30 de novembro de 2022

"Quero ser um rebelde"

Depois da temporada no inferno - com prisão e insultos nas ruas -, José Genoino volta à vida política mais socialista do que antes 

Luigi Mazza



Como ainda faltavam alguns minutos para as nove da manhã, horário em que o evento começaria, havia menos de cem pessoas num espaço que comporta 1,5 mil. Na entrada do auditório, Genoino parou diante de uma banca de livros montada pelo Partido Operário Revolucionário (POR), que disputa a política do sindicato. Folheou O Socialismo e a Guerra, escrito por Vladimir Lênin há 107 anos, mas não levou. Papeou com o jovem militante que cuidava da banca e aceitou um jornalzinho gratuito do partido.

Um admirador interpelou Genoino para pedir uma selfie. Em seguida vieram duas moças. Depois outros e outros. Até a hora em que o congresso começou, vinte pessoas haviam tirado fotos com o ex-deputado. Ele, que de início parecia desconfortável, foi se soltando aos poucos. Cumprimentava amigavelmente todos que passavam por ele. Depois, se aproximou de Virgínia Fontes e Valerio Arcary, historiadores que também haviam sido convidados para o debate, e os três engataram uma conversa animada à beira do palco.

Quando já havia em torno de quinhentos sindicalistas acomodados no auditório, iniciou-se o congresso. Virgínia Fontes, a primeira a discursar, falou sobre a guerra na Ucrânia e como o Brasil se situa na crise global do capitalismo. Genoino foi convidado a falar em seguida. Subiu até o púlpito levando na mão um caderno azul cheio de garranchos. Tirou a máscara, deixando o cavanhaque à mostra. Começou a discursar. Quem ali esperava ouvir um moderado ex-parlamentar do PT, alquebrado pela experiência dolorosa da prisão e abatido pelo isolamento da vida pública, teve uma surpresa: Genoino falou como um bolchevique.

“Há uma crise estrutural sistêmica do capitalismo monopolista, dependente, financeirizado na sua organização neoliberal”, decretou Genoino, já na largada. Falava pausadamente e marcava cada palavra com um gesto do braço direito. Entre uma frase e outra, espiava o caderno. Afirmou que 2022 estava destinado a ser “um dos anos mais longos da história política da luta de classes no Brasil” e disse que nem a vitória eleitoral contra “o inominável” – como se refere ao presidente Jair Bolsonaro – estancaria a crise.

Deteve-se, então, numa espécie de mea-culpa. “Digo claramente a vocês: essa foi uma das grandes lições que aprendi na minha vida. Eu achava que o programa de transformação do Brasil passaria pela institucionalidade. Mas, mesmo me especializando nisso, chegou o momento em que ela se mostrou limitada. As ruas, os direitos, o conflito, a contradição, as [nossas] exigências não cabem numa burguesia que tem por natureza o autoritarismo, o escravismo, o patriarcalismo e a violência.”

Então, como diz o título da obra seminal do revolucionário Lênin, o que fazer? “Se depender de nós é preparar as rupturas”, respondeu Genoino. “Preparar aquilo que, para nós, é a razão de ser das nossas vidas: a luta contra o capitalismo, a luta pelo socialismo.” Arrematou em tons dramáticos: “A crise é profunda e não adianta esparadrapo e band-aid. A sangria é muito grande. Vamos resgatar a esperança, a paixão, o ânimo, o direito de sonhar!”

A plateia aplaudiu e logo se formou um coro: “Olê, olê, olê, olá, Lula! Lula!”, que em seguida se transformou em “Fora, Bolsonaro!”. Genoino sorriu satisfeito, recolheu o caderno, sentouse ao lado dos colegas e recolocou a máscara no rosto.


A nova fase de José Genoino, hoje com 76 anos, surpreendeu velhos amigos. “O Genoino de hoje é mais marxista do que o dos anos 1980”, diz Valerio Arcary. O historiador, dez anos mais novo, conheceu Genoino nos estertores da ditadura militar, quando o petista dava aulas no cursinho prévestibular do Colégio Equipe, em São Paulo, depois de ter passado pela Guerrilha do Araguaia (1966-74), pela prisão, pela tortura e pela anistia. 

O Colégio Equipe, na época, funcionava como ponto de encontro da esquerda paulista, e Arcary, um militante do movimento universitário, estava sempre por lá. Embora o historiador tenha se desfiliado do PT anos mais tarde (hoje está no Psol), os dois mantiveram contato. Ao assumir o microfone depois de Genoino, no evento em Brasília, Arcary saudou o amigo. “É emocionante nós estarmos aqui hoje, juntos, vendo o Genoino voltar àquela paixão do final dos anos 1970, quando eu o conheci, fazendo um chamado à luta revolucionária contra o capitalismo. Obrigado pelas palavras.” 

