6 de abril de 2024

Eleição de Putin mostra que povo russo cansou de ser "aluno" de terceiros, diz embaixador

Alexey Labetskiy afirma que Lula e Putin devem se encontrar ainda em 2024, mas não confirma visita do presidente russo ao Brasil

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O embaixador da Rússia no Brasil, Alexey Labetskiy, afirma que a reeleição de Vladimir Putin para o quinto mandato presidencial na Rússia, em março, foi uma demonstração clara de que o povo de seu país não vai "aceitar tentativas de imposição de algo alheio à nossa vontade".

O diplomata sustenta que as eleições foram justas, livres e que a população tinha, sim, alternativas a Putin para eleger.

As críticas de países europeus e dos EUA ao processo eleitoral seriam "nulas" para a Rússia. E estariam sendo feitas, diz ele, porque "desta vez" não havia candidatos de oposição ao governo "financiados por países estrangeiros".

O presidente russo, Vladimir Putin, conversa com pilotos da Força Aérea na cidade de Torzhok - Sergei Karpukhin - 27.mar.2024/Sputnik via Reuters

Labestskiy afirma ainda que "tentar explicar a história" pela visão de "Paris, Londres, Nova York ou Berlim" só gera incompreensões.

A Europa, considerada um grande centro cultural para o mundo Ocidental, é para a Rússia, historicamente, "o inimigo invasor".

Questionado sobre a desumanidade da guerra na Ucrânia, ele nega que Putin tenha cometido crimes e afirma que o conflito foi deflagrado para "defender os russos" que vivem no território e proteger a segurança do país.

Labetskiy afirma que Lula e Putin vão se encontrar ainda neste ano —mas não garantiu que o presidente da Rússia virá ao Brasil mesmo com a ameaça do Tribunal Penal Internacional de pedir a prisão dele no país.

REELEIÇÃO DE PUTIN

O presidente Vladimir Putin acaba se ser reeleito. Países como EUA, Alemanha e Reino Unido dizem que o pleito não foi justo, nem livre, já que a população do país não tem outras alternativas de escolha a não ser o próprio Putin.

A eleição de Putin com 86% dos votos é o resultado do desenvolvimento da situação interna do país e dos acontecimentos no âmbito da política global.

É a demonstração de que os povos da Rússia e o povo russo estão cansados de ser "alunos" ensinados por terceiros. Mostramos que estamos dispostos a observar os nossos objetivos e a nossa identidade para fazermos a escolha em função da realidade em que vivemos.

O senhor se referiu ao povo e aos povos da Rússia. 

A Rússia é um país multinacional. Russos, judeus, tártaros, povos do Cáucaso, cristãos ortodoxos, 20 milhões de muçulmanos nativos, budistas —mais de 150 povos e entidades nacionais habitam este grande território.

A civilização russa foi criada pela mistura destas religiões e culturas —o que incluí os povos que estavam confundidos, por exemplo, com os ucranianos.

Eu sempre disse, e sigo dizendo, que não vejo nenhuma diferença entre mim e um ucraniano.

Minha família paterna é de Petersburgo, a materna é da Bielorrússia. A diferença entre mim e um ucraniano é igual à que existe, no Brasil, entre um paulista e um baiano.

EUROPA

Voltando às críticas às eleições da Rússia...

Elas provêm de um único fato: antigamente, a maioria dos assim chamados opositores na Rússia eram financiados por países estrangeiros. Desta vez, não havia nenhum [candidato nestas condições].

Mas havia, sim, escolha. O programa político de Putin e o de [Nikolai] Kharitonov [um dos outros três candidatos que disputaram as eleições], do partido comunista, por exemplo, eram bem diferentes.

O programa de [Leonida] Slutsksy, que é do Partido Liberal, também difere. O fato de que eles [candidatos à Presidência] apoiam Putin não significa que apoiam o programa da Rússia Unida [partido governista].

Havia também o candidato [Vladislav] Davankov, que é uma nova força política.

As tentativas de explicar a história da Rússia pela visão de Paris, de Londres, de Nova York ou de Berlim sempre resultaram na incompreensão dos objetivos reais da Rússia.

E quais seriam eles? 

Dizem que a Europa é um grande centro [econômico e cultural], de não sei o quê. Mas a Europa, para nós, foi o inimigo invasor. Por duas vezes.

As Guerras Napoleônicas [no século 19, quando a França tentou invadir a Rússia] levaram à destruição da metade de Moscou. Foi uma invasão europeia.

Dizem que combatemos o fascismo, o nazismo [ao guerrear contra a Alemanha de Hitler] na Segunda Guerra Mundial, que para nós é a Grande Guerra Pátria. Sim, combatemos. Mas esse fascismo foi apoiado pelos romenos, búlgaros, húngaros, italianos e até tchecos [referindo-se a povos europeus].

