17 de abril de 2024

Documentando seis meses de crimes de guerra israelenses em Gaza

Por seis meses, Israel tem deliberadamente matado civis em Gaza e destruído infraestrutura para tornar a área inabitável. O acadêmico israelense Lee Mordechai resume os resultados horríveis de uma operação que é totalmente imoral e criminosa.

Lee Mordechai

Jacobin

Um homem palestino reage perto dos escombros da mesquita Abu Bakr al-Siddiq e edifícios vizinhos em Deir Balah após um ataque israelense na Faixa de Gaza em 13 de abril de 2024. (Ashraf Amra / Anadolu via Getty Images)

Tradução / Nos últimos seis meses, Israel massacrou os palestinos em Gaza várias vezes, resultando na morte de mais de 30 mil palestinos, cerca de 70% dos quais são mulheres e crianças. Além disso, dezenas de milhares ficaram feridos. Esses números provavelmente são subestimados, considerando a destruição deliberada do sistema de saúde de Gaza por Israel, que é a única fonte independente desses números (que também são usados por Israel, incluindo seu primeiro-ministro e os militares).

Israel tem tentado causar a morte da população civil de Gaza. Isso foi feito por meio da destruição de instituições que sustentam a vida – como hospitais ou agências de ajuda – e também pelo estrangulamento da Faixa de Gaza em suas necessidades primordiais como alimentos, água e medicamentos. Como resultado, as pessoas em Gaza (principalmente crianças) já começaram a morrer de fome e desidratação.

Devido à falta de medicamentos, procedimentos médicos difíceis, como amputações e cesarianas, são realizados sem anestesia. Israel foi além na tentativa de destruir a estrutura da sociedade palestina, atacando deliberadamente instituições culturais, como universidades, bibliotecas, arquivos, edifícios religiosos e locais históricos.

Desumanização

O discurso israelense desumanizou os palestinos a tal ponto que a grande maioria dos judeus israelenses apoia as medidas mencionadas acima. Inúmeros vídeos da Faixa de Gaza enviados por soldados do Exército israelense atestam o abuso generalizado dos palestinos (incluindo violência cruel e desumanização), saques onipresentes e normalizados e destruição desenfreada de todos os tipos de propriedade com poucas consequências. Esse conteúdo é confirmado por depoimentos palestinos que retratam a experiência palestina de morte, destruição e abuso durante a detenção pelo aparato de segurança israelense.

Todas as evidências que vi sugerem que um dos objetivos de Israel tem sido a limpeza étnica da Faixa de Gaza, seja parcial ou total. Membros importantes do governo de Israel fizeram declarações confirmando essa intenção em diferentes momentos da guerra.

Vários ministérios do governo de Israel planejaram ou trabalharam para facilitar esse fim. Israel vem limpando partes significativas da Faixa de Gaza por meio de demolições e escavações, ao mesmo tempo em que constrói a infraestrutura militar israelense e tenta encurralar os palestinos em áreas limitadas da já populosa Faixa de Gaza.

A atenção global para Gaza desviou a atenção da Cisjordânia. Lá, as operações de Israel por meio de seus militares ou colonos desde o início da guerra resultaram na morte de centenas de palestinos, na limpeza étnica de pelo menos quinze comunidades locais e um aumento acentuado dos níveis de violência e abuso por parte do Estado israelense e dos colonos judeus.

Tudo isso foi possível graças ao forte apoio da maioria dos principais meios de comunicação em Israel e no Ocidente, principalmente nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Alemanha. A campanha pró-guerra – apoiada tanto pelo Estado quanto pela grande mídia nesses locais – legitimou a violência e as ações israelenses, desviou a atenção de muitos acontecimentos em Gaza e contribuiu para a desumanização dos palestinos.

Além disso, Israel não permitiu a entrada de repórteres independentes na Faixa de Gaza durante os últimos dez meses de guerra, amplificando sua própria voz e limitando a capacidade do mundo de entender a experiência da guerra na faixa.

