Mônica Bergamo
Folha de S.Paulo
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o governo do presidente Lula (PT) ainda patina na comunicação digital e no combate às fake news.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante entrevista concedida à Folha em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress |
Nesta entrevista concedida em seu gabinete no Ministério da Fazenda, em Brasília, ele afirma que o governo quer uma "saída democrática" para o problema da disseminação de discursos de ódio em redes sociais, ao contrário de países que adotam saídas autoritárias, "proíbe e acabou".
Ao fazer um balanço do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, ele diz ainda que o uso que opositores fazem da religião na política e o enfraquecimento do Estado laico é um elemento novo e desafiador para o petista e seus apoiadores.
Diz, no entanto, que "Lula é um produto da modernidade", e jamais vai colocar a sua fé em cima de um palanque.
Ao fazer um balanço do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, ele diz ainda que o uso que opositores fazem da religião na política e o enfraquecimento do Estado laico é um elemento novo e desafiador para o petista e seus apoiadores.
Diz, no entanto, que "Lula é um produto da modernidade", e jamais vai colocar a sua fé em cima de um palanque.
Haddad ainda revela que Lula tinha "uma certa mágoa" de amigos que sumiram em "momentos difíceis", mas que tudo isso foi se diluindo nos primeiros meses de governo.
Afirma ainda que vê o petista "mais na vibração de governos anteriores do que estava no começo" da atual administração.
Afirma ainda que vê o petista "mais na vibração de governos anteriores do que estava no começo" da atual administração.
GOVERNOS LULA E BOLSONARO
Lula tem já um ano e quatro meses na Presidência, sob o slogan oficial "União e Reconstrução", o que diz algo sobre o presente, mas não aponta para o futuro. Para onde caminha o governo Lula? Ou sua missão, como disse o ex-presidente do Uruguai José Mujica a Gabriel Boric quando ele foi eleito presidente do Chile, é apenas a de segurar o barranco para ele não despencar? O que é pouco, apesar de exigir um grande esforço?
O presidente Lula está reconstruindo muita coisa que estava em decomposição. Há um esforço de reorganização do Estado e de políticas públicas que é notável. O Ministério do Meio Ambiente estava liquidado, o da Saúde era negacionista, a Ciência e Tecnologia vivia um descalabro.
Há também as instituições. Eu não quero viver em uma ditadura.
Talvez tudo isso que estamos fazendo não apareça em um primeiro momento. Mas não é pouco.
Não houve propriamente um governo Bolsonaro que nos antecedeu. Ele terceirizou para o Legislativo e não governou.
A reforma da Previdência foi feita à revelia dele. Falavam coisas fantasiosas, que ela geraria uma economia de R$ 1 trilhão. Que mais R$ 1 trilhão seriam arrecadados em privatizações. Que haveria ajuste fiscal no primeiro ano de governo.
E o que aconteceu? Nada. O déficit em 2020 foi de quase R$ 1 trilhão.
Agora, conversávamos muito sobre bobagens. Vacina versus jacaré. Imposto do jetski.
Eu estou discutindo uma reforma tributária depois de 40 anos [de expectativas].
Qual é o termo de comparação? Pelo amor de Deus.
REDES E DESINFORMAÇÃO
O governo tem problema de comunicação, como se repete, ou político e de coordenação?
Eu concordo com os críticos que dizem que nós ainda estamos muito analógicos nas redes sociais. O combate às fake news é um problema ainda para nós.
Eu às vezes recebo relatório de [publicações em] redes. O grau de desinformação é muito grande.
O Lula não viveu isso nos oito anos de seus governos anteriores. Ele próprio fala: "Nós não temos engajamento? Mas como é que é isso?".
[Explicam ao presidente] "É que isso é patrocinado, tem dinheiro de fora, tem dinheiro daqui, tem dinheiro de lá".
O mundo inteiro está enfrentando esse fenômeno. O ministro de Finanças da França, Buno Le Maire, me disse que a extrema direita lá está crescendo nas redes sociais.
LONGO INVERNO
E o governo está perdido, sem saber como lidar com isso?
Nós queremos uma saída democrática para o problema. Não queremos uma saída autoritária. Tem países que adotam saídas autoritárias. Proíbe [o funcionamento das plataformas] e acabou.