Para os russos, [a Segunda Guerra] foi uma invasão europeia. Até mesmo os espanhóis, que formalmente não participaram da guerra, enviaram a Divisão Azul, com cem mil homens, para combater em Leningrado [ao lado das forças alemãs de Hitler, em 1941].

Sempre houve a tentativa de nos impor algo. Nós não negamos que a Europa é a Europa. Mas não podemos negar também que o Iluminismo europeu foi a fonte central do colonialismo por todo lado.

Quando Napoleão entrou em Moscou, a cidade foi queimada. Quando nós entramos em Paris [nos anos finais das Guerras Napoleônicas], em 1814, nós não queimamos Paris. A única coisa que deixamos na França foi a palavrinha "bistrô".

O Reino Unido criticou o fato de não haver monitoramento independente e neutro das eleições da Rússia.

Para nós, essas críticas são nulas. Quem vai monitorar? Um inglês? Que já várias vezes tentou invadir a Rússia?

GUERRA DA UCRÂNIA

A eleição se deu em meio à guerra contra a Ucrânia. Os argumentos de Putin, de que havia um cerco da Otan à Rússia, são antigos e conhecidos. Mas não existiria alternativa à guerra, que é extremamente desumana?

Esta é uma operação especial, não é uma guerra contra a Ucrânia e o povo ucraniano.

A sua razão central foi defender os russos que vivem naquele território [da Ucrânia] e que não reconheceram o golpe de 2014 em Kiev, financiado, promovido e aceito pelo Ocidente. Os acordos de Minsk [de 2014, que previam a reintegração à Ucrânia de regiões separatistas apoiadas pela Rússia em troca de status especial para a região de Donbass, entre outras coisas] não foram respeitados.

A própria [ex-chanceler da Alemanha] Ângela Merkel disse que os acordos foram uma tentativa de ganhar tempo e rearmar a Ucrânia.

A senhora está dizendo "a guerra". Vamos lembrar do Iraque: quantas vidas humanas foram perdidas nesta guerra provocada pela mentira aberta, depois reconhecida, e não perdoada [dos EUA sobre a existência de armas químicas e de destruição em massa no Iraque]? Uma mentira mentirosa. E o Afeganistão? Isso é guerra. E a Líbia? Isso é guerra.

OTAN

E por que não definir a situação da Ucrânia como de guerra, se há a entrada de uma força militar em outro território? 

Nos prometeram por décadas que a Otan [aliança militar de países ocidentais liderada pelos EUA] não se alargaria [na direção da Rússia]. Mentira, mentira, mentira. E a Otan é uma organização pacífica? Não. De maneira nenhuma. Ela é uma organização agressiva cujo único inimigo é a Rússia. Nós devemos garantir a segurança do nosso país.

O senhor fala em proteger vidas de cidadãos russos na Ucrânia, mas há um custo em vidas na guerra.

Quando, na fronteira do seu país, está sendo criado um estado nazista que proíbe a língua russa, a cultura russa, que persegue os russos, isso o que é?

O que nos impressiona é como, na Europa, eles estão prontos a aceitar adeptos do nazismo como seus aliados. Isso significa que a Europa aceita qualquer um que seja o inimigo da Rússia.

O que acontecerá a partir de agora? Porque a Rússia não perdeu, mas também não ganhou a guerra.

Estamos decididos a levar até o fim a desmilitarização e a desnazificação do território ucraniano. É o objetivo central.

Mostramos à Europa, à Otan e aos EUA que não vamos aceitar a política de pressão que visa acabar com a Rússia como um Estado soberano e independente.

Será, portanto, uma guerra longa?  

Se os donos do regime fantoche da Ucrânia compreenderem que não vale mais a pena incentivar a guerra contra a Rússia, isso vai acabar.

No início da operação especial houve conversas entre russos e ucranianos e até, dizem, foi rubricado o texto de um possível um acordo [para acabar com o conflito]. Que foi impedido pelos donos ocidentais do regime de Kiev —criado por Washington, apoiado pelo Londres e agora pela Alemanha.

Qual é a possibilidade real de a Rússia usar armas nucleares na guerra? 

Pergunta sobre pergunta: quem começou a falar da questão nuclear? Nós nunca falamos.

Em janeiro de 2022 foi feita uma declaração de que nenhum dos cinco membros do clube nuclear [Rússia, EUA, China, França e Reino Unido] utilizará arma nuclear. Isto continua valendo.

Isso está parecendo a história das armas químicas do Iraque [nunca confirmadas, mas usadas como pretexto pelos EUA para declarar guerra ao país].

SANÇÕES

A Rússia sofreu sanções econômicas drásticas, mas a economia até cresceu. O que puxou essa evolução? 

Os que aplicaram as sanções se esqueceram de que existe uma diferença fundamental entre a economia do meu país hoje com a da [extinta] União Soviética. Aquela era a economia de um Estado fechado.

