31 de março de 2020

Interrompa-me se você acha que já ouviu isto antes: Um estudo sobre política e estética da miséria inglesa

Owen Hatherley reflete sobre as divisões geracionais que emergiram ao longo das duas últimas eleições britânicas ao traçar a evolução musical do grupo The Smiths. Comparando a trajetória política de Morrissey a de muitos eleitores do norte da Inglaterra, Hatherley investiga as raízes da transição ocorrida na região de um coletivismo anti-tatcherista à uma reação nacionalista.

Owen Hatherley


Tradução / O primeiro álbum que escutei após as eleições de dezembro de 2019 foi The Smiths. Não tenho certeza exatamente do porquê – algo sobre a infelicidade particular daquele evento; a noção de que a partir de agora sofreríamos profundamente por um bom tempo sem um fim previsto e a sensação de que a Inglaterra e o Englishness tiveram uma espécie de vitória decisiva. Sempre pareceu improvável a ideia de que a Grã-Bretanha – com exceção da Escócia, até o momento – estaria prestes a embarcar num experimento de democracia social radical e multicultural; e, caso tenha interesse em deleitar-se com o horror inglês, é exatamente sobre isso que trata o som e a estética do The Smiths. Nostalgia, culpa, repressão, uma ferida adolescente exposta conservada até os dias de aposentadoria.

O outro motivo foi tentar compreender algo que acabara de acontecer, já que a trajetória política de Steven Morrissey parecia refletir a de boa parte da população do norte da Inglaterra – de uma espécie de anti-tatcherismo esquerdista à um orgulho racista little-Englander de direita. Aqui residia talvez a chave de compreensão dos eventos, mais útil que George Orwell ou qualquer espécie de romance da “condição inglesa”– um terrível encontro de cultura pop consumista, recusa da maturidade, nostalgia imposta, racismo endêmico e desolação estetizada.

Se tornou convencional o uso da nostalgia sobre a segunda guerra mundial como explicação para um tipo particular de nacionalismo que tomou conta da Inglaterra e do País de Gales nos últimos dez anos ou mais. As tropas que foram a guerra, algumas delas totalmente inventadas, vem de fato sendo dominante na Grã-Bretanha-exceptuando Escócia pós-New Labour, desde Boris Johnson moldando sua persona em Winston Churchill – que agora possui uma sessão inteira de livros dedicados a ele nas principais livrarias – ao revival do contraproducente pôster “Keep Calm and Carry On”.

Contudo, a geração que lutou a segunda guerra – e que subsequentemente construiu um tipo de estado de bem-estar social – está majoritariamente morta. A esmagadora política geracional do referendo e as eleições de 2017 e 2019, com a maioria dos votos da esquerda entre os abaixo dos 40 e a absoluta hegemonia da direita nos acima de 60, são consequências de uma profunda transformação política entre as pessoas que nasceram entre 1945 e 1965; como aponta Susan Watkins, Johnson é um Churchill com um corte de cabelo estilo Beatles[1].

A importação do termo americano “boomers” remove o “baby boom” da terminologia original e o encurta aos que nasceram dentro do boom – numa era de pleno emprego, casas baratas abundantes e educação gratuita, no rescaldo da guerra. Mas se você gastar seu tempo vasculhando muitos dos grupos do Facebook onde essa corja discursa sobre seu desdém pelos jovens, não há sensação, ou o que quer que seja, que eles sintam-se de algum modo privilegiados, ou beneficiários de algum destino histórico superior. Nós nos fodemos, logo eles também deveriam se foder. E quem melhor para explicar esse cenário que Morissey?

Morissey é um exemplo extremo de um tipo comum desse período. Nascido em 1959 numa família de imigrantes irlandeses da classe trabalhadora de Manchester, foi criado em habitações do estado em Hulme e Stretford e reprovou em seu exame 11-plus – ele depois ascenderia espetacularmente para além dos limites de sua condição de classe através da mídia de massas primeiro como jornalista musical, onde habilidosamente escreveu um livro sobre o New York Dolls e outro sobre James Dean, e depois como um tipo peculiar de ídolo pop; discutivelmente, a figura fundadora do indie inglês.