Nós queremos proteger o indivíduo de uma avalanche de desinformação que ofende a sua reputação e contra a qual ele não tem proteção.
Nós temos também que calibrar melhor a nossa comunicação, os nossos discursos. Precisamos aprender a lidar com essa ascensão da extrema direita.
Será um ciclo longo, um inverno longo. A extrema direita não é episódica. Ela pode até durar pouco no curso da História. Mas às custas de muita destruição às vezes.
A Segunda Guerra Mundial é fruto da ascensão da extrema direita. E foram 60 milhões de vidas perdidas.
E qual é a dificuldade para fazer esse enfrentamento?
Quando você tem um partido de centro-esquerda de um lado e um de centro-direita de outro, há paridade de armas.
Com a extrema direita não há paridade. Essa que é a verdade. Não tem proteção. Ela usa ferramentas que não são da nossa cultura.
LULA EM 2024
O senhor convive intensamente com o presidente há 20 anos. Qual é a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024? Ele está menos entusiasmado, com menos paciência de conversar?
No começo deste governo, eu o sentia mais ansioso por entregas. Porque uma coisa é um jovem de 50 e poucos anos que chega pela primeira vez à Presidência. Outra coisa é um senhor que já viveu tudo o que ele viveu.
Não vai ser fácil arrumar tudo o que precisa ser arrumado [no país]. Dá trabalho mesmo, vai levar tempo.
Mas penso que essa ansiedade dele foi refluindo ao longo dos meses. E Lula hoje está mais na vibração dos governos anteriores do que estava no começo.
Outra coisa que eu sentia, e que não vejo mais, é que ele tinha uma certa mágoa, sabe? Dos amigos que sumiram no momento difícil.
Mas isso também foi se diluindo. Ele foi reconectando, voltando a conversar com as pessoas.
Às vezes as pessoas exigem do Lula uma coisa que ninguém está disposto a oferecer por si próprio, entendeu? Uma inumanidade, como se ele fosse... ele é um ser humano. Ele sofreu, passou agruras e enfrentou desafios que pouca gente teria condições de superar.
Pô, o cara é um gigante. Passou o que passou, disputou e ganhou a eleição, naquele aperto, fez a transição.
E a questão de ele não dialogar mais com tanta gente com a mesma frequência? Lula está mais fechado, mais caseiro, também por causa de sua nova fase pessoal, de recém-casado?
Sinceramente, eu acredito que não. E eu acredito piamente que a Janja faz bem para o Lula, quer o bem do Lula, quer participar, como qualquer pessoa no lugar dela gostaria [de participar]. Respeita o trabalho dos ministros. Os dois estão sempre juntos, bem. É um clima bom.
O governo Lula, afinal, é de centro ou de centro-direita, como disse o ex-ministro José Dirceu?
O PT é um partido de centro-esquerda, não tem dúvida. Mas fez em 2022 uma aliança com a direita para ganhar a eleição e governar. Então eu diria que ele está no ponto médio entre essas duas forças.
É uma coalizão para evitar o mal maior. Enquanto a extrema direita estiver com essa força e com esses instrumentos de ataque, essa aliança será uma proteção para o país. Isso ocorre também em Portugal, na Espanha, mundo afora.
O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio
A repolarização em torno de perspectivas mais saudáveis e democráticas exigirá, antes, o refluxo da extrema direita no Brasil e no mundo.
E eu lamento dizer que considero o [ex-presidente Jair] Bolsonaro uma boa tradução do que muita gente pensa no Brasil. Eu lamento porque me choca que isso [organização da extrema direita] tenha se dado em torno dessa figura que tem uma mentalidade muito arcaica, quase medieval.
O fenômeno é mundial, mas aqui tem essa idiossincrasia. Eu lamento. Porque até a extrema direita no mundo come de garfo e faca às vezes.
ESTADO X FÉ
Vocês lançaram um pacote de crédito voltado ao pequeno empreendedor, e Lula tem sido aconselhado a falar mais com o segmento evangélico para recuperar terreno nesse público. Como isso vai acontecer?
O Estado laico está perdendo terreno no mundo inteiro para o uso malicioso da religião no embate político.
A separação clássica e recomendável da teoria democrática, de não se usar a religião em proveito próprio, está se perdendo.
