16 de maio de 2024

No coração da Bahia

O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, conta uma história de sofrimento, resistência, vingança e redenção ambientada no empobrecido e árido Nordeste brasileiro.

Larry Rohter


Itamar Vieira Júnior; ilustração de Sol Cotti

de Itamar Vieira Junior, traduzido do português por Johnny Lorenz
Verso, 276 páginas, US$ 19,95 (impresso)

Para os americanos que estão tentando entender a história brasileira, pode ser útil pensar no Norte do Brasil como semelhante ao Sul dos Estados Unidos e no Sul do Brasil como semelhante ao nosso Norte. Foi no Nordeste costeiro do Brasil, mais de um século antes de Jamestown, que os portugueses estabeleceram os seus primeiros assentamentos permanentes. Nos tempos coloniais, uma monocultura baseada em plantations dominava a economia do Nordeste, e a escravatura dependente da importação em massa de africanos estava ali mais profundamente enraizada. A partir do início do século XX, a versão brasileira da Grande Migração enviou milhões de meeiros pobres e não-brancos para as cidades industrializadas do Sul. O Nordeste também é o berço de grande parte da melhor e mais característica música, folclore e culinária brasileira. E assim como os americanos reconhecem um gênero chamado romance sulista, o Brasil também gerou um equivalente: o romance nordestino.

O Nordeste é uma das cinco regiões em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divide oficialmente o país. É composto por nove estados ao longo do Oceano Atlântico, desde a Bahia, no extremo sul, até o Maranhão, onde faz fronteira com a Amazônia, e abriga mais de 55 milhões de pessoas, pouco mais de um quarto da população do Brasil. Historicamente, o Nordeste, onde mais de dois terços dos habitantes são de ascendência africana, tem sido a parte mais pobre do país, dominada por uma pequena classe de proprietários de terras e chefes políticos de pele mais clara, conhecidos como “coronéis”, em parte devido ao seu controlo de milícias estaduais. Mesmo na primeira década deste século, um governador particularmente poderoso da Bahia, um estado maior que a França, era conhecido como “o coronel eletrônico” porque era dono dos mais importantes jornais, estações de rádio e televisão e websites.

É este sistema de exploração – e a violência contínua que ele gera para se manter – que tem horrorizado e fascinado romancistas, dramaturgos, poetas, cineastas, pintores e fotógrafos brasileiros na era moderna. Desde a publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, em 1928 – uma tradução para o inglês, meio século depois, teve o título mal escolhido, Trash, e agora está esgotada – quase todos os notáveis ​​escritores de ficção brasileiros tentaram, em um momento ou outro, confrontar esta herança vergonhosa.

Meu favorito pessoal é o conto abrasador do sertão Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, mas antes de Jorge Amado se estabelecer em um estilo maduro que enfatizava o humor e o folclore, ele escreveu um ciclo de romances dilacerantes sobre as plantações de cacau na Bahia, onde foi criado, culminando em A Terra Violenta (1943). No mesmo período, José Lins do Rego produziu um ciclo da cana-de-açúcar e Graciliano Ramos escreveu seu comovente Vidas Secas (1938). Clarice Lispector, que cresceu no Nordeste de Pernambuco, também fez uma brecha no gênero: o último romance publicado antes de sua morte, A Hora da Estrela (1977), aborda, entre outras coisas, o abismo entre a população rural empobrecida do Nordeste e o Sul urbanizado, vistos pelos olhos de uma camponesa de dezenove anos que chegou ao Rio de Janeiro. Até mesmo um punhado de escritores estrangeiros foi atraído pela história cruel e complicada da região: A Guerra do Fim do Mundo (1981), de Mario Vargas Llosa, ambientado no sertão da Bahia durante uma época de rebelião no final do século XIX, é um dos exemplos mais aclamados de romance nordestino, e é peruano.