The Smiths, a banda que formou em 1982 com Johnny Marr[3], construiu uma posição deliberadamente contra o modernismo na cultura pop do Reino Unido da época, particularmente em Manchester, onde suas melodias e abordagem nostálgica foram criadas como oposição tanto a estética advinda do Bauhaus e aos sons eletrônicos da Factory Records quanto ao abrasivo neo-vorticismo do The Fall.

Após uma longa, e em geral medíocre carreira solo, Morrissey tem se tornado reconhecido recentemente por revelar explicitamente suas simpatias à extrema-direita; algo que já era uma suspeita tornou-se evidente quando ele começou a vestir em aparições públicas no ano de 2018 um broche da organização fascista For Britain. Essa seita foi fundada um ano antes disso por Anne-Marie Waters, uma política expulsa do UKIP por possuir laços estreitos com organizações paramilitares fascistas.

Voltando ao The Smiths, o que você pode perceber em suas músicas atualmente é uma total recusa da superação dos traumas de infância. Que, às vezes, são os do próprio Morissey – várias músicas tratam, ou parecem tratar, de relacionamentos homossexuais, com um poder frequentemente arrebatador, como nas brutais tomadas de consciência de “Reel Around the Fountain”, por exemplo. Por vezes tratam arrastadamente de assassinatos, em representações vívidas que se encontram em algum ponto de um poema de Tony Harrison e a manchete do News of the World. Em “Suffer Little Children”, a música final do disco, sob guitarras assustadoramente sinuosas, belas e repetitivas, os assassinatos de Ian Brady e Myra Hindley, que sequestravam crianças com a idade de Morrissey na época e as matavam nos pântanos dos arredores de Manchester, são intercaladas com a seguinte paisagem:

Os frescos campos pantanosos de lilases

Não conseguem esconder o cheiro forte da morte

A forma com que a cadência da canção se repete insistentemente, sussurrada com um prazer sombrio, do mesmo modo que uma sedutora versão de um tabloide fascinado pelo horror, não sugere raiva ou empatia. As músicas mais conhecidas no álbum são ou representações da miserável bedsit life (“O que se ganha por nossos problemas e dores?/ Apenas um quarto alugado em Whalley Range”) ou afirmações de tanto identificação quanto oposição a “Inglaterra” – que é “minha” e ao mesmo tempo “deve-me uma vida – mas pergunte-me o motivo e cuspirei em seu olho”. Nessa canção, “Still Ill”, a pungência da nostalgia, e sua identificação com o ambiente particular de uma cidade industrial, deprimida e úmida, são incomparáveis; principalmente por sua imprecisão, pelo foco confuso de seu anseio:

Contudo não podemos mais nos agarrar
aos antigos sonhos
não, não podemos nos agarrar
a tais sonhos

Debaixo da ponte de ferro nos beijamos
e apesar ter ficado com os lábios doloridos
não foi como nos velhos tempos
não, não foi como naqueles dias

Assim canta um homem que tinha 23 anos na época. Poderia parecer estranho em 1983, quando o álbum foi lançado, ver isso como uma espécie de afirmação nascente do nacionalismo inglês; especificamente porque a banda parecia de algum modo identificado, embora de uma forma complexa, com a esquerda, tocando em concertos beneficentes para o Liverpool Council, sendo afirmadamente gay (apesar de nunca totalmente fora do armário) na época da Section 28, e, particularmente, em seu estranho mas fervoroso republicanismo, esboçado nas surreais disputas imaginadas com o príncipe Charles e enfim no seu regicídio na caleidoscópica fantasia de “The queen is dead”, canção a qual o sonho de insurgência é realizado através da citação de uma música da época da guerra “Take Me Back to Dear Old Blighy”.

É só gradualmente que a crueldade da visão de Morrissey torna-se aparente. Entretanto, muitas de suas músicas são sobre o sofrimento que advém da crueldade; sobre ser vitimado por uma elite industrial vitoriana que, de algum modo, conseguiu perdurar até as escolas secundárias modernas dos anos 60. Em “The Headmaster Ritual”, cantada numa conjugação do presente mas claramente sobre uma experiência comum em qualquer autoridade escolar numa grande cidade dos anos 80, temos:

Zumbis beligerantes
dirigem as escolas de Manchester
bastardos covardes, todos

O professor lidera a tropa
invejoso da juventude
com as mesmas piadas desde 1902

Ou em “Barbarism Begins at Home”, do mesmo álbum; o mesmo cenário, só que doméstico – violência arbitrária e desproposital, casual e aleatória; e novamente, com um senso de interminável repetição e inevitabilidade:

