25 de maio de 2024

O argumento de esquerda de Žižek a favor do ateísmo cristão

No seu novo livro, Slavoj Žižek avança uma compreensão provocativa do cristianismo como uma força progressista e secularizadora. É o clássico Žižek - por sua vez brilhante e irritante.

Matt McManus

Jacobin

Slavoj Žižek fala durante a cerimônia de abertura da Feira do Livro de Frankfurt, 17 de outubro de 2023. (Arne Dedert / picture Alliance via Getty Images)

Resenha de Christian Atheism: How to Be a Real Materialist, de Slavoj Žižek (Bloomsbury, 2024).

Tradução / Slavoj Žižek é muitas coisas para muitas pessoas: o “Elvis da teoria cultural”, o filósofo de esquerda mais “formidavelmente brilhante” do mundo, uma fraude , um marxista, um apologista do “anti-wokismo” e muito mais. Mas, provavelmente, poucas pessoas pensam “teólogo cristão” quando Žižek vem à mente. No entanto, o pensador iconoclasta esloveno passou décadas envolvido profundamente com a teologia e a história cristãs, desde livros como O Frágil Absoluto: ou Por Que Vale a Pena Lutar Pelo Legado Cristão? (Boitempo, 2015) ao seu debate com o teólogo “radical ortodoxo” John Milbank .

Tudo isso, apesar de professar sua descrença em Deus. O novo livro de Žižek, Christian Atheism: How to Be a Real Materialist , é a apresentação mais desenvolvida da sua teologia materialista até o momento. É também, como a maioria dos seus livros, um microcosmo da obra de Žižek como um todo – onde o vemos ponderar sobre tópicos que vão da política à psicanálise, de The Last of Us à mecânica quântica. Este ecletismo reforçará, sem dúvida, as acusações de muitos dos críticos de Žižek: de que ele é um diletante, e que sua tendência para refletir sobre tópicos sem os abordar em profundidade é por vezes frustrante.

Mas mesmo para aqueles entre nós, que já estão familiarizados com seu trabalho, há muito o que gostar em Christian Atheism. Žižek merece sérios créditos por revigorar o debate há muito necessário sobre a relação entre a religião e a esquerda, ajudando a nos afastar tanto da denúncia grosseira como da simples tolerância liberal. É um livro excelente que merece elogios pelo que realiza e (apropriadamente) perdão por seus inúmeros pecados.

Hostilidade esquerda à religião

O jovem Karl Marx observou que a crítica da religião é fundamental para a agitação política radical. Marx insistiu que percebêssemos que “o homem faz a religião, a religião não faz o homem”, como afirmou na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Era necessário criticar o dogma religioso para que a humanidade se tornasse autoconsciente das suas limitações mundanas e da sua capacidade de mudá-las, e para parar de nos distrair da tarefa de refazer a sociedade com a promessa de uma reconciliação transcendente para além do domínio temporal.

Havia boas razões para críticos de esquerda como Marx desconfiarem da religião. A partir da Revolução Francesa, pensadores de direita, desde Edmund Burke a Joseph de Maistre, passando por R. R. Reno, insistiram frequentemente que a religião desempenha um papel fundamentalmente conservador na sociedade. Em Reflexões sobre a Revolução na França, Burke lamentou o novo “império conquistador da luz e da razão” que se despojava de todas as “ilusões agradáveis” que uniam a sociedade numa pirâmide de posições e ordem. Para corrigir isto, Burke insistiu que “princípios sublimes devem ser infundidos em pessoas de situações exaltadas, e em estabelecimentos religiosos, desde que possam continuamente reavivá-los e aplicá-los”. Caso contrário, a “multidão suína” poderia ver através da sublime ilusão do direito divino e reconhecer que o rei era apenas um homem.

Hoje, em Resurrecting the Idea of ​​a Christian Society, Reno insiste que o Cristianismo é necessário para salvar as pessoas da vontade “superficial, sem lei e brutal” estabelecida pelos “demagogos da elite”. Estas elites liberais travam uma “guerra de classes, uma guerra contra os fracos”, que “é resumida na campanha pelo casamento gay”. Esta suposta guerra de classes permitiu que a classe alta se beneficiasse da corrosão da moralidade cristã para que seus membros pudessem viver estilos de vida libertinos, cujas consequências serão “pagas pelos pobres”.