É um elemento que faz diferença.
Foi o Lula que sancionou a Lei da Liberdade Religiosa.
Ele recebe [líderes religiosos], eu recebo.
O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio.
Fé e relação com a espiritualidade são questões de foro pessoal. A partir do momento em que você põe isso num palanque, de forma oportunista, leva as pessoas a um tipo de paixão que não tem aderência à realidade.
Essa família que governou o país [Bolsonaro], pelo amor de Deus, né? Está muito longe de qualquer valor religioso. E, no entanto, usam a torto e a direito esse tipo de coisa.
Esperar que o Lula também faça isso? Ele não vai fazer.
O Lula é um produto da modernidade. Estamos falando de um combate a forças obscurantistas, e o Lula não vai entrar nessa.
Lula tem já um ano e quatro meses na Presidência, sob o slogan oficial "União e Reconstrução", o que diz algo sobre o presente, mas não aponta para o futuro. Para onde caminha o governo Lula? Ou sua missão, como disse o ex-presidente do Uruguai José Mujica a Gabriel Boric quando ele foi eleito presidente do Chile, é apenas a de segurar o barranco para ele não despencar? O que é pouco, apesar de exigir um grande esforço?
O presidente Lula está reconstruindo muita coisa que estava em decomposição. Há um esforço de reorganização do Estado e de políticas públicas que é notável. O Ministério do Meio Ambiente estava liquidado, o da Saúde era negacionista, a Ciência e Tecnologia vivia um descalabro.
Há também as instituições. Eu não quero viver em uma ditadura.
Talvez tudo isso que estamos fazendo não apareça em um primeiro momento. Mas não é pouco.
Não houve propriamente um governo Bolsonaro que nos antecedeu. Ele terceirizou para o Legislativo e não governou.
A reforma da Previdência foi feita à revelia dele. Falavam coisas fantasiosas, que ela geraria uma economia de R$ 1 trilhão. Que mais R$ 1 trilhão seriam arrecadados em privatizações. Que haveria ajuste fiscal no primeiro ano de governo.
E o que aconteceu? Nada. O déficit em 2020 foi de quase R$ 1 trilhão.
Agora, conversávamos muito sobre bobagens. Vacina versus jacaré. Imposto do jetski.
Eu estou discutindo uma reforma tributária depois de 40 anos [de expectativas].
Qual é o termo de comparação? Pelo amor de Deus.
REDES E DESINFORMAÇÃO
O governo tem problema de comunicação, como se repete, ou político e de coordenação?
Eu concordo com os críticos que dizem que nós ainda estamos muito analógicos nas redes sociais. O combate às fake news é um problema ainda para nós.
Eu às vezes recebo relatório de [publicações em] redes. O grau de desinformação é muito grande.
O Lula não viveu isso nos oito anos de seus governos anteriores. Ele próprio fala: "Nós não temos engajamento? Mas como é que é isso?".
[Explicam ao presidente] "É que isso é patrocinado, tem dinheiro de fora, tem dinheiro daqui, tem dinheiro de lá".
O mundo inteiro está enfrentando esse fenômeno. O ministro de Finanças da França, Buno Le Maire, me disse que a extrema direita lá está crescendo nas redes sociais.
LONGO INVERNO
E o governo está perdido, sem saber como lidar com isso?
Nós queremos uma saída democrática para o problema. Não queremos uma saída autoritária. Tem países que adotam saídas autoritárias. Proíbe [o funcionamento das plataformas] e acabou.
Nós queremos proteger o indivíduo de uma avalanche de desinformação que ofende a sua reputação e contra a qual ele não tem proteção.
Nós temos também que calibrar melhor a nossa comunicação, os nossos discursos. Precisamos aprender a lidar com essa ascensão da extrema direita.
Será um ciclo longo, um inverno longo. A extrema direita não é episódica. Ela pode até durar pouco no curso da História. Mas às custas de muita destruição às vezes.
A Segunda Guerra Mundial é fruto da ascensão da extrema direita. E foram 60 milhões de vidas perdidas.
E qual é a dificuldade para fazer esse enfrentamento?
Quando você tem um partido de centro-esquerda de um lado e um de centro-direita de outro, há paridade de armas.
