disse. “Seu programa econômico é neoliberal e socialmente moralista. Aí está o nosso problema: a esquerda não atendeu esse setor, e precisa mesmo, se quiser derrotar o bolsonarismo”.

Lula, disse, “tem uma capacidade extraordinária de governar e de articular pontos em comum com diferentes setores”. Mas os últimos quatro anos tornaram as diferenças muito mais difíceis: “Bolsonaro não governou – ele estabeleceu os marcos para uma batalha ideológica e quase nos venceu ao quase ganhar a reeleição!”

Boulos estima que o bolsonaristaos extremistas representavam de 10 a 12% da população brasileira: “Essas são as pessoas que não acreditam na pandemia, que defendem o uso da tortura e que acreditam que a Terra é plana”. A chave, disse ele, era melhorar suas oportunidades econômicas. “Há quem diga que o Brasil tem se tornado cada vez mais um país polarizado. Eu diria que sempre foi polarizado. Pense nisso: este país é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, enquanto 30 milhões de seus cidadãos passam fome e 1% da população possui a maior parte dos recursos. Claro que vai haver polarização!” Ele me lembrou que, quando Lula deixou o cargo, o eleitorado o apoiou de forma esmagadora – “porque a vida deles era melhor!” Agora, porém, há menos dinheiro fluindo; a economia está em recessão, e o país ainda está se recuperando da pandemia. “A margem de manobra de Lula será reduzida”.

Nas semanas após a vitória de Lula nas eleições, ele muitas vezes parecia que esperava simplesmente retornar o país à época anterior à posse de Bolsonaro – quando a Amazônia estava menos ameaçada, a economia prosperava e o Brasil estava em uma coorte de rápido crescimento como países em ascensão. “Foi o melhor momento de ascensão social dos pobres da América Latina”, disse-me ele em São Paulo, acrescentando: “Vamos recuperar os Brics !”

Quatro dias após a insurreição de 8 de janeiro, seu governo divulgou seu plano econômico, que exige a restauração do Bolsa Família, aumento da ajuda aos pobres, retrocesso nas privatizações e aumento dos impostos sobre a gasolina. De acordo com Brian Winter, editor do Americas Quarterly e analista de longa data da política brasileira, “os anúncios basicamente obtiveram um C-plus dos mercados – ninguém muito animado, ninguém muito chateado”. Mas Winter não estava otimista de que o governo Lula seria capaz de sair de uma crise de uma década.

Recuperar a Amazônia será ainda mais difícil. Durante o mandato de Bolsonaro, enquanto fazendeiros e garimpeiros desbravavam a terra, os incêndios consumiam uma área de floresta tropical do tamanho da Bélgica. A região está repleta de sentimentos antigovernamentais, e Lula e seus aliados estão efetivamente pedindo aos moradores que não tirem proveito dos valiosos recursos ao seu redor. Um fazendeiro com quem falei disse: “Como você pode viver em cima de um baú de tesouro e não poder fazer nada com ele?”

A ministra do Meio Ambiente de Lula é Marina Silva, que serviu por cinco anos durante seu primeiro mandato, mas renunciou frustrada com seu desejo de equilibrar conservação com desenvolvimento. Agora Lula a havia chamado de volta, prometendo uma política de tolerância zero com o desmatamento. Marina Silva, filha de um seringueiro de ascendência negra brasileira, é uma cristã evangélica, uma mulher de fala mansa e cabelos compridos na casa dos sessenta. Em seu escritório em Brasília, ela me disse que espera expandir a agricultura sustentável ao mesmo tempo em que detém o desmatamento ilegal. Reconhece que ainda haverá violações das leis ambientais e que o processo vai levar tempo. “Não seremos capazes de fazer isso em quatro anos – isso seria utópico”, disse. “O problema durante Bolsonaro foi que os transgressores ficaram com total impunidade. Com Lula, pelo menos, a expectativa de impunidade vai acabar”.

Lula e seus assessores estão conscientes de que o mundo os julgará menos pelos detalhes da governança ordinária do que pela forma como lidam com crises monumentais: o colapso do meio ambiente e o quase colapso da democracia. Simone Tebet, sua ministra do Planejamento, me disse: “O grande problema do presidente Lula não é apenas econômico. Ele pode resolver o problema da inflação, o problema do desemprego, diminuir a desigualdade social, diminuir o percentual de pobres no Brasil. Mas, se não trabalhar pela pacificação e união política, daqui a quatro anos o bolsonarismo voltará com força”. Aos 77 anos, Lula tem apenas um mandato e muito a fazer, ponderaTebet. “Ele quer limpar a alma do Brasil”, diz. “Ele quer acabar com a injustiça. Não tenho dúvidas de que ele vai montar uma equipe para isso. O que me preocupa é se ele terá força, habilidade, discernimento para entender que seu papel principal não é só nesses quatro anos. É construir pontes para que possamos, em 2026 e 2030, ter governos democrátiWcos no Brasil”.

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