15 de janeiro de 2023

Uma presidência de alto risco

Entrevista com Janette Habel, cientista política e ativista política francesa, sobre o complexo cenário atual do Brasil. A especialista em questões latino-americanas aborda aspectos cruciais desta nova situação e os debates estratégicos que ela implica.

Uma entrevista com
Janette Habel

Jacobin

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a primeira reunião ministerial de seu governo, em 6 de janeiro. (Imagem Ricardo Stuckert/PR, via Wikimedia Commons)

Entrevista por
Mathieu Dargel

Entrevista originalmente publicada no La gauche écosocialiste em 23 de novembro de 2022. Agora é publicada em versão ampliada e atualizada exclusivamente para a Jacobin Latin America. Janette Habel, cientista política e ativista política francesa, é especialista em questões latino-americanas. Leciona no Instituto de Pós-Graduação em América Latina (IHEAL) da Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris III). É membro do Parlamento da Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES), a força majoritária da esquerda radical na Assembleia Nacional da França.

A vitória de Lula no segundo turno das eleições presidenciais brasileiras trouxe enorme alívio para todas as forças progressistas no Brasil e na América Latina. Com ela, o avanço das forças de extrema-direita em todo o mundo foi interrompido. Mas essa vitória, alcançada por uma margem estreita após uma campanha de extrema violência, esconde não poucas contradições e não poucos perigos. Para se ter uma ideia exata dessas contradições e desses perigos, é preciso começar lembrando que o Brasil é um país de 215 milhões de habitantes e que a extensão de seu território equivale a 17 vezes a da França. A crise de saúde resultou na morte de mais de 700.000 pessoas no Brasil. Por outro lado, suas desigualdades sociais são tão formidáveis ​​que mais de 62 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza. Na Amazônia, a política de desmatamento de mais de 40 mil quilômetros quadrados realizada por Bolsonaro agravou a situação dos povos indígenas.

Este contexto permite compreender os resultados eleitorais. Embora Lula tenha saído vitorioso, com 50,9% dos votos, não se pode esquecer que no segundo turno obteve apenas 3 milhões de votos a mais do que no primeiro, enquanto Bolsonaro somou 7 milhões de votos à sua contagem. O Partido dos Trabalhadores (PT) está em minoria na Câmara dos Deputados, onde a bancada de Bolsonaro ainda tem 190 do total de 513 cadeiras, enquanto 53% das cadeiras estão nas mãos de partidos de direita. No nível federal, além disso, os três maiores estados industriais — Rio, São Paulo e Minas Gerais — com uma população total combinada de mais de 80 milhões, elegeram governadores de direita.

Como se não bastasse, após várias semanas de silêncio, em 21 de novembro Bolsonaro acabou contestando oficialmente os resultados eleitorais, alegando o suposto mau funcionamento de vários milhares de urnas eletrônicas. Após esse anúncio, seus partidários imediatamente retomaram os bloqueios de estradas e convocaram uma insurreição em frente aos quartéis.

A seguir, Janette Habel aborda aspectos cruciais dessa nova situação e os consequentes debates estratégicos em torno dela, que são de extrema importância para todas as forças de esquerda hoje.

Mathieu Dargel

Que análise a senhora faz da ofensiva bolsonarista uma semana após a posse de Lula?

Janette Habel

A extrema direita está à espreita. A estreita margem de diferença nos resultados eleitorais - 50,9% dos votos para Lula e 49,1% para Bolsonaro após campanha eleitoral marcada pela violência - tem servido de incentivo para os bolsonaristas tentarem dar um golpe. A sociedade brasileira é polarizada, então a euforia que marcou a posse de Lula foi falsamente tranquilizadora. Contrariando as esperanças dos militantes de Lula de que uma nova página fosse virada, que o bolsonarismo fosse coisa do passado, o assalto em massa às principais sedes do poder - Congresso, Supremo Tribunal Federal, Palácio do Planalto - mostra claramente que isso é não é o caso. Estamos enfrentando acontecimentos extremamente preocupantes. Desde então, 1.500 apoiadores de Bolsonaro foram detidos e Ibaneis Rocha, o governador de Brasília, foi temporariamente suspenso do cargo. Os acampamentos erguidos em frente aos quartéis foram desmantelados, mas e as pessoas que os montaram e o apoio policial e militar que receberam? Há indícios da cumplicidade da Polícia Militar com os bolsonaristas. Os manifestantes conseguiram ocupar os prédios das principais instituições do país sem a intervenção dos policiais presentes, alguns dos quais inclusive se juntaram aos manifestantes. A passividade dos militares foi notada de maneira especial. Os centros de poder são estabelecimentos de segurança nacional e estão sob proteção militar. No entanto, suas instalações permaneceram ocupadas por horas sem a intervenção da polícia. A tentativa de golpe revelou a amplitude do apoio e os laços que Bolsonaro tem na polícia e nos militares. Redes construídas graças aos privilégios e à impunidade de que esses órgãos gozaram durante a gestão do ex-presidente.