Reféns israelenses

Em 7 de outubro de 2023, militantes do Hamas atacaram Israel, matando cerca de 1.200 pessoas, a maioria civis, e levando cerca de 250 pessoas como reféns para Gaza. Essas atrocidades são crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Os terríveis eventos de 7 de outubro – que fazem parte de um contexto histórico que remete ao conflito de um século entre Israel e os palestinos – deram início à guerra atual.

Um dos objetivos da guerra, de acordo com o governo israelense, é libertar os reféns – mais de 130 dos quais permanecem cativos do Hamas. Aqui, também, as evidências sugerem que uma operação militar não é para libertá-los. Até o momento, Israel libertou apenas três reféns por meio de operações militares, enquanto matou muitos outros direta ou indiretamente por meio de suas ações. Atualmente, a sociedade israelense está dividida em relação à questão dos reféns, o que é, pelo menos parcialmente, o resultado das ações do governo israelense.

A operação militar que libertou dois dos três reféns até o momento também matou dezenas de habitantes de Gaza, em sua maioria civis. Três outros reféns israelenses foram mortos pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) em Gaza, apesar de agitarem bandeiras brancas e pedirem ajuda. Outro foi morto durante uma tentativa de operação de resgate. Três outros foram supostamente mortos pelo gás com o qual as IDF inundaram os túneis.

No final de fevereiro, um relatório israelense constatou que pelo menos dez reféns foram mortos pelas ações da IDF, incluindo um caso em que a IDF bombardeou um prédio que suspeitava ter um refém israelense. No final de março, um jornalista experiente especializado em inteligência militar compartilhou uma estimativa de que apenas 60 a 70 dos reféns ainda estão vivos.

Por outro lado, um cessar-fogo temporário resultou na libertação de 105 reféns. Em vez de negociar a libertação de mais reféns, o governo israelense prefere continuar sua operação militar, apesar do risco óbvio para os reféns. Os reféns libertados na troca anterior declararam repetidamente que os bombardeios israelenses estavam entre as coisas mais aterrorizantes que vivenciaram durante o cativeiro.

Em meados de março, o chefe de gabinete da unidade da IDF responsável pelos reféns pediu demissão por achar que a liderança política de Israel não estava interessada em chegar a um acordo. Sentimentos semelhantes foram expressos dentro do aparato de segurança de Israel. Vários membros do governo desprezaram os parentes dos reféns. No final de março, alguns dos familiares dos reféns culparam publicamente o primeiro-ministro de Israel por adiar continuamente um acordo para libertá-los. Em meados de abril, dois membros da equipe de negociações de Israel, pelo menos um dos quais esteve envolvido por seis meses, disseram explicitamente que o governo e especialmente o primeiro-ministro de Israel estão tentando adiar e até mesmo impedir um acordo para libertar os reféns. Fontes estrangeiras afirmaram coisas semelhantes.

Uma guerra contra civis

Apesar das atrocidades do Hamas mencionadas anteriormente, acredito que a resposta de Israel aos eventos de 7 de outubro nos últimos meses continua sendo totalmente desproporcional, imoral e criminosa. Minha posição sobre essas questões representa uma pequena minoria na sociedade israelense. Em pesquisas sobre esse assunto, apenas 1,8% (outubro), 7% (dezembro) e 3,2% (janeiro) dos israelenses judeus acreditavam que as IDF estavam usando poder de fogo excessivo em Gaza.

A carne mais barata do mercado é a palestina. Em um caso, um carro com seis civis foi atacado, matando quatro. Uma garota de 15 anos ligou para a Cruz Vermelha Palestina do carro, mas foi morta durante a conversa. Sua prima, Hind Rajab, de seis anos, ligou novamente e permaneceu na linha, aterrorizada e cercada por seus familiares mortos, por três horas.