E uma porrada na cabeça
é o que você recebe por perguntar

E uma porrada na cabeça
é o que você recebe por não perguntar

Essas canções e as ligações indissociáveis que mantêm com as capas dos álbuns e dos singles (geralmente projetadas ou dirigidas pelo próprio Morrissey), junto aos clipes de Derek Harman, existem num mundo fechado que termina bruscamente em 1964, em algum ponto antes da migração em larga escala dos distritos da zona do algodão do sul da Ásia para os distritos da zona do algodão do noroeste da Inglaterr; antes da vitória eleitoral de Harold Wilson; antes dos Beatles tornarem-se estranhos; antes que os distritos de Manchester como Hulme fossem submetidos a um “comprehensive redevelopment”; antes do colapso da indústria têxtil e depois da introdução da TV mas certamente antes da TV a cores, com música pop mais no estilo Joe Meek, Billy Fury e Lulu, do que psicodelia ou soul.

A criação e evocação de um ambiente totalmente embalsamado é extraordinariamente completa; e é feito com tanta atenção e paciência aos detalhes que só pode ser vista como uma tentativa de reconstruí-lo completamente na mente.

Em uma entrevista da Melody Maker com Morissey em 1988, coincidindo com o lançamento de Viva Hate, seu primeiro e de longe melhor disco solo, Simon Reynolds tentou alfinetar o cantor acerca disso. “Viva Hate… retorna repetidamente ao ‘inglesismo’ que obceca Morrissey… [Ele] parece valorizar os próprios constrangimentos e desânimos de uma Inglaterra em vias de desaparecimento, [fetichisando] os limites perdidos”. Questionando-o da seguinte forma: “Em ‘Late Night, Maudlin Street’, você diz ‘ eu nunca tive uma hora feliz por aqui’ – mas toda sensação da música, o jeito que você sussurra os devaneios sob o transe da guitarra de Vini [Reilly], fazem do tempo e do espaço algo que parece mágico, de outro mundo, e incrivelmente precioso”. Admitindo Morrissey responde: “É um truque de memória”, “Olhando para trás e pensando que talvez as coisas não fossem tão ruins mas, claro, elas eram.”

Esse lado vicioso se tornou claro em 1986 quando o The Smiths lançou “Panic”, com seu ataque não mais as paradas pop, mas em direção a todo e qualquer tipo de música negra dançante. Na época do lançamento, ele respondeu um questionário da NME que possuía a pergunta álbum favorito de reggae” com “reggae é vil”, algo que justificou mais tarde dizendo que o gênero era uma forma de “nacionalismo negro”. Em “Panic”, os dois lados caminham juntos, a imagem detalhada da miserável urbanização britânica (e também irlandesa, nesse caso) e o desconsolado campo – com a chegada de uma força estranha, inescapável, que aparecia e envenenava esse ambiente.

Esperanças podem surgir em Grasmeres 
Mas, querida, você não está a salvo aqui 
Então você corre 
Para a segurança da cidade 
Mas há pânico nas ruas de Carlisle 
Dublin, Dundee, Humberside 
Eu me pergunto 
Incendeiem a discoteca 
Enforquem o abençoado DJ 
Porque a música que eles tocam constantemente 
NÃO DIZ NADA A MIM SOBRE MINHA VIDA.

Em Viva Hate há a primeira de muitas músicas da carreira solo de Morrissey que possui representações desconcertantes de asiáticos britânicos – em “Bengali in Platforms”, o “difícil de contentar-se” deslocado protagonista, tentando encaixar-se na cultura pop anglo-americana, é paternalmente recebido com um “ vida é suficientemente difícil quando você pertence a este lugar”. Em “Asian Rut” torna-se ainda mais assustador, uma desapaixonada anedota de um ataque racista; e “National Front Disco”, um retrato cínico dos fascistas ingleses dos anos 70 com o “Inglaterra para os ingleses!” cantado suavemente no refrão. Quando apoiou Madness em 1992, Morrissey se embrulhou numa bandeira britânica, o que foi visto amplamente, pelo menos na crítica musical, como um gesto em direção aos fãs skinheads, numa época em que posar em público com a bandeira era um gesto reservado a extrema direita.

