31 de maio de 2024

Plano de Tarcísio tem 80% de inspiração no Ministério da Fazenda, diz Haddad

Haddad diz que mudança da meta de inflação nunca foi cogitada e defende debate suprapartidário sobre vinculação de despesas

Maria Cristina Fernandes e Sergio Lamucci


Haddad: "O terceiro bimestre será difícil para nós, especialmente o RS. A partir de julho, a economia gaúcha começa a recuperar" — Foto: Wanderson Araújo/Trilux

Em audiência pública na semana passada na Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara dos Deputados, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que os ruídos sobre a trajetória fiscal do governo se agravaram de um mês para cá porque havia um "fantasminha" fazendo a cabeça das pessoas e ruídos que são "patrocinados" e não são reais.

O "fantasminha" não tem nome nem sobrenome, mas tem sido associado ao impacto no mercado decorrente da fala do presidente do Banco Central, em Washington, em meados de abril. As declarações de Roberto Campos Neto trouxeram o risco de uma eventual "perda de credibilidade" da âncora fiscal deixar "mais caro o lado monetário" e indicaram um corte menor dos juros na reunião de maio do Copom.

Em entrevista ao Valor, Haddad descarta a "fulanização" do debate, mas não deixa dúvidas de que a relação com o presidente do BC já foi mais azeitada. Ele atribui a volatilidade no mercado a problemas "que não existem" e aponta uma assimetria nos diálogos da autoridade monetária: "Eles conversam muito mais, infinitamente mais com o mercado financeiro do que com a Fazenda. Às vezes, dá impressão de que conversar com a Fazenda é um pecado e conversar com o mercado o dia inteiro não é".

O ministro nega cobrança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que se volte mais para o governo do que para os agentes do mercado. Reconhece que Lula voltou ao poder com uma "ansiedade" maior em responder aos "anseios sociais", o que não o impediu de aceitar o arcabouço fiscal: "A ansiedade dele é a expressão da ansiedade do país".

Indagado ainda sobre a cobrança decorrente do plano de ajuste fiscal do governador paulista Tarcísio Freitas, diz que 80% de seu conteúdo se inspira em medidas já adotadas pelo governo federal.

Haddad embarca na segunda-feira para uma conferência em Roma, em que dividirá mesas com os ministros da Fazenda da Itália (Giancarlo Giorgetti) e da Indonésia (Sri Mulyani Indrawati) e pretende discutir a taxação dos super-ricos. Tenta ainda uma audiência com o papa Francisco antes de voltar ao Brasil no dia 5. Na manhã da quarta-feira, o ministro recebeu o Valor na sede do Ministério da Fazenda na avenida Paulista para a entrevista a seguir:

Esta guinada de um Fernando Haddad mais político responde a uma pressão do presidente por um ministro que atenda mais ao governo do que ao mercado?

Não identifico nenhuma guinada. Sempre me dei bem com o Congresso desde os tempos de ministro da Educação, nunca tive um projeto rejeitado, todos negociados e aprovados. O mesmo aconteceu na prefeitura de São Paulo e agora não está sendo diferente. Até porque estou fazendo aquilo que disse ao presidente que faria na viagem para o Egito em 2022 [para a COP27]: reforma tributária, marco fiscal e corte de gasto tributário.

Nesta volta do presidente ao poder, o senhor o vê mais obstinado por um Estado como alavanca do crescimento e menos tolerante ao ajuste fiscal?

Ele não teria aceitado o novo marco fiscal se isso tivesse mudado substancialmente. Mas reconheço que o presidente estava ansioso por responder aos anseios sociais, depois de ter deixado a Presidência em 2010 como deixou. Estava inconformado com o que tinha acontecido no Brasil e ansioso por geração de emprego e melhoria da renda. Isso está ocorrendo. O Caged [Cadastro Geral de Empregados e Desempregados] de abril mostrou a geração de 240 mil postos de trabalho. Vamos bater quase 950 mil no quadrimestre. Não é pouco significativo.

Mas essa ansiedade não torna as coisas mais difíceis para o senhor?

Torna mais desafiadoras, mas ansiedade dele é a expressão da ansiedade do país, de voltar a enxergar um horizonte de esperança, de desenvolvimento.

E sobre essa queixa de que o senhor atende muito ao mercado e encontra demais com empresários e banqueiros?