A Cruz Vermelha Palestina enviou dois paramédicos para resgatá-la, informando a IDF sobre sua movimentação. Todas as conexões com Hind e os paramédicos foram perdidas. Doze dias depois, o cadáver em decomposição de Hind foi encontrado no carro, enquanto os paramédicos foram mortos nas proximidades quando um tanque da IDF atirou em sua ambulância.

Em outra ocasião, as tropas das IDF entraram na casa de uma família e mataram os dois pais na frente de seus filhos (de 11, 9 e 5 anos; o mais novo, com paralisia cerebral, perdeu o olho por causa de uma granada lançada pelos soldados). Além disso, as IDF enviaram um prisioneiro algemado para entregar uma mensagem de evacuação de um hospital em Khan Younis e, em seguida, atiraram nele quando tentava sair pelo portão. Em seguida, as IDF bombardearam o hospital. Vários médicos que retornaram de Gaza disseram ao The Guardian que os atiradores de elite das IDF atiraram em crianças, causando “ferimentos de bala na cabeça ou no peito” que mataram algumas delas.

Um cidadão de Gaza detido teve suas mãos amarradas antes de ser atropelado por um tanque israelense, possivelmente enquanto ainda estava vivo. Uma imagem de seu cadáver mutilado foi compartilhada em um popular canal de mensagem israelense com uma postagem dizendo: “Vocês vão adorar isso!!!” Uma organização de direitos humanos documentou outras ocasiões em que soldados israelenses atropelaram deliberadamente dezenas de civis palestinos enquanto eles estavam vivos.

Em outro caso, um soldado da IDF atirou e matou um homem palestino com deficiência na frente de sua mãe em um hospital de Gaza, depois que o homem gritou de medo e não se calou como o soldado ordenou. Outro soldado matou um palestino desarmado de 73 anos que fez sinal para que ele não atirasse. Em resposta, o comandante do soldado disse: “Ele fez sinal de ‘não, não [com as mãos]’ e você o matou? Excelente.” Há muitas histórias semelhantes de soldados da IDF que mataram civis propositalmente.

O Massacre da Farinha

Em um acontecimento que se tornou famoso, o “massacre da farinha”, pelo menos 118 civis foram mortos e mais de 700 ficaram feridos quando tentavam pegar comida de um comboio de caminhões que traziam ajuda humanitária.

Os palestinos insistiram que a IDF atirou neles, enquanto a IDF alegou que a maioria das vítimas morreu devido à superlotação e ao caos geral onde os caminhões atropelaram os civis. Em ambos os casos, a IDF seria responsável pela morte de civis. A mídia internacional confirmou a versão palestina da história, em parte porque a IDF não forneceu evidências para apoiar suas alegações (um vídeo da IDF que supostamente mostrava o acontecimento foi claramente editado várias vezes, e a IDF se recusou a divulgar o vídeo completo) e em parte por causa dos depoimentos de moradores de Gaza que vivenciaram o massacre. Especialistas da ONU e organizações de direitos humanos também concordam plenamente. Uma investigação recente da CNN encontrou inconsistências na versão das IDF e lançou mais dúvidas sobre ela, sugerindo que os disparos das IDF contra os palestinos precederam o caos geral.

De acordo com o diretor do hospital de Al-Awda, a grande maioria das pessoas que vieram para receber tratamento para ferimentos após o acontecimento (142 de 176) sofreu ferimentos de bala. Especialistas da ONU, bem como fontes on-line e vídeos, sugerem que os palestinos que buscavam alimentos foram baleados em muitas ocasiões nos dias anteriores e posteriores ao “massacre da farinha”.

O ministro da segurança nacional de Israel elogiou os soldados da IDF por sua conduta durante esse evento. A lei internacional estipula que Israel é obrigado a fornecer alimentos e água nas áreas em que é uma potência ocupante. Nesse contexto, Israel e os Estados Unidos foram os únicos dois países que votaram contra a declaração de que a alimentação é um direito humano nas Nações Unidas em 2021.

