9 de janeiro de 2023

William Barbalonga foi o primeiro líder revolucionário da Inglaterra

William Barbalonga liderou uma revolta do século 12 em Londres, que constitui uma parte fundamental no fio da luta de classes que percorre a história inglesa. Ele merece um lugar de honra na tradição radical.

Dominic Alexander

Jacobin

Ilustração da morte de William Barbalonga por John Cassell História Ilustrada da Inglaterra, vol. I, 1857. (Getty Images)

A figura do século XII, William Barbalonga, já foi amplamente conhecido como um “campeão espirituoso” dos “pobres” de Londres, executado porque “a morte foi por muito tempo o remédio favorito para silenciar os defensores do povo”, nas palavras de Charles Dickens. A história de Barba Longa e a revolta que ele liderou em 1196 formaram parte da tradição radical do século XIX.

No entanto, essa tradição falhou em sobreviver no século seguinte, e Barbalonga afundou na obscuridade. Ele merece ser resgatado dessa posição, pois a revolta de 1196 constitui uma parte fundamental do fio da luta de classes que percorre a história inglesa.

Pregadores turbulentos

William Fitz Osbert, várias vezes referido pelos cronistas como "Barba Longa" ou "William com a barba", era um descendente da elite dominante de Londres, mas seu apelido sinalizava sua adoção do papel de um homem santo ascético. Foi inquestionavelmente esse status religioso, desvinculado de qualquer forma oficial da Igreja, que lhe deu o destaque e a autoridade necessários para liderar um movimento popular entre os cidadãos pobres e medianos de Londres.

Desde meados do século XI, a cristandade ocidental esteve envolvida em conflitos sobre os poderes papais e reais e a pureza espiritual ou não do sacerdócio e dos poderosos prelados. Ao longo desse tempo, uma variedade de homens santos, pregadores ascéticos e eremitas frequentemente despertavam o entusiasmo popular, que às vezes podia se voltar contra a ordem estabelecida.

Em Roma, por exemplo, durante os anos entre 1145 e 1155, Arnaldo de Bréscia primeiro se juntou e depois liderou uma revolta cívica contra as autoridades governantes, a própria Igreja. Embora as autoridades admitissem que Arnold era genuinamente de “vida santa” e doutrina ortodoxa, eles o executaram.

A Inglaterra estava notavelmente livre dos movimentos heréticos encontrados em outros lugares durante o século XII. Mas a história de Barba Longa mostra que ela passou por conflitos sociais semelhantes aos do restante da Europa Ocidental.

Comuna de Londres

A Inglaterra estava bastante atrasada em termos de desenvolvimento urbano nessa época, mas, como Aragão na Península Ibérica, outro reino na periferia da cristandade ocidental, era bastante avançada em termos de ter uma monarquia poderosa e centralizada. Esse contexto deu ao corpo de cidadãos de Londres, naquela que era de longe a cidade de maior tamanho do reino, considerável importância política.

Os londrinos já haviam ajudado a determinar o resultado de uma guerra civil aristocrática conhecida como Anarquia. Eles desafiaram à força a imperatriz Matilda no ponto de seu triunfo sobre o rei Stephen em 1141, levando à recuperação do partido de Stephen. O ato de resistência de Londres lhe rendeu a concessão de uma “comuna” reconhecida, ou autogoverno, do rei Stephen.

Essas comunas se espalharam da Itália para a França durante o século XII e representaram um desafio definitivo ao poder principesco feudal. Um cronista inglês reclamou que a comuna era “um tumulto do povo e um terror do reino”.

Essa presença disruptiva pôde se reafirmar em 1191, quando explodiu o ressentimento da nobreza contra o governo real representado por William Longchamp. Longchamp, o chanceler de Ricardo I, ficou no comando do reino enquanto o rei estava em uma cruzada no Oriente Médio.

Ele foi deposto em duas assembléias realizadas em Londres, a segunda em um campo a leste da cidade. Este encontro contou com a presença não só dos barões, liderados pelo Príncipe João, mas também da elite mercantil e latifundiária da cidade, bem como de um grande número de cidadãos comuns.

Foram os habitantes da cidade que, prenunciando a linguagem usada no Levante de 1381, chamaram o agente do poder real de “um perturbador da terra e um traidor” e se recusaram a fechar os portões da cidade contra o partido rebelde. Este grupo, chegando à noite, foi “recebido pelos alegres cidadãos com lanternas e tochas”.

A recompensa de Londres seria mais uma vez receber poderes de autogoverno. Esses poderes parecem ter sido perdidos algum tempo depois de 1141, mas aparecem permanentemente no registro histórico a partir deste ponto.

Um zelo pela justiça

Os momentos em que a classe dominante está dividida contra si mesma são sempre socialmente perigosos, especialmente quando as classes populares se mobilizam em apoio de uma facção contra a outra. Raramente é fácil colocar o gênio do protesto de volta na garrafa. O levante contra a autoridade real em 1191 evidentemente tornou os londrinos pobres e medianos mais conscientes de seu peso potencial em relação à oligarquia cívica. Foi isso que preparou o cenário para a rebelião de Barba  Longa.