Bolsonaro não é um palhaço, é um político de extrema direita que, como presidente, colocou em prática uma agenda brutal de desmonte social e repressão e que chegou a elogiar na Assembleia Nacional as supostas façanhas do coronel que havia participou das sessões de tortura de Dilma Rousseff[1]. Muitas vezes, a mídia internacional se concentrou na crueza do personagem, em suas provocações e em sua falta de cultura, mas o essencial não está aí.

Nesse contexto, não é difícil prever que o novo mandato de Lula será mais complexo e árduo. Em primeiro lugar, como consequência da mudança da conjuntura econômica entre a presidência anterior de Lula e a atual. Nos seus dois primeiros mandatos, Lula beneficiou de uma situação econômica excepcional, graças à subida dos preços das matérias-primas, que lhe permitiu implementar reformas sociais, como o "bolsa-família", que resultaram numa melhoria notável da situação dos mais pobres. Foi então possível tirar partido desta situação econômica favorável e conseguiu-se uma redução significativa da pobreza. Não foram reformas estruturais, mas essencialmente "transferências sociais condicionadas", como as chama o Banco Mundial, ou seja, transferências financeiras feitas através de cartões de crédito, sujeitas a condições, incluindo que as famílias tenham seus filhos vacinados ou que frequentem a escola. Isso não deixou de gerar efeitos positivos, mas ao mesmo tempo não implicou grandes convulsões na economia brasileira, nem mesmo mudanças substanciais na correlação de forças entre as classes dominantes e as classes trabalhadoras. Hoje, depois da pandemia, a situação econômica está muito mais desfavorável, então será muito mais difícil realizar as reformas sociais planejadas por Lula.

Mathieu Dargel

Que papel desempenhou a gestão da pandemia?

Janette Habel

A pandemia no Brasil tem sido um dos piores desastres humanitários que presenciamos em escala global. Por esta razão, mais de 700.000 pessoas morreram e estima-se que metade delas poderia ter sido salva. Bolsonaro se manifestou não apenas contra a vacinação, mas também contra qualquer outra medida que viesse a conter a pandemia. Para entender o que aconteceu, é preciso lembrar que no Brasil, como na maioria dos países latino-americanos, a economia informal, a economia “cinza”, emprega mais da metade da população ativa. Ou seja, mais de metade da população ativa não beneficia de qualquer proteção social contra o desemprego nem de sistema de segurança social. Para elas, poder continuar trabalhando significa, simplesmente, poder sobreviver e alimentar os filhos, entre outras coisas. Neste caso, aos olhos de alguns dos mais pobres, a política de Bolsonaro não era uma política criminosa, mas uma política que lhes permitia salvaguardar as suas condições de existência, o que explica o apoio que Bolsonaro recebeu de muitos brasileiros, incluindo alguns dos mais pobres.

Mathieu Dargel

O balanço dos anos Dilma teve algum peso nisso?

Janette Habel

O saldo desses anos começou a ser percebido como negativo a partir de 2013. Após a crise de 2008 houve um revés econômico e em 2013 começaram a surgir importantes movimentos sociais em prol da preservação do poder de compra dos salários contra a inflação, em especial uma grande greve de professores e professoras e funcionários públicos exigindo aumentos salariais. Dilma Rousseff tentou lidar com esse movimento da melhor maneira possível, mas não conseguiu atender às suas demandas, ao mesmo tempo em que cedeu às demandas de autoridades que exigiam uma série de benefícios. Assim, o balanço geral do PT, que havia se tornado muito positivo após os dois mandatos de Lula – segundo as pesquisas, ele então gozava de 80% de aprovação – se deteriorou. A direita lançou então uma campanha midiática de incrível brutalidade em torno da questão da corrupção do PT e de suas lideranças. Esse elemento da balança veio então à tona, já que os escândalos revelados sobre o PT muitas vezes eram verdadeiros e, certamente, em escala muito maior do que os relacionados ao próprio Lula.