Com a extrema direita não há paridade. Essa que é a verdade. Não tem proteção. Ela usa ferramentas que não são da nossa cultura.
LULA EM 2024
O senhor convive intensamente com o presidente há 20 anos. Qual é a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024? Ele está menos entusiasmado, com menos paciência de conversar?
No começo deste governo, eu o sentia mais ansioso por entregas. Porque uma coisa é um jovem de 50 e poucos anos que chega pela primeira vez à Presidência. Outra coisa é um senhor que já viveu tudo o que ele viveu.
Não vai ser fácil arrumar tudo o que precisa ser arrumado [no país]. Dá trabalho mesmo, vai levar tempo.
Mas penso que essa ansiedade dele foi refluindo ao longo dos meses. E Lula hoje está mais na vibração dos governos anteriores do que estava no começo.
Outra coisa que eu sentia, e que não vejo mais, é que ele tinha uma certa mágoa, sabe? Dos amigos que sumiram no momento difícil.
Mas isso também foi se diluindo. Ele foi reconectando, voltando a conversar com as pessoas.
Às vezes as pessoas exigem do Lula uma coisa que ninguém está disposto a oferecer por si próprio, entendeu? Uma inumanidade, como se ele fosse... ele é um ser humano. Ele sofreu, passou agruras e enfrentou desafios que pouca gente teria condições de superar.
Pô, o cara é um gigante. Passou o que passou, disputou e ganhou a eleição, naquele aperto, fez a transição.
E a questão de ele não dialogar mais com tanta gente com a mesma frequência? Lula está mais fechado, mais caseiro, também por causa de sua nova fase pessoal, de recém-casado?
Sinceramente, eu acredito que não. E eu acredito piamente que a Janja faz bem para o Lula, quer o bem do Lula, quer participar, como qualquer pessoa no lugar dela gostaria [de participar]. Respeita o trabalho dos ministros. Os dois estão sempre juntos, bem. É um clima bom.
O governo Lula, afinal, é de centro ou de centro-direita, como disse o ex-ministro José Dirceu?
O PT é um partido de centro-esquerda, não tem dúvida. Mas fez em 2022 uma aliança com a direita para ganhar a eleição e governar. Então eu diria que ele está no ponto médio entre essas duas forças.
É uma coalizão para evitar o mal maior. Enquanto a extrema direita estiver com essa força e com esses instrumentos de ataque, essa aliança será uma proteção para o país. Isso ocorre também em Portugal, na Espanha, mundo afora.
O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio
A repolarização em torno de perspectivas mais saudáveis e democráticas exigirá, antes, o refluxo da extrema direita no Brasil e no mundo.
E eu lamento dizer que considero o [ex-presidente Jair] Bolsonaro uma boa tradução do que muita gente pensa no Brasil. Eu lamento porque me choca que isso [organização da extrema direita] tenha se dado em torno dessa figura que tem uma mentalidade muito arcaica, quase medieval.
O fenômeno é mundial, mas aqui tem essa idiossincrasia. Eu lamento. Porque até a extrema direita no mundo come de garfo e faca às vezes.
ESTADO X FÉ
Vocês lançaram um pacote de crédito voltado ao pequeno empreendedor, e Lula tem sido aconselhado a falar mais com o segmento evangélico para recuperar terreno nesse público. Como isso vai acontecer?
O Estado laico está perdendo terreno no mundo inteiro para o uso malicioso da religião no embate político.
A separação clássica e recomendável da teoria democrática, de não se usar a religião em proveito próprio, está se perdendo.
É um elemento que faz diferença.
Foi o Lula que sancionou a Lei da Liberdade Religiosa.
Ele recebe [líderes religiosos], eu recebo.
O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio.
Fé e relação com a espiritualidade são questões de foro pessoal. A partir do momento em que você põe isso num palanque, de forma oportunista, leva as pessoas a um tipo de paixão que não tem aderência à realidade.
Essa família que governou o país [Bolsonaro], pelo amor de Deus, né? Está muito longe de qualquer valor religioso. E, no entanto, usam a torto e a direito esse tipo de coisa.
Esperar que o Lula também faça isso? Ele não vai fazer.
O Lula é um produto da modernidade. Estamos falando de um combate a forças obscurantistas, e o Lula não vai entrar nessa.
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