O alto comissário da ONU para direitos humanos reiterou que não há espaço seguro em Gaza. Há várias valas comuns onde cadáveres de palestinos foram depositados, com outros cadáveres decompostos nas ruas. Os relatórios documentaram dezenas de exemplos de execuções em campo realizadas pelo exército israelense.

Em um desses acontecimentos, em 19 de dezembro, as tropas da IDF teriam executado pelo menos 19 homens palestinos desarmados na frente de seus familiares. Em outro, mais de 30 cadáveres de palestinos foram encontrados em sacos plásticos pretos, com os olhos vendados e algemados.

Poucos desses casos foram sequer cobertos pela mídia israelense. Em uma pesquisa de janeiro, 2/3 dos israelenses preferiam continuar a guerra em sua forma atual de bombardeio excessivo e violento. Em uma pesquisa de fevereiro, cerca de 3/4 dos judeus israelenses apoiaram a continuação da operação militar em Rafah.

Cerco de fome

Desde o início da guerra, Israel tem mantido a população palestina de Gaza sob controle. As quantidades de alimentos, combustível, medicamentos e água disponíveis são extremamente limitadas. A ausência de suprimentos em Gaza – um cerco – tem sido a política declarada das principais autoridades israelenses desde o início da guerra. Até o início de abril, apenas cerca de 20 a 30% dos 500 caminhões necessários para abastecer Gaza por causas humanitárias tinham permissão para entrar diariamente e enfrentam vários problemas ao tentar fazer isso, inclusive ataques das IDF.

Desde o início da guerra, Gaza vem sofrendo um apagão total de eletricidade. Um estudo revelou que, em janeiro, a luz noturna em Gaza foi reduzida em 84%. Depoimentos da faixa revelam que os livros da biblioteca da universidade foram queimados como lenha para fogueiras. Em abril, o preço de um litro de gasolina chegou a 150 shekels (cerca de US$ 40).

Na parte norte da Faixa de Gaza, no início de fevereiro, o preço de um saco de farinha, que era de 30 shekels (cerca de US$ 8) antes da guerra, chegou a 500 a 1.000 shekels (cerca de US$ 125-250), 15 a 30 vezes mais caro. No final de fevereiro, o preço de um prato com um pouco de carne crua e arroz chegou a US$ 95, de acordo com a mídia social, enquanto um enfermeiro do Hospital Al-Shifa afirmou que não comia pão há dois meses, durante os quais consumiam ração animal. Em abril, o preço de 1Kg de açúcar chegou a 70 shekels (US$ 19).

Ao mesmo tempo, o principal especialista da ONU em direito à alimentação descreveu as circunstâncias como “uma situação de genocídio”, enquanto o Programa Mundial de Alimentos declarou que “as pessoas já estão morrendo por causas relacionadas à fome”. No início de abril, 32 pessoas (das quais 28 eram crianças) em Gaza haviam morrido de desnutrição ou desidratação. Nesse contexto, o alto representante da UE para assuntos estrangeiros e política de segurança declarou perante o Conselho de Segurança da ONU que “a fome está sendo usada [por Israel] como arma de guerra”.

Como resultado, a grande maioria da população de Gaza está correndo o risco de passar fome. Praticamente todas as famílias estão pulando refeições todos os dias, com 50 a 80% das famílias passando dias e noites inteiros sem comer. Cerca de 90% dos civis em Gaza apresentam “altos níveis de insegurança alimentar aguda”. No final de janeiro, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde observou a escassez de alimentos que faz com que as equipes médicas e os pacientes recebam apenas uma refeição por dia.

Cerca de 265.000 pessoas estão enfrentando níveis de crise de insegurança alimentar, e 854.000 pessoas estão enfrentando níveis emergenciais de insegurança alimentar. A outra metade da população de Gaza (1,1 milhão) sofre com níveis catastróficos de insegurança alimentar. O economista-chefe do Programa Mundial de Alimentos enfatizou que “em minha vida, nunca vi nada parecido com isso em termos de gravidade, escala e velocidade”.