A questão imediata da revolta foi a cobrança de impostos para pagar o resgate do rei Ricardo I, que havia sido feito prisioneiro pelo imperador alemão Henrique VI quando voltava da cruzada. Roger de Howden, o único cronista contemporâneo que demonstra alguma simpatia cautelosa por Barba Longa, escreveu que “os homens ricos, poupando suas próprias bolsas, queriam que os pobres pagassem tudo”. Ele prosseguiu que Barba Longa

percebendo isso, sendo inflamado pelo zelo pela justiça e pela equidade, ele se tornou o defensor dos pobres, sendo seu desejo que cada pessoa, tanto rica quanto pobre, devesse dar de acordo com sua propriedade e meios.

Barba Longa ocupou o cargo de uma espécie de magistrado em Londres e, por meio dele, organizou grandes reuniões públicas que evidentemente tinham o caráter de assembléias políticas desafiando as autoridades. Seus partidários foram organizados por juramento.

O cronista Guilherme de Newburgh dá o relato mais completo dos eventos, embora seja inteiramente planejado para denegrir e desacreditar Barba Longa. Ele afirmou que cinqüenta e duas mil pessoas foram inscritas dessa forma. Esses números devem ser um grande exagero, sendo maiores do que a população de Londres na época, mas deixam claro que esse foi um movimento de massa.

"Salvador dos pobres"

A certa altura, Fitz Osbert deixou Londres para encontrar o rei do outro lado do canal e, embora não esteja claro que tipo de resposta ele recebeu, a viagem parece ter fortalecido sua determinação em vez de enfraquecê-la. Parece que a revolta se radicalizou a partir desse ponto, dado o discurso milenar, até mesmo revolucionário, atribuído a Barba Longa por Guilherme de Newburgh:

Eu sou o salvador dos pobres. Oh, vocês pobres, que experimentaram o peso das mãos dos homens ricos, bebam de meus poços as águas da doutrina da salvação e podem fazer isso com alegria; pois o tempo de sua visitação está próximo. Pois separarei as águas das águas. As pessoas são as águas. Separarei o povo humilde e fiel do povo arrogante e traiçoeiro: separarei os eleitos dos réprobos, como a luz das trevas.

Esta passagem notável provavelmente empurra as palavras de Fitz Osbert mais para uma heresia definitiva do que seria provável. Na verdade, ele não foi acusado de erro doutrinário na época. No entanto, não há razão para descartar a evidência que ela fornece de marcado conflito de classes, na associação dos pobres ou humildes com os eleitos dos salvos, e dos ricos com as trevas.

Barba Longa e seus partidários evidentemente paralisaram a oligarquia de Londres, pois a primeira ação contra eles veio do governo real, na pessoa do juiz do rei, Hubert Walter. De acordo com Howden, ele ordenou que, se qualquer pessoa comum fosse encontrada fora de Londres, deveria ser presa como inimiga do rei.

No devido tempo, “mercadores do povo” encontrados em Stamford Fair foram de fato presos. Parece, portanto, que uma das questões em jogo eram os privilégios comerciais das grandes famílias de comerciantes da elite e seu desejo de controlar os comerciantes menores, os “mercadores do povo”.

Além disso, Newburgh observa que Hubert Walter fez reféns de famílias de Londres, evidentemente para impedi-los de dar apoio ativo a Barba Longa. Essas ações foram claramente projetadas para criar uma barreira entre Barba Longa e seus apoiadores mais prósperos.

Esmagando a revolta

Não está claro até que ponto tudo isso enfraqueceu o movimento. William de Newburgh coloca a pregação milenar de Barba Longa após o ponto em que os reféns foram feitos. Podemos especular que, à medida que o movimento se tornou mais focado nos artesãos e nos pobres, a postura de Barba Longa tornou-se mais radical por natureza. De qualquer forma, já deve ter parecido ameaçador o suficiente para a ordem social antes desse ponto para que o governo real interviesse.

Por algum tempo, Fitz Osbert permaneceu fora do alcance de seus oponentes, pois estava “tão cercado pela população” que não podia ser preso. As autoridades tiveram que esperar pelo seu momento: não é exagero nem anacronismo dizer que existiu uma situação de dualidade de poder em Londres durante um período de 1196. Isso não teria sido inédito na Europa medieval. Tanto em Milão quanto em Florença, durante o século XI, conflitos sociais e religiosos paralisaram a classe dominante local.

O grau em que os eventos em Londres alarmaram a classe dominante é sublinhado pela maneira como eles puseram fim a esses eventos. Dois “nobres cidadãos” descobriram um momento em que Fitz Osbert estava menos protegido pelo povo, e Hubert Walter os enviou com uma força armada para capturá-lo. Barba Longa e seus companheiros se refugiaram na igreja de St Mary-le-Bow.