Dada esta longa história de intelectuais de direita reivindicando a religião para si próprios, não deveria surpreender que a esquerda tenha frequentemente seguido Marx ao ver a religião como algo a ser criticado e minado. Mas estas críticas assumem diferentes formas, e muitos na esquerda adotaram perspectivas religiosas que vão além da simples rejeição. O Cristianismo “materialista” de Žižek cai diretamente neste campo.

Sombras da Cruz

Há uma espécie de crítica vulgar e materialista da religião que há muito tempo tem aceitação na esquerda e que sustenta, de grosso modo, que Deus é uma ilusão criada por instituições ideológicas alinhadas com a classe dominante, cujo principal efeito é pacificar a dissidência do status quo. Esta visão provavelmente tem raízes na crítica cáustica da fé e das instituições religiosas feita por figuras do Iluminismo como Voltaire e David Hume. Nesta perspectiva, a Esquerda deveria condenar e rejeitar abertamente a religião, de modo a concentrar a atenção dos oprimidos nas injustiças mundanas e nas possíveis soluções para elas.

Marx apresentou uma perspectiva materialista mais complexa. Às vezes, ele é visto como um endossante grosseiro da crítica materialista vulgar, graças à sua caracterização da religião como o “ópio do povo” na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Mas na citação completa de onde provém essa famosa frase, Marx descreve a religião como “o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições sem alma”. Ele sustentou que o surgimento da religião pode ser entendido socialmente como uma espécie de compensação psíquica pela alienação e pelo sofrimento sofrido pelos seres humanos na Terra. Enquanto persistissem as condições sociais opressivas, poderíamos esperar que as pessoas se agarrassem a “ilusões” religiosas.

A crítica materialista da religião, na opinião de Marx, não consiste, portanto, apenas ou mesmo principalmente, em condenar a fé religiosa – mas, em vez disso, em compreender as condições sociais que a tornam necessária e em transformá-las. Só quando tal mudança revolucionária ocorrer é que os sentimentos de estranhamento que levaram à religião desaparecerão, à medida que os seres humanos se tornarem capazes de resolver os seus problemas de modo direto e racional.

Uma terceira perspectiva materialista sobre a religião, baseada em Marx, GWF Hegel e outros, vê no socialismo e em outros movimentos de esquerda uma continuação secularizada de um projeto fundamentalmente cristão. Eles seguem Alexis de Tocqueville ao pensar que há uma profunda afinidade entre a doutrina cristã e a ânsia da esquerda por mais igualdade: com a sua tradicional elevação dos pobres e humildes e o seu castigo aos ricos e poderosos, o Cristianismo seria, em um importante aspecto, uma religião naturalmente mais alinhada à esquerda do que à direita. Como escreveu Tocqueville em Democracia na América:

De todas as doutrinas religiosas, o Cristianismo, qualquer que seja a interpretação que lhe dêmos, é também a mais favorável à igualdade. Somente a religião de Jesus Cristo colocou a única grandeza do homem no cumprimento dos deveres, onde cada pessoa pode alcançá-lo; e teve o prazer de consagrar a pobreza e as dificuldades como algo quase divino.

Os críticos da esquerda também suspeitaram que havia uma afinidade entre os seus ideais e os do cristianismo. Friedrich Nietzsche caracterizou o socialismo em A Vontade de Poder como o “resíduo do Cristianismo e de [Jean-Jacques] Rousseau” num mundo secularizado. E Alasdair MacIntyre, quando era marxista , argumentou em Marxismo e Cristianismo que a própria tradição marxista “humanizou certas crenças cristãs centrais de modo a apresentar um julgamento cristão secularizado sobre, ao invés de uma adaptação cristã ao presente secular”.

Žižek se enquadra nesta terceira tradição. O cerne do seu argumento, contudo, sempre foi mais inspirado em Hegel e no psicanalista francês Jacques Lacan do que em Marx. Seguindo Hegel, Žižek argumenta que o Cristianismo é distinto de muitas outras religiões por reconhecer simbolicamente a “morte de Deus” através da crucificação de Cristo: Deus literalmente se torna humanidade e depois morre antes de ser ressuscitado e ascender ao céu, após o que o Espírito Santo vem para unir os crentes em uma comunidade de iguais livres.