Um importante estudioso da fome e diretor executivo da World Peace Foundation declarou que nunca tinha visto o crime de guerra da fome ser cometido em tal escala nos quarenta anos de sua carreira: “O rigor, a escala e a velocidade da destruição das estruturas necessárias para a sobrevivência e a imposição do cerco superam qualquer outro caso de fome provocada pelo homem nos últimos 75 anos.” Uma organização de ajuda declarou na CNN que Gaza estava sofrendo o mais rápido declínio no estado nutricional já registrado em uma população humana.

A cobertura da mídia mostra pessoas comendo grama e bebendo água contaminada ou água do mar. Um grupo de organizações de ajuda humanitária que inclui o UNICEF declarou no final de fevereiro que mais de 90% das crianças com menos de 5 anos de idade em Gaza estavam enfrentando “grave pobreza alimentar”. Uma porcentagem semelhante de crianças estava sofrendo de doenças infecciosas, sendo que 70% delas tiveram diarreia durante duas semanas em fevereiro. Imagens e vídeos da faixa parecem confirmar essas descobertas.

"Condições apocalípticas"

Apesar dessa situação, os oficiais da IDF exigiram uma redução ainda maior da ajuda humanitária a Gaza. Cerca de 60% dos judeus israelenses se opõem à ajuda humanitária a Gaza, um número estável ao longo do tempo. Militantes sionistas bloquearam completamente a entrada de ajuda à Gaza em várias ocasiões nos últimos meses. Soldados do IDF gravaram a si mesmos destruindo e queimando armazéns de alimentos em Gaza.

Novembro passado, a média de abastecimento de água por pessoa em Gaza era de 1,5 a 1,8 litros diários, quando o volume médio mínimo de água para beber e para higiene doméstica deveria ser de 15 litros. Esse número diminuiu para menos de um litro, em média, em fevereiro.

A falta de suprimentos médicos resultou na realização de operações médicas, inclusive cesarianas e amputações, sem anestesia ou estoque de sangue. Um vídeo mostra um médico de Gaza que teve de amputar o pé de sua filha na mesa de jantar de sua casa sem anestesia.

Um estudante de medicina do Hospital al-Shifa conta como teve de reconstruir o rosto de um menino que foi ferido em um bombardeio israelense durante três horas, no escuro e sem anestesia. Há muitas histórias semelhantes. Como resultado da falta de suprimentos, as mulheres que enfrentam sangramento pós-parto ao dar à luz foram submetidas a histerectomias por falta de medicamentos e suprimento de sangue, impedindo-as de dar à luz no futuro.

De acordo com o diretor regional da Oxfam no Oriente Médio:

Estamos agora no estágio abominável de bebês morrendo por causa de diarreia e hipotermia. É chocante que os recém-nascidos estejam vindo ao mundo e, devido às condições apocalípticas, tenham pouca chance de sobreviver.

Em alguns casos, as mães tiveram que dar à luz em salas de aula cheias com outras setenta pessoas, o que o diretor descreveu como “desumano”. Os abortos espontâneos em Gaza aumentaram em 300% em comparação com a situação anterior à guerra.

O sistema de saúde de Gaza entrou em colapso, com apenas um terço dos hospitais de Gaza e 25% de seus centros de saúde primários ainda parcialmente operacionais. Até o momento, há pelo menos centenas de milhares de casos registrados de doenças em Gaza. Ainda em dezembro, foram registrados mais de 100 mil casos de diarreia, metade dos quais em crianças de 5 anos ou menos (25 vezes a frequência anterior à guerra).

Em média, há um chuveiro em Gaza para cada 4.500 pessoas e um banheiro para cada 220. Importantes vozes públicas em Israel – como Giora Eiland, ex-general e chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel e conselheiro oficial do ministro da Defesa de Israel em tempos de guerra – disseram ser a favor de permitir que as doenças dizimassem a população civil em Gaza.