No complicado sistema eleitoral brasileiro, o PT praticava a compra de votos no Congresso para aprovar leis e obter maiorias no Parlamento, e o financiamento de deputados, alguns deles do chamado "centrão" - isto é, no Brasil , os deputados que carecem de filiação estável —, através de mensalidades, conhecidas como "mensalao". Esse instrumento de corrupção de eleitos acabou encurralando o próprio PT e alguns de seus eleitos e governadores, o que em geral manchou consideravelmente seu prestígio. Acrescente-se a isso a multinacional de obras públicas Odebrecht, envolvida nesses escândalos, por sua vez envolvida em toda uma série de desfalques.

Mathieu Dargel

Aí acontece a operação Lava Jato...

Janette Habel

Naquele momento, a direita percebeu o quanto poderia ganhar com essas acusações. Foi então lançada uma gigantesca campanha midiática, por iniciativa do juiz Sergio Moro —que viria a ser ministro da Justiça no governo Bolsonaro—, por meio da qual o PT, Lula e Dilma Rousseff eram acusados ​​de corrupção. Esta campanha teve grande repercussão junto à população, pois algumas das revelações foram testadas. As mais duvidosas eram aquelas que tinham Lula como liderança do PT como alvo direto. Lula acabaria por passar 580 dias na prisão, depois que Dilma Rousseff foi deposta por um golpe institucional e substituída por seu vice-presidente, Michel Temer. A operação Lava Jato provocou uma mudança na opinião pública e teve profundas consequências no plano político e social.

Existe no Brasil um racismo estrutural herdado do passado escravista. Lembremos que a escravidão só foi abolida em 1888. Atualmente, cerca de 55% da população é negra ou mestiça. Essa é uma questão muito delicada e Lula adotou medidas de discriminação positiva ao promover o acesso de jovens discriminados às universidades [2]. Mas com a recessão econômica, o racismo voltou a proliferar e se manifestar na sociedade brasileira. A isso deve ser adicionado o progresso espetacular feito pelos evangélicos. Até recentemente, o Brasil era um dos bastiões do catolicismo naquele continente católico que é a América Latina. No entanto, entre as populações mais pobres – negras ou mestiças – o catolicismo era muitas vezes encarnado por padres brancos e conservadores, com exceção das comunidades eclesiais de base movidas pela teologia da libertação, muitos dos quais afirmavam o marxismo. A teologia da libertação foi firmemente combatida e condenada pelo Vaticano, que excomungou alguns de seus padres. É, portanto, nesse vácuo que, aproveitando a rejeição causada pelo catolicismo mais apegado às suas tradições, prosperaram os evangélicos, seita protestante oriunda dos Estados Unidos. Entre os evangélicos, que pelos cálculos representariam um terço ou mais da população, principalmente entre os pobres, há uma proporção significativa de negros. Os evangélicos conseguiram influenciar alguns setores da classe trabalhadora, e isso a serviço de políticas reacionárias, opondo-se ao aborto, favorecendo os mais ricos, celebrando o sucesso individual, em consonância com os princípios da economia neoliberal. Com o apoio dos setores de extrema-direita, que por sua vez apoiam totalmente Bolsonaro. Tudo isso forma um feixe de explicações muito importante, ao qual podemos acrescentar o fato de que, do ponto de vista socialista, ou pelo menos democrático, o que está acontecendo na Venezuela ou em Cuba tem repercussões negativas. Esse quadro geral explica a eleição de Bolsonaro em 2018 e o prolongamento de sua influência. Bolsonaro habilmente nomeou Sergio Moro como ministro da Justiça, após o que, aos olhos de alguns, graças a uma campanha na grande mídia, o governo Bolsonaro às vezes parecia menos corrupto do que o anterior.

Mathieu Dargel

Mas a realidade era bem diferente, não é?