Agora, com o Torto Arado, Itamar Vieira Junior, assim como Amado, baiano, aderiu – e também atualizou – a essa ilustre linhagem. Todas as características de um romance arquetípico nordestino estão na história que ele conta, do sofrimento à resistência, vingança e redenção, mas ele acrescenta novas reviravoltas na trama e artifícios literários. Seus personagens principais são todos afro-brasileiros e, quando ocasionalmente aparecem brancos, ele os restringe a uma importância claramente secundária. Além disso, os três narradores do romance – Vieira atribui um diferente para cada seção – são todos mulheres, e a trama se desenrola com elas como protagonistas dos acontecimentos narrados, e não como meras observadoras. Duas são irmãs, Bibiana e Belonísia, mas a terceira é Santa Rita, a Pescadora, uma poderosa encantada, ou espírito, da religião afro-brasileira conhecida como Jarê. Não é de admirar, então, que o site feminista brasileiro Valkirias tenha exultado que Torto Aarado é “um clássico moderno sem heróis, mas recheado de heroínas”.

Não o tipo de heroínas, no entanto, que Jane Austen, as irmãs Brontë ou Virginia Woolf poderiam ter imaginado, mas sim oriundas da classe serva invisível que povoa romances como os delas. “Somos mulheres do campo”, reflete Belonísia após se casar ainda na adolescência com um brutal lavrador chamado Tobias,

já castigado pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo e pelas dificuldades, pelos filhos que temos quando somos muito pequenos, um após o outro, murchando os nossos seios, engrossando os nossos tornozelos... Desde a infância fomos preparadas para produzir futuros trabalhadores para os nossos patrões.

Superficialmente, Torto Arado é a história de uma família camponesa e seus vizinhos durante um período de várias décadas. Bibiana e Belonísia são filhas de Zeca Chapéu Grande (Joe Big Hat), meeiro, líder religioso e curandeiro da pequena comunidade rural onde mora com a esposa, Salustiana; mais dois filhos, Zezé e Domingas; e sua mãe, Donana. Todos cultivam a terra, mas Zeca Chapéu Grande sente especial afinidade e reverência pela terra, o que lhe dá acesso a “todas as mudanças secretas do céu e da terra”. “Sempre que encontrava algum problema na roça”, lembra Belonísia,

meu pai deitava-se no chão, com o ouvido atento ao que havia nas profundezas da terra, antes de decidir quais ferramentas usar e o que fazer, onde avançar e onde recuar. Como um médico ouvindo os batimentos cardíacos.

As primeiras páginas de Torto Arado são um tanto desorientadoras, e não apenas por causa do estranho trauma que inicia a história e constitui uma de suas linhas mestras. Vieira também guarda pistas que sinalizariam onde e, sobretudo, quando se passa seu romance. Esta é uma estratégia astuta: o sistema de privação, trabalho e subjugação que os portugueses impuseram à região e aos seus habitantes a partir do século XVI prevaleceu até tempos recentes e ainda pode ser encontrado em alguns cantos do Nordeste. Ao recusar-se a dar imediatamente esta informação aos leitores, Vieira está enfatizando obliquamente a estagnação daquele sistema e a intemporalidade do sofrimento de famílias como as de Zeca Chapéu Grande. Estamos em 1950 ou 1650?

Logo, porém, alguns indicadores aparecem: há menção a um rádio e a um carro de marca e modelo introduzidos no mercado brasileiro apenas na década de 1960. Este foi um período de enorme agitação e convulsão no Nordeste, quando as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, entraram em confronto com os latifundistas, a Teologia da Libertação defendida pelo bispo católico romano Hélder Câmara floresceu e políticos radicais como Miguel Arraes estavam sendo eleitos para o poder. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro tentava, tardiamente, abordar as desigualdades centenárias através de uma recém-formada Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, sob a liderança do economista Celso Furtado, e os Estados Unidos, temendo “outra Cuba”, estavam injetando dinheiro da USAID e voluntários do Peace Corps na região a partir daquele que era então seu maior consulado no mundo, em Pernambuco. Tudo isso constitui o pano de fundo tácito de Torto Aarado, e tudo isso foi, como todo leitor brasileiro sabe, varrido pelo golpe militar de 1º de abril de 1964, que resultou em 21 anos de brutal ditadura de direita.

O local exato onde o romance se desenrola também não fica claro inicialmente, o que enfatiza ainda mais a uniformidade da opressão que os habitantes do Nordeste enfrentaram: poderia ser em quase qualquer lugar dos 600 mil quilômetros quadrados da região. Só aos poucos, através da menção de alguns rios e depois de algumas pequenas cidades, Vieira revela que o povoado fictício de Água Negra está localizado no coração da Bahia, numa região de beleza acidentada de planaltos, cavernas, cânions, cachoeiras e vales chamados de Chapada Diamantina. Esse nome foi dado pelos garimpeiros que ali afluíram a partir do século XVIII com seus escravos, “cavando aqueles buracos profundos, com gente arranhando a terra como tatus, em busca das pedras brilhantes” que proporcionaram uma primeira onda de riqueza e exploração no interior nordestino.