Essa queixa nunca existiu. Encontro com todo mundo. Recebo MST, Febraban, IDV [Instituto para o Desenvolvimento do Varejo], Shein. Dedico todas as sextas-feiras a ouvir os setores da economia, incluindo o movimento social. Erra-se menos quanto mais se ouve.

Mas há hoje um temor no meio empresarial e financeiro de que o senhor se afaste dos compromissos iniciais. Procede?

Não sei de onde saiu esse tipo de rumor. Muita gente ganha com a volatilidade do mercado. Nosso papel é comunicar bem para mitigar efeitos desse tipo de boataria que prejudica o pequeno poupador.

O senhor disse na Câmara que tinha um "fantasminha" fazendo a cabeça das pessoas e que os ruídos vão desaparecer porque eles foram patrocinados e não são reais. Quem é o "fantasminha"?

Não queria fulanizar o debate, mas há interesse em causar ruído sem base na realidade. Saiu agora o IPCA-15 e, de novo, veio abaixo da mediana. Não faz sentido discutir nosso compromisso com o combate à inflação. No Congresso fiz uma afirmação, pouco notada, de que, se levássemos em consideração a maquiagem da inflação de 2022 com a desoneração eleitoreira dos combustíveis, a taxa medida pelo BC foi de 8,25%. Dois anos depois, a inflação está abaixo de 4% e, pelo segundo ano consecutivo, está caindo.

Essa sua declaração de que a meta de 3% é "exigentíssima" causou algum ruído no mercado. O governo cogita elevar essa meta?

Quando a pessoa vê o pisca [informação instantânea em serviços de tempo real] e não lê o contexto da declaração, acontece isso. Falei que a meta de inflação é exigentíssima para o histórico do Brasil, que, poucas vezes, conseguiu chegar a esse patamar, e que nós, não obstante isso, estamos convergindo para a meta. Em nenhum momento foi cogitado mudar a meta da inflação. Defendo que seja contínua como é em todo mundo com exceção de dois países porque é mais inteligente do que a meta ano-calendário. A frase foi dita no contexto de elogio ao trabalho conjunto da Fazenda e do BC que resulta em crescimento com baixa inflação.

Como está a relação com Campos Neto? Se a redução do juro estancar, não vai jogar um peso excessivo sobre quem assumir o BC?

Estamos querendo criar um problema onde ele não existe. As pessoas que indiquei foram todas bem recebidas pelo mercado. Foram escolhidas em diálogo com o BC. Uma coisa é o diálogo técnico em torno de dados, em que há troca de informações e em que sopesamos argumentos. Há nove pessoas que vão decidir a política monetária e que vão fazer isso depois de interagir não apenas com a Fazenda. Conversam muito mais, infinitamente mais com o mercado do que com a Fazenda. Às vezes dá impressão de que conversar com a Fazenda é um pecado e conversar com o mercado o dia inteiro não é. Os diretores do BC conversam quase todo dia com gente de mercado e, vez ou outra, com técnicos da Fazenda. Defendo que se converse com o mercado e com o setor produtivo.

O senhor vai ser a pessoa mais importante a ser ouvida por Lula na indicação do próximo presidente do BC. Quem tem melhor perfil, [Marcelo] Kayath [sócio do QMS Capital] ou [Gabriel] Galípolo [diretor de política monetária do BC]?

É uma prerrogativa do presidente. Ele não vai ouvir só a mim. Minha opinião vai pesar, mas esta é uma atribuição dele escolher e eu, evidentemente, se perguntado, vou emitir minha opinião, mas não vou tratar de nomes. Não seria bom nem para o BC.

As expectativas da inflação para 2026 aumentaram depois de 46 semanas. O Focus indica Selic de 10% no fim do ano. O espaço para o redução do juro está próximo do fim ou já acabou?

Pelas declarações dos diretores, que acompanho mais pela imprensa do que pessoalmente, penso que estão abertos a tomar decisão com base nos dados que vão sendo apurados, dentre os quais, as expectativas, que pesam, mas não são o único insumo.

Por que houve um recuo da recomendação daquele artigo do [economista da FGV Ibre] Bráulio Borges que sugeria a desvinculação da Previdência da política de valorização do salário mínimo?