Israel tem desmantelado sistematicamente o sistema de saúde em Gaza. No final de fevereiro, o diretor da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) declarou que “não há mais nenhum sistema de saúde em Gaza”. Israel justificou grande parte desse fato afirmando que as instalações médicas foram usadas para fins militares, mas o diretor da MSF também declarou que sua organização “não viu nenhuma evidência disso, verificada de forma independente”.

O diretor de saúde pública global da Universidade de Edimburgo declarou em dezembro que:

O mundo enfrenta a perspectiva de que quase 25% dos 2 milhões de habitantes de Gaza – cerca de 500 mil seres humanos – morram em um ano. Essas mortes seriam em grande parte decorrentes de causas de saúde evitáveis e do colapso do sistema médico.

Outros acadêmicos chegaram a conclusões semelhantes e mais detalhadas.

Limpeza étnica

A limpeza étnica é discutida abertamente no discurso israelense, inclusive por ministros do governo no poder. Isso inclui os ministros da Fazenda e da Segurança Nacional, o ex-ministro da Informação e um ex-ministro da Justiça. Os deputados israelenses também participaram da discussão. Uma proposta do governo israelense para repovoar os territórios de Gaza na Península do Sinai (parte do Egito) foi vazado.

Israel também tentou fazer com que os Estados Unidos pressionassem o Egito a aceitar refugiados de Gaza e tentou convencer vários outros países, inclusive o Congo, a aceitar refugiados palestinos. Outros locais que os membros do governo de Israel sugeriram como possíveis locais de reassentamento incluem a Arábia Saudita, a Jordânia, o Chile e os estados membros da União Europeia.

De acordo com relatos da mídia israelense, Chade e Ruanda manifestaram interesse em aceitar dezenas de milhares de palestinos em troca de generoso apoio financeiro, incluindo apoio militar. Em meados de fevereiro, uma organização local de direitos humanos revelou que o Egito estava construindo uma área de segurança máxima para receber refugiados palestinos.

A ausência de objetivos claros ou de um fim claro para a guerra permitiu que muitos israelenses apoiassem o reassentamento de Gaza com assentamentos judaicos após a guerra. Mais de 30 organizações de direita apoiaram esse objetivo em uma conferência no final de janeiro. Um total de 11 ministros e 15 deputados (de um total de 120) participaram da conferência. Vários soldados da IDF declararam sua vontade de reassentar Gaza enquanto estavam uniformizados e dentro de Gaza. Pesquisas realizadas em fevereiro e março revelam que cerca de 20% dos judeus israelenses acreditam que Israel deve reassentar Gaza.

As aspirações de reassentar a Faixa de Gaza são comuns no discurso. Um vídeo no final de fevereiro mostra um trator civil israelense trabalhando em campos dentro da Faixa de Gaza como uma “foto de vitória”. No início de março, militantes sionistas conseguiram entrar brevemente na Faixa de Gaza em uma tentativa de construir um assentamento lá. No início da guerra, os soldados da IDF construíram “a primeira sinagoga em Khan Younis” e outra sinagoga no local, além de inaugurar um pergaminho da Torá em três ocasiões (Sheikh Radwan na Cidade de Gaza, a Universidade Islâmica em Gaza e Khan Younis).

Um soldado filmou a si mesmo pintando com spray o Templo de Jerusalém nas ruínas de uma mesquita destruída em Gaza. No início da guerra, a Donna Italia (uma rede internacional de pizzarias) parece ter aberto uma pizzaria na casa de uma família desalojada em Khan Younis para apoiar as tropas da IDF. Uma “pizzaria” militar da IDF supostamente funcionou em Khan Younis, e os soldados colocaram uma placa de um restaurante de fast-food que poderia abrir em breve em Gaza. Outros soldados seguraram uma placa comercial de uma empresa de construção dos EUA de Nova Jersey (e uma bandeira dos Estados Unidos) com os prédios destruídos de Gaza ao fundo.