As áreas costeiras do Nordeste são exuberantes e férteis e desde o século XVI produzem açúcar. Mas Água Negra e a Chapada Diamantina fazem parte do vasto interior semiárido que os brasileiros chamam de sertão e estão sujeitas a secas periódicas, algumas delas durando anos consecutivos. O controle da água significa, portanto, poder, mas os descendentes de escravos que povoam assentamentos de meeiros como Água Negra, genericamente chamados de quilombos, não têm nenhum dos dois. “A casa do trabalhador nunca deve ser pensada como um bem, um bem que possa atrair a ganância dos herdeiros” da plantação, pondera Belonísia. “A casa deve ser fácil de demolir quando necessário”, e embora os seus habitantes “pudessem cercar os seus jardins e até plantar nas planícies aluviais nos seus tempos livres”, há um problema: “Eles poderiam alimentar-se com o que a terra fornecia, mas apenas se fossem obedientes e leais.”

Durante os primeiros dois terços do romance, reina esse equilíbrio precário. Mas as coisas começam a dar errado quando os Peixotos, a família ausente de proprietários de terras que há muito é proprietária da plantação, vendem “toda a propriedade, incluindo as nossas casas de barro, incluindo os nossos próprios corpos como mobília” a Salomão e Estela, empreendedores ambiciosos com muitas ideias inovadoras, como a de que “Água Negra deveria se tornar um santuário ecológico”. Em vez de se encontrar pessoalmente com os arrendatários, Salomão envia o seu capataz recém-contratado para lhes dizer que já não podem enterrar os seus mortos no cemitério da plantação, onde repousam gerações dos seus antepassados. “Era um crime contra a floresta, contra a natureza”, sustenta o capataz, porque “as sepulturas estavam muito perto do leito do rio”, onde Salomão “construiu uma casa chique para a sua família” e também decretou que o rio fosse proibido à pesca. Naturalmente, os meeiros ficam chocados e irritados, e rejeitam a sua “conversa idiota sobre proibições. Era o destino deles serem enterrados naquele solo.”

Na mesma época, depois de vários anos afastada, Bibiana retorna ao engenho com o marido, Severo, que se filiou a um sindicato de trabalhadores rurais e fez curso de formação de ativistas. A família Peixoto e o prefeito permitiram, a contragosto, a construção de uma escola primária, e Bibiana vai trabalhar lá como professora, para satisfação dos pais. Mas as atividades de Severo não são tão bem recebidas pela comunidade. Muitos dos idosos temem que perturbar a ordem estabelecida só piore as suas vidas, e até Zeca Chapéu Grande tem reservas quanto à abordagem do genro. Num lugar que antes parecia impermeável à mudança, surgiu subitamente um conflito de gerações.

“Poderíamos dizer que meu pai foi de fato cúmplice de sua própria exploração”, percebe Bibiana. “Como líder espiritual da comunidade, foi ele quem garantiu que o trabalho continuasse sem interrupções, mantendo a paz entre os arrendatários.” Por sua vez, “Severo entendeu que não poderia discutir com meu pai”, observa Belonísia, porque “seria uma falta de respeito por tudo que meu pai representava para nossa comunidade”. Assim, enquanto Zeca Chapéu Grande estivesse vivo, “Severo cederia a ele, contendo-se em vez de confrontar aqueles que nos deram abrigo. Questionar sua autoridade seria uma forma de ingratidão.”

Vieira tem uma noção igualmente perspicaz de outras hierarquias e aspectos da dinâmica social, baseados no sexo, na cor da pele e na duração do arrendamento, que existem mesmo entre os oprimidos. A família Peixoto explora o administrador da plantação, Sutério, que por sua vez abusa do poder que detém sobre os arrendatários. Uma das cenas mais emblemáticas do romance ocorre quando Sutério, “tendo se convidado” para entrar na cabana de Zeca Chapéu Grande, apodera-se de batatas-doces e garrafas de azeite de dendê empilhadas sobre uma mesa. “Pude ver a vergonha no rosto do meu pai enquanto ele estava ali, sem conseguir impedir o que estava acontecendo”, observa Bibiana.