Nos últimos anos isso foi além de qualquer negação plausível. Numa entrevista recente no seu próprio site, ele reafirmou seu apoio a Anne-Marie Walter (em algum momento, ele complementou declarando seu entusiasmo por “Tommy Robinson”), além de dizer que gostaria de ver Nigel Farage tornar-se primeiro ministro, reiterando seu desdém pelo “Islã” e comentando as acusações de racismo com “Todos preferem ultimamente sua própria raça, isso faz com que todos sejam racistas?”. Em sua página no Facebook, ano passado, ele denunciou o “Reino Soviético Unido”. Essas são declarações padrões do conservadorismo britânico, causando estranheza unicamente pelo fato de ser um pop star gay dos anos 80, que não vive no Reino Unido há décadas, as dizendo, e não engenheiro aposentado de Trafford Park.

As conquistas mais notáveis da carreira de Morrissey desde 1988 foi publicar sua autobiografia em 2013 pela Penguin Classics. Lê-la é uma experiência igualmente bizarra. Começa com centenas de páginas sobre Manchester dos anos 60, escritas com a mesma obsessão saudosista que permeia as músicas do The Smiths; com o mesmo faro e precisão: uma tentativa de recriar completamente uma sociedade em toda sua miséria e violência; um mundo em um microcosmo – seguido de trezentas intermináveis, entediantes e arrogantes páginas sobre celebridades, gravadoras e processos; notáveis por sua autocomiseração de tirar o folego.

É muito fácil simplesmente separar esses dois lados, assim como desvincular o The Smiths e o fascista suburbano de 61 anos que os liderou. A questão é que os dois estão totalmente vinculados. Pode ser difícil descobrir o quê exatamente no passado tantos da geração de Morrissey sentem saudades. Certamente não são as council houses, pleno emprego, educação gratuita, propriedade pública ou mobilidade social; pois se tudo isso é de alguma forma destacado, é apenas para desacreditar o utopismo tosco do Labour Party em tentar recriá-los.

O que isso é, é uma nostalgia da miséria; uma saudade do tédio. Um deslocamento da pobreza da economia à estética[5]. Os zumbis beligerantes. Os covardes desgraçados. Os espancamentos. A ignorância. A poluição e a fuligem. Os ataques à gays e paquistaneses. Os assassinatos nos pântanos. O ressentimento dos jovens atuais não é apenas por não terem sofrido o mesmo que os jovens de outrora. As lembranças obsessivas desses traumas são uma forma de constantemente reviver uma experiência de luta pessoal e maturidade: um romance de formação da primeira casa financiada e do tédio dos bem de vida, seja daqueles que tem o aluguel pago ou a Council House adquirida (ou, no caso de Morrissey, uma vila nas montanhas de Los Angeles). E quem pode impedir esse auto-engrandecimento advindo da reencenção do passado? Os asiáticos, especialmente os muçulmanos. Os jovens. A esquerda. Os “conscientes”. Nesse sentido, Morrissey é verdadeiramente a voz de uma geração.

Notas:

[1] Susan Watkins, “Beyond Brexit”, New Left Review 121, January-February 2020. É possível também notar o modo que a música de campanha do Express and Mail’s “Big Ben Must Bong for Brexit” soa como uma das letras alegres e nonsense do Marc Bolan.

[2] Sobe a quase-universal direita dos ex-jornalistas musicais, ver MT Page, “The Psychdelic Left”, Tribune, 8 Novembro 2019.

[3] Enquanto antigo entusiasta de música moderna, socialista e patrono da Manchester Modernist Society, Marr é inocente de muitos dos crimes específicos de Morrissey.

[4] REYNOLDS, Simon. “Miserablism”, in Blissed Out – The Raptures of Rock (Serpents Tail, 1990), p. 16-17.

[5] Se alguém duvida disso, eu recomendo que vejam essa discussão do grupo do Facebook “Memory Lane UK”: twitter.com/georgina_199/status/1219997879697334272 (data do acesso: 06/05/2020, dia de finalização da tradução brasileira).

Sobre o autor

Owen Hatherley is the author of several books including The Ministry of Nostalgia and and A Guide to the New Ruins of Great Britain. He is the Culture Editor of Tribune.

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