Aquele artigo é muito mais abrangente do que pode parecer. Falava corajosamente da tese do século [a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins], coisa que nenhum economista até hoje abordou, para minha surpresa, porque é um dado da maior relevância.

A [ministra do Planejamento] Simone Tebet deu entrevista ao Valor defendendo a projeção de cenário semelhante ao do artigo. O senhor defendeu uma discussão mais perene. Como assim?

Essas ideias não são novas. E, no caso da questão da vinculação do mínimo a benefícios sociais, vejo um problema de ordem jurídica. Não sei se esta tese passaria pelo teste da constitucionalidade, em função de garantias sociais mínimas estabelecidas na Constituição.

Há a possibilidade de ser vista como cláusula pétrea?

Pode. São temas que ou são encarados de forma suprapartidária, como questões de Estado, ou não vão prosperar, porque vai sempre faltar maturidade ou vai sobrar demagogia. Estou de peito aberto aqui sem tergiversar. São temas sensíveis, mas a sociedade tem que discutir e isso pode acontecer neste ano, no ano que vem ou no próximo governo, porque a cada ciclo acontece o mesmo debate. Talvez seja necessário um debate mais aprofundado sobre a regra porque senão nós vamos ficar sem previsibilidade em virtude do calendário eleitoral.

Qual é a melhor regra?

Na época em que era ministro da Educação entendia que o Brasil investia pouco em educação como proporção do PIB e um dos meus legados na educação foi aumentar o investimento em educação como proporção do PIB. Isso permitiu universalizar a pré-escola e triplicar o número de matrículas na educação superior, fazer a maior expansão de matrículas em creche etc.

Imagino que o senhor tenha uma proposta para este debate. Qual é a sua proposta para tornar esta regra mais perene?

Se não fossem essas regras, muito provavelmente a educação pública e o SUS estariam em petição de miséria. A discussão disso não é contra a preservação dessas conquistas, mas é abrir uma discussão sobre a melhor maneira de continuar protegendo de maneira adequada setores perante os quais nós temos compromisso.

Na vigência do teto de gastos, o piso de saúde e educação já deixou de acompanhar a receita. O senhor acha possível uma medida nesse sentido?

Nosso papel é colocar os prós e contras sobre a mesa. A reforma tributária foi feita num amplo processo democrático. Saiu como a Fazenda queria? Não, saiu como a melhor reforma tributária possível num regime democrático. Temos tido um comprometimento grande do Judiciário com as consequências econômicas das decisões jurídicas que hoje é uma cláusula legal. Saiu o relatório do FMI dizendo que o PIB potencial do Brasil mudou de 2% para 2,5%. É assim que se reconstrói um país que está há dez anos patinando. O passado ilumina nosso comportamento no futuro. Na questão do mínimo defendemos o critério do PIB per capita, mas outra tese venceu.

Como o senhor imagina poder manter a proteção desses setores vulneráveis da sociedade e manter o arcabouço fiscal?

Já governamos este país em outras condições, em que nós compatibilizamos redução de dívida, redução de inflação, crescimento econômico e proteção social. As condições são outras, mas vamos nos adaptar a elas.

Na audiência na Câmara o sr. mencionou a bomba fiscal do governo anterior, mas há as deste governo, como aquela decorrente da valorização do salário mínimo. Como vai desmontá-la?

O déficit público vai cair neste ano e no ano que vem. No primeiro quadrimestre o déficit primário estimado é de R$ 14 bilhões. O resultado da desoneração foi de R$ 20 bilhões. O compromisso é mandar a compensação das desonerações para garantir uma reoneração gradual. Foi o acordo político possível. Começou um frenesi como se o Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2023 não previsse R$ 63 bilhões de déficit, como se a rubrica do Bolsa Família estivesse no patamar adequado para cumprir a promessa eleitoral, como se a chamada PEC do Calote [dos precatórios] não fosse ser julgada inconstitucional e como se não tivéssemos que indenizar os Estados pelo calote no ICMS sobre combustíveis. A soma dá R$ 250 bilhões. Querem fazer recair sobre os ombros do presidente Lula esta herança.

Há a percepção de que algumas receitas estão superestimadas e que o lado das despesas não estaria sendo cuidado. O arcabouço está arranhado?