Vi minha mãe fazer um leve movimento, os olhos ardendo de indignação, mas ela se conteve ao entender que meu pai iria ficar ali parado, sem protesto ou reclamação.

Frustrados e sentindo-se emasculados pelas humilhações que são forçados a suportar, muitos dos homens – embora não Zeca Chapéu Grande – descontam o seu ressentimento nas suas esposas e filhos. O trabalhador marido de Belonísia não foge à regra:

Tobias chegou em casa mais tarde, pingando suor e com os olhos injetados. Eu poderia dizer à distância que ele estava bebendo. Ele atrelou o cavalo com alguma dificuldade e entrou cambaleando em casa. ... Ele começou a xingar todo mundo: nossos vizinhos, Sutério, a família Peixoto.

Todas essas pressões, coletivas e individuais, continuam a se acumular, preparando o cenário para a dramática seção final do romance, “Rio de Sangue”.


Embora não seja natural do mundo fechado e rural sobre o qual escreve, Vieira sabe disso pela intimidade que advém do contato prolongado. Nascido em 1979 em Salvador, capital da Bahia, passou a adolescência em Pernambuco e no Maranhão. Depois de ganhar uma bolsa para jovens negros de baixa renda, voltou à Bahia para estudar geografia na universidade federal de Salvador; depois fez doutorado em estudos étnicos e africanos na mesma universidade, escrevendo sua tese sobre a formação de quilombos. Munido dessa experiência, ele passou a maior parte de sua vida profissional como geógrafo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), entrevistando moradores de quilombos e avaliando suas reivindicações de propriedade de terras que há muito cultivam para terceiros. Na verdade, foi apenas no início de 2023 que ele finalmente tirou uma licença do trabalho, para que pudesse fazer turnês de leitura na Alemanha, no Japão e em outros países onde seu livro obteve sucesso comercial e de crítica.

Essa experiência, combinada com o olhar intensamente observador de Vieira, confere a Torto Arado uma poderosa aura de autenticidade. Os costumes diários, ritos e rotinas de seus personagens são descritos em detalhes vívidos e simpáticos, assim como os campos ressecados onde os camponeses mal conseguem ganhar a vida. E embora Torto Arado seja um romance inundado de política, Vieira não negligencia as religiões sincréticas afro-brasileiras, proibidas até meados do século XX, que tradicionalmente mantiveram unidas as comunidades quilombolas. Essas crenças, centrais na sua história, são tratadas com respeito, e não como exóticas: tradicionalmente, alguns membros da esquerda brasileira as consideram um infeliz impedimento à mobilização política, mas Vieira não. Como ele explicou em entrevistas no Brasil, atrás da casa onde cresceu em Salvador, uma cidade às vezes chamada de “Roma Negra” devido à sua importância espiritual, havia um terreiro de candomblé – uma casa de culto para talvez a mais importante das religiões possuidoras de espíritos.

Originalmente publicado em Portugal em 2018, onde ganhou um prêmio de 100 mil euros pelo melhor romance inédito em língua portuguesa, e um ano depois no Brasil, Torto Arado, o primeiro romance de Vieira depois de duas coletâneas de contos, alcançou extraordinário sucesso crítico e comercial mais rapidamente do que qualquer livro brasileiro dos últimos anos. Vendeu mais de 900 mil exemplares no Brasil, ganhou o maior prêmio literário do país, foi traduzido para mais de vinte idiomas e está sendo transformado em uma série da HBO Max, segundo reportagens da imprensa, para durar pelo menos três temporadas.

Em entrevistas no Brasil, Vieira disse que Torto Arado é a primeira parte do que ele vê como uma trilogia. Um segundo volume, Salvar o Fogo, foi publicado no Brasil no ano passado e apresenta alguns dos mesmos personagens em circunstâncias diferentes: em vez do interior árido, sua luta pela sobrevivência ocorre nas terras férteis que cercam a Baía de Todos os Santos, onde o seu adversário já não é um proprietário ganancioso, mas um mosteiro católico romano. O esboço do terceiro romance final, ainda sem título, já pode ser discernido, pois há vários personagens repetidamente mencionados que ainda não apareceram e pontos da trama que precisam ser resolvidos.