Janette Habel

Bolsonaro priorizou os interesses do agronegócio do começo ao fim, o desmatamento da Amazônia — em mais de 40 mil quilômetros quadrados — e o cultivo da soja, e ignorou todas as disposições destinadas a proteger a Amazônia e suas populações indígenas. No plano institucional, ampliou consideravelmente os poderes do exército. Após o fim da ditadura militar (1964-1985), os privilégios do exército não foram questionados ou mesmo diminuídos nos governos Lula e Dilma, mas foram consideravelmente reforçados por Bolsonaro, que assim consolidou sua base social, o que explica o apoio de alguns soldados à insurreição. Em suma, todos esses fatores, sem contar a desestruturação social em curso nas favelas, explicam a altíssima pontuação alcançada por Bolsonaro nas eleições de 2022. Atualmente, 66 milhões de brasileiros vivem abaixo do limiar da pobreza. Se olharmos para a situação das favelas, o mais evidente é a penetração das drogas, a criminalidade, a insegurança e a extrema pobreza agravada pela pandemia. Por ocasião das últimas eleições, Bolsonaro já havia suprimido todas as conquistas sociais, ao mesmo tempo em que aumentava os poderes da polícia, cujas intervenções criam situações traumáticas e difíceis de controlar. No entanto, é preciso acrescentar que, nos últimos dois meses de campanha eleitoral, Bolsonaro liberou uma série de novos auxílios temporários, entre os quais alocações financeiras para os setores mais desfavorecidos, a fim de comprar o voto popular.

Essa situação gerou um sentimento de insegurança nas classes médias, uma demanda por ordem e proteção, que Bolsonaro conseguiu implementar com perfeição.

Mathieu Dargel

E no plano econômico?

Janete Habel

Agronegócio, banqueiros, empresários, grandes empresas e o exército apoiam Bolsonaro. A burguesia industrial apresenta um quadro mais heterogêneo, já que para alguns de seus setores era fundamental frear a cada vez mais criticada presidência de Bolsonaro, dado o isolamento do Brasil no cenário internacional.

Mathieu Dargel

A tentativa de golpe era previsível?

Janette Habel

Lembremos que nem Bolsonaro nem os bolsonaristas reconheceram a vitória de Lula. Imediatamente após a divulgação dos resultados, estouraram tumultos e estradas e acessos às principais cidades foram bloqueados, inclusive pela polícia. Foram ouvidas exortações para que os militares deixassem o quartel. Mas entre os que haviam apoiado Bolsonaro, como o governador de São Paulo, a ideia de golpe parecia fora de questão. Dois fatores contribuíram para isso: uma parte das classes dominantes se opunha ao caos que começava a se instalar. E no plano internacional, o presidente Biden reconheceu imediatamente a eleição de Lula, que foi um sinal muito importante para os militares brasileiros. Não esqueçamos também que os líderes europeus vieram em socorro, assim como fizeram Xi Jinping, ou mesmo Vladimir Putin… Tudo isso parecia ser um impedimento muito importante. Olhando para o futuro, o golpe militar "tradicional" não parecia uma opção. Assim, o potencial de mobilização popular dos bolsonaristas e as conexões políticas que eles têm no Congresso e nas assembléias estaduais foram subestimados. Vale lembrar que os resultados das eleições parlamentares e governamentais não dão maioria a Lula, nem mesmo em alguns dos mais importantes estados do Sul, como Rio, São Paulo, Minas Gerais, sem esquecer a Polícia Militar e o exército.

Na hora de governar, Lula terá de enfrentar inúmeros obstáculos. Durante a campanha, Lula aliou-se a partidos da direita tradicional e escolheu Geraldo Alckmin como candidato à vice-presidência, político de centro-direita que foi seu adversário nas eleições presidenciais de 2006. Para o segundo turno das eleições, juntou-se a ele a candidata que havia ficado em terceiro lugar no primeiro turno, Simone Tebet, ligada aos interesses do agronegócio (e que na época votou pela destituição de Dilma Rousseff). Acrescente-se a isso que Carlos Favaro, ex-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso, foi nomeado ministro da Agricultura.