Não. Disse no fim do ano passado que o Orçamento estava com receitas extraordinárias superestimadas e receitas ordinárias subestimadas. Reduzimos, no segundo relatório, de R$ 35 bilhões para R$ 10 bilhões as receitas com concessões. E você terá novidades positivas no terceiro bimestre com as transações [tributárias] que estão em curso no Carf.

Quais medidas pelo lado do gasto o sr. pretende apresentar?

A virtude do arcabouço é que tem uma regra de gasto combinada com uma regra de resultado primário. Na Lei de Responsabilidade Fiscal, introduziu-se a meta de resultado primário, mas não se cuidou da evolução da despesa. O teto de gastos não cuidava da receita. Em 2015 a despesa era recorrentemente acima de 19% do PIB, e a receita, abaixo de 18%. Temos que cuidar das duas coisas. Não falta esforço da Fazenda por isso.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, anunciou um plano de ajuste. Há cobranças para que o governo federal faça o mesmo. Como vê o plano?

O Tarcísio está muito inspirado na Fazenda porque 80% do plano é redução do gasto tributário e redução do juro da dívida de São Paulo, que é o trabalho que estamos fazendo. No nosso caso, o juro não é contratual, é a Selic, mas o dele é. Ele depende do Executivo federal para conseguir. E sabe que há boa vontade do Executivo federal para isso. Está colocando na conta da Fazenda nacional parte do plano. E o trabalho de corte de gastos é contínuo.

O que tem sido feito?

É inaceitável o que ocorreu nos cadastros dos programas sociais. Passamos anos para resolver os problemas das condicionalidades do Bolsa Família, que envolvia saúde e educação. Isso foi um trabalho elogiado pelo Banco Mundial, premiado mundo afora. Agora está sendo reconstruído. As filas homéricas do INSS estão sendo resolvidas. O mercado presta pouca atenção no que ocorre no Legislativo e no Judiciário. Como se o resultado fiscal fosse uma atribuição exclusiva do Poder Executivo.

A ausência de um relator único não vai dificultar a negociação da Fazenda na regulamentação da reforma tributária?

Não posso me imiscuir em assunto interno da Câmara. Pretendo colocar à disposição das comissões os melhores técnicos que temos para que toda proposta passe por crivo rigoroso. Quanto menos exceções tivermos, melhor. Conheço os membros das comissões e vejo boa-fé. Haverá grupos que vão defender interesses próprios. Nosso papel é desnudá-los.

Que balanço o sr. faz desses 20% de taxação das compras internacionais até US$ 50? Teve um embate com o presidente, não?

A Receita fez chegar às autoridades, à época, que o que ocorria no Brasil era um fomento ao contrabando e uma fraude ao "de minimis", o mecanismo pelo qual uma pessoa do exterior pode mandar para um residente bem até US$ 50. As autoridades econômicas do governo Bolsonaro foram alertadas sobre a fraude e não se fez nada. Mas esse negócio cresceu a ponto de atingir quase 200 milhões de pacotes por ano. A situação se tornou insustentável porque começou a fazer diferença para o varejo da periferia. A Fazenda criou o programa Remessa Conforme, uma plataforma de fiscalização, eliminou temporariamente o imposto federal, chamou os governadores para acordo no Confaz, então eles voltaram a arrecadar ICMS sobre o varejo.

O impacto do que ocorreu no Rio Grande do Sul vai ser localizado ou pode ter um efeito mais forte na economia brasileira?

O terceiro bimestre, maio/junho, vai ser difícil para nós, especialmente para o Rio Grande do Sul. Como é 7,5% da economia nacional, tem um impacto global. A partir de julho, a economia gaúcha vai começar a recuperar e a nossa intenção é que até o fim do ano ela devolva o que perder neste bimestre.

Como a persistência do juro alto nos EUA afetará a trajetória do juro e do câmbio no Brasil e a atração de investimentos?

Não é um problema local, afeta todos os mercados, sobretudo os emergentes. Depois do G20 de Marrakesh havia a perspectiva de o Fed começar a cortar em junho. Os mais otimistas chegaram a apostar em março. Houve falhas de comunicação da autoridade monetária americana que levaram investidores a erro e geraram um ruído enorme no mundo inteiro. Acredito que ainda neste ano se iniciará um ciclo de cortes, mas nada que possa ser afiançado. Temos que aguardar.

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