A tradução admiravelmente fluida de Johnny Lorenz realça os muitos pontos fortes que Vieira demonstra como escritor. Lorenz, professor brasileiro-americano de inglês na Montclair State University, em Nova Jersey, que também traduziu algumas obras de Clarice Lispector, é especialmente adepto de apresentar diálogos de uma forma que soe absolutamente natural. Este é um romance que exige um tradutor capaz de captar as cadências e a economia incomuns da fala camponesa brasileira – um provérbio do Nordeste afirma que “para o verdadeiramente sábio, meia palavra basta”, e outro aconselha que “melhor ficar em silêncio do que falar mal” – e Lorenz está à altura do desafio de fazê-lo ser lido tão graciosamente em inglês quanto em português.

As descrições detalhadas de Vieira da “paisagem devastada pela seca sem fim” e dos seus habitantes sitiados têm muitas vezes uma beleza sombria, e Lorenz também capta isso habilmente, como nesta fotografia da casa da família:

A lama começou a sofrer erosão, expondo a treliça de madeira que sustentava a parede frontal. Era como um corpo em decomposição, permitindo que todos vissem os seus ossos, os espaços íntimos de uma casa, pois os buracos e as fendas estavam agora abertos. Olhar para o interior de uma casa era ver tudo o que possuímos, segredos que nunca deveriam ser revelados, segredos fundamentais para quem éramos.

Uma das primeiras coisas que o novo governo brasileiro fez após a queda da ditadura militar em 1985 foi declarar grande parte da Chapada Diamantina um parque nacional. Hoje é uma atração turística da moda tanto para brasileiros quanto para estrangeiros, repleta de pousadas ecológicas do tipo que Vieira zomba, e há até passeios privados pelo Patrimônio do Quilombo, durante os quais os visitantes podem refinar o óleo de palma, caminhar pelos campos de cana-de-açúcar e conhecer curandeiros tradicionais. Jimmy Page, fundador e guitarrista do Led Zeppelin, foi proprietário durante muitos anos de uma casa na região, que ele descreveu como seu “refúgio espiritual”. Para as pessoas que antes trabalhavam na vassalagem virtual, a nova popularidade da região criou muitos empregos em serviços como guias e em restaurantes, hotéis e lojas. Mas os ecos do passado permanecem: a região é agora mais rica, por isso a posse de terra e água é mais valiosa do que nunca e, portanto, vale a pena lutar mais arduamente, e um efeito não intencional da popularidade do romance de Vieira foi acelerar o interesse em visitar a área, sobrecarregando ainda mais uma infraestrutura inadequada.

Em maio de 2023, um mês antes da publicação do Torto Arado nos Estados Unidos, o INCRA, órgão que empregava Vieira, finalmente emitiu um certificado reconhecendo os direitos coletivos de propriedade da terra de trinta e nove famílias que vivem em Iúna, uma comunidade pantanosa rica em biodiversidade na periferia da Chapada Diamantina, após décadas de disputas jurídicas e ameaças de despejo. Mas ainda há muito trabalho a fazer: pelas próprias contas do INCRA, outros 977 processos no Nordeste continuam sem solução e a violência continua em toda a região. Em agosto, Mãe Bernadette, coordenadora da federação nacional dos quilombos e sacerdotisa do candomblé, foi morta a tiros em sua casa, nos arredores de Salvador. Portanto, o romance de Vieira é tudo menos uma peça de época; parece, como costumavam dizer os trailers de Hollywood, quase como se tivesse sido “arrancado das manchetes de hoje”.

Preocupo-me que o que escrevi aqui possa fazer com que o Torto Arado pareça uma espécie de agitprop para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil (MST), um sucessor moderno das Ligas Camponesas da década de 1960. Mas não é. É extraordinariamente bem escrito, oferece uma janela para a vida interior de uma classe de pessoas raramente considerada fora dos estudos acadêmicos e está impregnado de ternura e compaixão pelas suas personagens e pela sua situação. Enquanto escrevo isto, estou imerso em Salvar o Fogo e mal posso esperar pelo final da trilogia de Vieira. Torto Arado é muito bom.

Larry Rohter foi correspondente no Brasil da Newsweek de 1977 a 1982 e do The New York Times de 1998 a 2008. Sua biografia do explorador, cientista, estadista e conservacionista brasileiro Cândido Rondon, Into the Amazon, foi publicada em 2023.

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