Agora nós temos uma economia de mercado. E nela todos estão trabalhando para ganhar um dinheirinho. Quando o McDonald’s sai [da Rússia], aparece outro para substituir. Tudo o que foi feito pelo homem pode ser repetido e copiado.

E, sabe, existe aquele axioma do Karl Marx, que dizia que, quando se trata de um lucro de 300%, o capitalista vende a sua própria mãe.

E qual foi o papel da China neste período? 

Nós reorientamos a maioria do nosso comércio externo da Europa para os países asiáticos, como a China, a Índia e todos os outros.

PARCERIA COM OS BRICS

E o do Brics [grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] neste contexto de sanções

Nenhum país do Brics aplicou sanções contra a Rússia. O Brics reúne cinco países que têm não apenas peso econômico e político, mas também uma identidade civilizacional muito diferente da do Ocidente.

Os chineses têm 5.000 anos de história. A Índia é a mesma coisa. A Rússia, também, um bocadinho mais jovem. A África do Sul e o Brasil também têm identidades diferenciadas. Esta é a força maior e criativa do Brics.

O que é o Brasil, aos olhos de um embaixador russo? 

O Brasil tem uma identidade fortíssima, que não pode ser confundida com nenhuma outra. O brasileiro pode admirar Miami, Paris e Berlim, mas o Rio de Janeiro será sempre o Rio de Janeiro. O paulista segue sendo o paulista.

Mas há dificuldades, e a distância social é uma delas. Eu trabalhei no Rio. Eu gosto da cidade. Mas a pessoa que nasce em uma favela tem 0,01% de chance de ser inserida na vida da sociedade, vamos dizer, do Leblon, de Ipanema ou da Gávea.

O presidente Lula tem sido criticado por condenar fortemente a atuação de Israel na Faixa de Gaza ao mesmo tempo em que "passaria pano" para o seu país na guerra da Ucrânia. Lula é considerado um grande aliado na Rússia? 

A Rússia desenvolve relações com o Brasil. E, portanto, com seus governos legitimamente eleitos. Não pretendemos ensinar aos brasileiros como viver.

A primeira visita presidencial brasileira, ainda à União Soviética, foi a de José Sarney, em 1988. Assinamos acordos de parceria estratégica com o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Tivemos boas relações com os governos de Lula, Dilma [Rousseff], Michel Temer e Jair Bolsonaro. E temos ótimas relações com o governo atual. Cooperamos com o Brasil no Brics, bilateralmente, junto ao Conselho de Segurança apoiando a sua pretensão de integrá-lo. Compreendemos a política externa do Brasil e respeitamos a política soberana [que adota] em relação à globalização, aos conflitos, à crise ucraniana, à não aplicação de sanções contra a Rússia e o não fornecimento de material bélico para as partes em conflito.

PRISÃO NO BRASIL?

Lula e Putin devem se encontrar em breve? Há algum convite para o presidente brasileiro visitar a Rússia? 

Sim. Neste ano nós estamos dirigindo o Brics, e o Brasil está dirigindo o G20. Estamos esperando a chegada do presidente brasileiro para a cimeira do Brics, em outubro, na cidade de Kazan. Ele já confirmou [que vai], e efetivamente os dois vão se encontrar.

E o presidente Putin, vem ao Brasil? 

Nós recebemos o convite do presidente do Brasil para a cimeira do G20, em novembro, no Rio.

E a possibilidade de ele ser preso no Brasil por determinação do Tribunal Penal Internacional?

Nós pensamos que esse assunto será resolvido pela parte brasileira.

Ele foi condenado por deportação ilegal de crianças e transferência forçada da Ucrânia para a Rússia. O que o senhor diz sobre isso?  

É mais uma invenção impensável. Os filhos de quem [foram deportados]? As crianças de quem? É uma invenção 100% política.

Mas o presidente Putin, então, vem ao Brasil? 

Eu não posso garantir se ele vem ou não vem. Ele recebeu o convite e efetivamente somos membros do G20.

Mas não há o temor de ele chegar no Brasil e alguém determinar a prisão dele? 

Esse tipo de fala, se ele vem ou não [ao Brasil], se alguém vai mandar prendê-lo, se assemelha à da guerra nuclear [que Putin nega querer deflagrar]. Alguém quer criar probleminhas, e está criando.

E outra coisa: nós não reconhecemos o Tribunal [Penal Internacional], assim como os americanos não o reconhecem [os EUA não são signatários do TPI]. É [um tribunal] politizado. Para nós, é zero.

As informações primárias e reais sobre a Rússia de vez em quando desaparecem entre ondas de fake news. Nós estamos abertos a cooperar, a conversar. Mas nós nunca vamos aceitar as tentativas de imposição de algo alheio à nossa vontade.

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