Deus está morto e continuamos seu legado

A leitura que Žižek faz da história cristã é que Deus, como garantidor transcendente da ordem e da moralidade autoritária, morre, e os seres humanos passam a compreender que são completamente livres. Este é o gesto “materialista” definitivo, uma vez que desmistifica todos os poderes que reivindicam legitimidade com base numa autoridade transcendente e nos obriga a reconhecer a natureza demasiado contingente e plástica da ordem social:

O que morre na cruz não é o representante terreno de Deus (um simples modelo), mas o Deus além de si mesmo, o que acontece após a crucificação não é um retorno do transcendente, mas a ascensão do Espírito Santo que é a comunidade de crentes sem qualquer apoio na transcendência.

Isto ecoa uma afirmação semelhante que Nietzsche faz em A Genealogia da Moral, de que é equivocado ver o secularismo como uma força externa ao Cristianismo que o minou. Nietzsche argumentou que a crença cristã num Deus transcendente foi de fato “destruída por sua própria moralidade, da mesma forma que o cristianismo como moralidade deve agora perecer também. . . . Depois de a verdade cristã ter tirado uma inferência após outra, ela deve terminar tirando a sua inferência mais impressionante, a sua inferência contra si mesma.”

Nietzsche queria que a morte de Deus anunciasse o fim da moralidade cristã, e lamentou que ela de fato tenha sobrevivido na forma secular em doutrinas igualitárias suaves como o liberalismo e, acima de tudo, o socialismo. Por outro lado, Žižek vê a auto secularização do Cristianismo como o culminar da ética cristã, com Deus morrendo e libertando a humanidade para assumir a responsabilidade por sua própria existência.

É aqui que entra o “ateísmo” cristão de Žižek. Ele sustenta que, historicamente, não é suficiente simplesmente negar a existência de Deus, como se fosse possível provocar um curto-circuito na ideologia para apreender diretamente a realidade material sem ilusões. Foi necessária uma transição através da religião, e o Cristianismo merece crédito por estabelecer uma narrativa sobre a morte de Deus e o surgimento da liberdade e da igualdade na união do Espírito Santo.

É improvável que esta abordagem idiossincrática da religião ganhe muitos adeptos de fora do rebanho hegeliano, embora seja, sem dúvida, sugestiva e provocadora. A afirmação de que o Cristianismo se auto secularizou e se tornou materialismo de esquerda sugere uma alternativa explicativa interessante para histórias reducionistas sobre o declínio da religião que (por exemplo) simplesmente assumem que a fé religiosa perdeu o seu controle sobre a imaginação com a ascensão do racionalismo científico.

É lamentável, então, que a apresentação de seus argumentos feita por Žižek não seja mais rigorosa ou sistemática, no estilo, digamos, do épico Uma Era Secular, de Charles Taylor. Uma tese tão ousada e controversa como a apresentada em Christian Atheism requer uma defesa cuidadosa, para além de lampejos de ligação impressionista e argumentação sugestiva. Seria necessária uma exegese histórica profunda que traçasse os desenvolvimentos na teologia e na prática cristãs de forma cuidadosa e programática, demonstrando como as transições e influências se desenrolaram.

Isto poderia então ser acompanhado por uma defesa teológica sistemática do ateísmo cristão, na linha de algo como a Teologia Sistemática do socialista Paul Tillich . Até recebermos tal tratamento, o materialismo ateu cristão continuará sendo mais uma ideia provocativa do que um credo pelo qual se deve viver.No entanto, Žižek merece elogios por apresentar uma visão distinta do Cristianismo, que, no mínimo, poderia persuadir a esquerda a levar as questões religiosas mais a sério. Isto é especialmente importante numa época em que estão em marcha formas de nacionalismo religioso iliberal e autoritário. Os progressistas e os socialistas precisam evitar o tipo de materialismo bruto implícito na rejeição de Barack Obama daqueles que se apegam às armas e à religião como compensação pelos seus infortúnios materiais – eles precisam de uma perspectiva ponderada sobre o lugar da fé religiosa na história e na ordem social.

Colaborador

Matt McManus é professor de ciência política na Universidade de Michigan. Ele é autor, entre outros livros, The Political Right and Equality, A How To Guide to Cosmopolitan Socialism, e o próximo The Political Theory of Liberal Socialism.

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