Consequentemente, Lula será obrigado a negociar permanentemente com esses aliados. Já antes da posse, Lula havia dado garantias ao exército e se manifestado contra o aborto, na tentativa de neutralizar parcialmente a influência dos evangélicos. No plano social, os dois meses de transição antes de sua posse foram complexos. Lula assumiu compromissos com minorias e povos indígenas e, no que diz respeito à Amazônia, esses compromissos são contrários aos interesses do agronegócio, além de ter nomeado a ativista Marina Silva ministra do Meio Ambiente. Em discurso proferido no início de novembro, Lula anunciou sua intenção de não respeitar o limite máximo de gastos públicos previsto na Constituição, o que provocou imediatamente uma queda na bolsa e no real, a moeda brasileira, em relação ao dólar. A proposta de Lula foi justificada pela necessidade de elevar os mínimos sociais diante da inflação, mas foi tachada de demagógica pelo influente jornal Folha de S. Paulo e criticada por seus próprios aliados. Ele também teve que negociar um acordo com ex-aliados de Bolsonaro para obter uma extensão do orçamento que permitiria que uma ajuda no valor de 600 reais (cerca de 120 euros) fosse destinada aos mais pobres. Se Lula recuar, a decepção da esquerda provavelmente alimentará o desafio da direita.

Mathieu Dargel

Mais especificamente, qual é a base social de Lula?

Janette Habel

O antigo Partido dos Trabalhadores perdeu muito de seu prestígio. Mas os servidores públicos, os professores e professoras, os trabalhadores em geral, toda uma parte da base popular brasileira se mobilizou a favor de Lula. O fator determinante foi o voto "contra" Bolsonaro. Ainda não sabemos as proporções desse voto negativo dentro da classe trabalhadora, do campesinato e do setor informal. Não há garantias de que os apelos de Lula à unidade nacional sejam suficientes para conter a extrema-direita.

Mathieu Dargel

Qual é a posição da esquerda e do Partido Socialismo e Liberdade?

Janete Habel

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que é um partido importante, surgiu de uma cisão de esquerda dentro do PT. Tem deputados e existem inúmeros pontos de apoio nos municípios. Estima-se que existam 300.000 seguidores e cerca de 50.000 militantes. Nela convivem diversas correntes e em suas fileiras ocorreram intensos debates antes das eleições. Deveria, como sempre, apresentar um candidato do PSOL no primeiro turno ou, ao contrário, exortá-lo diretamente a votar em Lula? O resultado eleitoral, a estreita margem que separava Lula do adversário, confirmou a decisão tomada de convocar o voto em Lula no primeiro turno para derrotar Bolsonaro. Mas o PSOL continua dividido. Para alguns militantes, derrotada a candidatura "neofascista" (termo discutível) de Bolsonaro, o problema é garantir a independência do PSOL e manter uma postura crítica em relação a Lula e seus aliados de direita, especialmente seu vice, Alckmin. Além do alívio que a vitória de Lula significou, o PSOL tem mostrado uma atitude de cautela e discrição expectante diante do governo constituído por Lula. Essa atitude alimenta críticas dentro do partido de quem não quis apoiar Lula desde o primeiro turno e acha que agora uma parte da direção do partido não tem uma visão suficientemente crítica da situação. Alguns se perguntam sobre o peso que o PT terá em uma coalizão de governo heterogênea que inclui mais de 10 partidos políticos, toda uma gama que vai da direita à esquerda radical. O debate sobre o grau de apoio que pode ser oferecido ao governo Lula é reminiscente daqueles que ocorreram no Bloco de Esquerda [3] em Portugal, embora os respectivos contextos sejam muito diferentes.

No nível regional, as vitórias de Gustavo Petro na Colômbia e de Gabriel Boric no Chile e o retorno das forças de esquerda na América Latina oferecem a Lula alguma margem de manobra. A ideia, promovida pelos presidentes do México e da Colômbia, de uma aproximação continental que inclua também a Venezuela e alguns países centro-americanos e caribenhos (e, portanto, Cuba) caminha nessa direção. Lula sempre se declarou a favor de uma integração latino-americana que preserve a independência do subcontinente em relação a Washington. Sua presidência poderia contribuir para esse objetivo. Desde que seus oponentes lhe dêem tempo suficiente e que o exército permaneça estacionado em seus quartéis. O espectro de Salvador Allende continua a assombrar a América Latina.

Notas

[1] Ver Marcelo Silva de Souza, "Bolsonaro elogia soldado que ordenou tortura no Brasil", AP, 8 de agosto de 2019.

[2] Eu mesmo participei de uma banca que avaliou uma tese defendida por um aluno que havia se beneficiado dessas medidas de discriminação positiva, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[3] Partido radical de esquerda português, fundado em 1999. Tem atualmente 5 de um total de 230 assentos no corpo legislativo de Portugal (Assembleia da República). [Nota de T.]

Colaboradora

Cientista político especializado em Cuba e na América Latina.

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