Walter, que era o arcebispo de Canterbury, além de juiz do rei, ordenou que a igreja fosse incendiada para que os rebeldes fossem expulsos. Isso foi um choque considerável para os contemporâneos. O santuário, o direito de qualquer fugitivo de se refugiar em um espaço sagrado, era levado muito a sério. Mais tarde, na Idade Média, as violações do santuário se tornariam quase rotineiras, mas não era neste momento.

Barba Longa, mortalmente ferido após escapar da igreja em chamas, foi sumariamente julgado e executado. Logo após sua morte, as autoridades tiveram que suprimir um crescente culto aos mártires. O culto parece ter atraído a atenção até mesmo de pessoas de fora de Londres. Segundo Newburgh, sua popularidade era tanta que

a ralé idiota, portanto, mantinha vigilância constante e vigiava o local; e quanto mais honra eles prestavam ao homem morto, tanto maior o crime que eles imputavam a ele por quem ele havia sido morto.

Legados

A rebelião de William Barba Longa se assemelha a outros padrões de desafio revolucionário aos governantes estabelecidos, onde um desafio inicial à autoridade permite uma radicalização mais ou menos rápida. O poder político então se desfaz diante da revolta até que a camada social mais baixa capaz de se auto-organizar seja mobilizada.

A revolta de 1196 foi reprimida, mas não deixou de ter um impacto de longo prazo, ao contrário do julgamento de muitos historiadores. Devemos ver isso no contexto das contínuas lutas entre a Coroa e os barões e habitantes da cidade sob os reis João e Henrique III no século XIII.

A rebelião também pode ter tido um impacto imediato na arrecadação de receitas do povo de Londres, que foi, afinal, o ponto de partida da agitação. Em 1199, os cidadãos de Londres deram ao rei João, após sua ascensão ao trono, três mil marcos pela confirmação das liberdades concedidas pelo rei Ricardo.

Não sabemos a natureza precisa das práticas injustas que os principais cidadãos londrinos usavam para transferir a carga tributária antes de 1196. Mas o pagamento em 1199 foi avaliado por níveis de riqueza, com os cidadãos mais ricos pagando quatro xelins por libra, aqueles de menor riqueza dois xelins, e aqueles com menos de doze pence em aluguel ou bens móveis não pagando nada. Além disso, em 1206, o rei D. João parece ter intervindo para insistir em uma avaliação equitativa da tributação daquele ano, ordenando a eleição de vinte e quatro jurados para supervisionar uma cobrança justa.

Sem dúvida, João fez isso por motivos de vantagem própria, e não devido a uma preocupação particular com os pobres. Ele já era impopular entre os barões, e sua concessão da Carta Magna estava a menos de uma década. No entanto, a intervenção de John em 1206 também é uma indicação de que a dissidência sobre o ônus da tributação em Londres continuava sendo um problema e que os pobres estavam se afirmando com sucesso.

Uma nova fase

A revolta de 1196 pode ter sido reprimida, mas isso não significa que suas queixas não tenham sido, até certo ponto, abordadas por governantes que não queriam ver esse tipo de dissensão repetido. As pessoas comuns de Londres haviam entrado nos cálculos políticos da elite. O sentimento popular permaneceu relevante mais tarde durante o conturbado reinado de Henrique III, que estava atingindo um novo ponto de crise durante a década de 1250, quando o famoso cronista Matthew Paris escreveu um relato do episódio do Barba Longa em sua longa história da Inglaterra.

Paris, cujas simpatias tendiam a não ser com o partido real, apresentou Barba Longa como um herói quase fanfarrão do povo, ao mesmo tempo em que removia as ressonâncias religiosas mais perigosas. No entanto, o cronista encerrou sua narração desta história dizendo que ainda havia pessoas que acreditavam que Barba Longa poderia ser justamente considerado um mártir.

O que parece ter chegado ao fim depois de Barba Longa é a proeminência dos homens santos ascéticos na Inglaterra, onde uma literatura extraordinariamente grande se desenvolveu celebrando uma variedade de santos eremitas e ascetas. Essa atividade cessou em grande parte, assim como a latitude que os ascetas possuíam no século XII para falar a verdade ao poder.

Um homem santo "simples e rústico" que profetizou que o reinado do rei João terminaria em 1212 foi executado, junto com seu filho, assim que a profecia se mostrou incorreta. Este foi um episódio singular na história da asceta popular, mas resume o fim de uma fase da religião popular, onde pregadores errantes, ascetas e eremitas foram foco de expressão de vários tipos de conflito social. No entanto, foi também o início de outra fase na história da Inglaterra, quando os pobres urbanos e rurais começaram a deixar sua marca na esfera política.

Colaborador

Dominic Alexander é historiador e autor de Saints and Animals in the Middle Ages (2008).

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