Destruição sistemática

Todas as evidências que vi indicam que Israel está destruindo sistematicamente Gaza para torná-la inabitável para palestinos no futuro. Diz-se que Israel lançou mais de 500 bombas de 2.000 kg na área urbana densamente povoada, apesar do enorme dano colateral que essas bombas causam (causando morte ou ferimentos em um raio de até 365 metros ao redor do alvo). Essas bombas são quatro vezes mais pesadas do que os maiores dispositivos usados pelos Estados Unidos no combate ao ISIS em Mosul.

Mais de 60% das moradias de Gaza foram destruídas ou danificadas. Em meados de janeiro, os especialistas estimaram, com base em imagens de satélite, que entre 142.900 e 176.900 edifícios haviam sido danificados. No início de março, 54,8% dos edifícios na Faixa de Gaza estavam provavelmente danificados ou destruídos. Um relatório do Banco Mundial e da ONU constatou que o custo dos danos aos edifícios na Faixa chegou a US$ 18,5 bilhões.

No final de março, a atividade militar israelense resultou na destruição completa de 1/4 a 1/3 das estufas, na danificação de 40 a 48% das plantações de árvores em Gaza, na perda ou dano de 48% da cobertura de árvores e na destruição de 38% das terras agrícolas. Como resultado da destruição em massa, 89% dos trabalhadores de Gaza perderam seus empregos até dezembro.

Israel destruiu não apenas edifícios cuja conexão com os militantes do Hamas é fraca, mas também uma longa lista de instituições culturais, locais históricos e arqueológicos, dezenas de edifícios governamentais (incluindo o parlamento e o principal tribunal), edifícios religiosos (mais de 223 mesquitas e três igrejas), universidades (a maioria ou todas as universidades de Gaza foram destruídas, de acordo com o Euro-Med Human Rights Monitor), hospitais, bibliotecas públicas e arquivos.

No início de dezembro, os ataques israelenses já haviam destruído ou danificado mais de 100 patrimônios históricos, incluindo edifícios dos períodos medieval, bizantino e romano de Gaza. Soldados foram filmados dentro de um armazém cheio de antiguidades e parece que houve uma postagem do diretor da Autoridade de Antiguidades de Israel que afirmava que algumas dessas antiguidades foram levadas para Israel e apresentadas no Knesset (a postagem foi excluída posteriormente). Mais de 60% de todos os prédios escolares sofreram danos.

Um soldado da IDF alega que sua unidade recebeu ordens para destruir o vilarejo de Khuzaʽa e fez o upload de um vídeo mostrando que eles cumpriram a missão em duas semanas. Pelo menos 16 cemitérios foram profanados pela IDF, muitas vezes por meio de escavações. Um vídeo mostra os resultados dessa operação, com cadáveres espalhados pela paisagem. Outro vídeo mostra o incêndio do bairro de Shujjaiya em uma operação militar.

A IDF também destruiu grandes áreas na Faixa de Gaza. A quantidade de detritos criada pela destruição de áreas residenciais (cerca de 26 milhões de toneladas métricas) levará muitos anos para ser removida, de acordo com as estimativas. No final de março, um porta-voz da UNICEF descreveu a “aniquilação total” em Khan Younis, afirmando que “a profundidade do horror ultrapassa nossa capacidade de descrevê-lo”.

Após dois meses de combate, Israel já havia causado mais destruição em Gaza do que a Síria em Aleppo (2012-16), a Rússia em Mariupol em 2022, ou (proporcionalmente) o bombardeio da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, bem como as lutas contra o ISIS em Mosul (2016-17) e Raqqa (2017). A destruição em Gaza resultou no deslocamento de cerca de 75% de sua população.

Como espero ter demonstrado por meio das evidências acima, a situação em Gaza é uma catástrofe horrível que continua a se desenrolar diariamente diante de nossos olhos. O mínimo que posso fazer é reunir as evidências e me manifestar agora.

Colaborador

Lee Mordechai é professor sênior na Universidade Hebraica de Jerusalém. Ele é coautor de Diseased Cinema: Plagues, Pandemics, and Zombies in American Movies.

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