Fazia quase uma década que Genoino não aparecia publicamente em Brasília. A última vez fora em 17 de julho de 2013, quando estava em seu sétimo mandato de deputado federal. Era véspera do recesso parlamentar e o dia correu como qualquer outro: Genoino votou projetos e falou no plenário. Depois, entrou de férias e nunca mais pisou na Câmara. Durante aquele recesso, enquanto passeava com os netos em Ubatuba, no litoral de São Paulo, sofreu uma crise de dissecção da aorta, artéria que irriga todo o corpo. Teve de passar por uma cirurgia de emergência que durou oito horas e na qual, segundo os médicos disseram à família, ele tinha 10% de chances de sobreviver. Foi só o começo de uma temporada no inferno. 

No mês seguinte, enquanto Genoino convalescia, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou sua condenação no caso do mensalão: seis anos e onze meses de prisão, mais pagamento de 468 mil reais de multa. No dia 15 de novembro, feriado da Proclamação da República, foi expedida a ordem de prisão de Genoino e outros onze condenados. 

Àquela altura, o sobrado onde o petista mora desde 1984 no bairro do Butantã, em São Paulo, já era acompanhado dia e noite por repórteres e cinegrafistas. Como não havia portão protegendo a casa, a família passou a viver com as janelas e cortinas fechadas – para não ser vista, nem ouvida. “A gente não conseguia sair para comprar uma Coca-Cola para o meu pai. Ele adora Coca”, conta Miruna, de 41 anos, filha mais velha de Genoino. Os dois filhos de Miruna, que na época tinham 6 e 5 anos, não processaram bem a situação. O caçula, o mais afetado, precisou de acompanhamento psicológico. “A principal coisa que ele precisava elaborar era sobre meu pai. Entender por que aquilo tinha acontecido, por que o juiz podia definir o que era certo ou errado.” 

Na noite da prisão, Genoino estava em casa com a mulher e os filhos. Para não ser algemado, decidiu se entregar na Polícia Federal em São Paulo. Fez uma muda de roupas e partiu no carro do advogado. Dormiu na PF e, no dia seguinte, foi transferido para o Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Logo ao chegar no presídio, na capital federal, Genoino passou mal e teve de ser internado no Hospital das Forças Armadas. A família se desesperou. “Ele vai matar o meu pai!”, gritava Miruna no hospital, referindo-se ao então ministro Joaquim Barbosa, relator do mensalão no STF. Depois de quatro dias hospitalizado, o petista foi transferido provisoriamente para a prisão domiciliar, mas teve que ficar em Brasília, onde se deu a condenação. Sua filha caçula, Mariana, mora na capital federal, mas vivia num quarto e sala apertado com o marido e a filha. Não podia receber o pai. Genoino então passou pouco mais de um mês vivendo na casa do sogro de Mariana. (A caçula nasceu de um caso extraconjugal de Genoino, mas sua mulher, Rioco Kayano, e seus dois filhos mais velhos têm uma relação harmoniosa com ela.) 

Depois, conseguiu arrumar uma casa próxima à Papuda. “Tivemos que alugar uma casa para ele ser preso. Nunca vi uma situação dessas”, relembra Kayano, de 73 anos. A família montou uma operação para impedir que o endereço fosse descoberto pela imprensa. De uma casa para a outra, Genoino foi transportado escondido na caçamba do carro de seu genro, Pedro, deitado e coberto por uma lona para não ser visto. 

Meses depois, no entanto, uma junta médica escalada pelo STF concluiu que a cardiopatia de Genoino não era grave. No feriado de 1º de maio de 2014, dois dias antes de seu aniversário de 68 anos, o petista retornou à Papuda. Viveu em regime fechado até agosto, quando concluiu um sexto da pena e pôde então voltar à prisão domiciliar, ainda em Brasília. No final do ano, foi beneficiado pelo indulto natalino assinado pela então presidente Dilma Rousseff. Em março seguinte, o STF extinguiu sua pena. Genoino voltou a ser um homem livre depois de um ano e quatro meses preso. Estava prostrado, desapareceu do noticiário e trancou-se em casa.


Genoino assumiu a presidência do PT em 2002, depois de ter perdido a disputa pelo governo de São Paulo para Geraldo Alckmin. Nunca foi uma figura da burocracia petista. Gostava mesmo era da vida no Congresso, onde cumprira cinco mandatos consecutivos de deputado federal. Mas, como soldado do partido, abdicou de concorrer à reeleição para deputado e disputou o governo paulista com o objetivo de dar um palanque forte para Lula – então candidato à Presidência – no principal colégio eleitoral do país.

Com a vitória do novo presidente, Genoino tinha a expectativa de ser nomeado ministro da Defesa, já que era estudado em assuntos militares e tinha boa relação com as Forças Armadas. Foi preterido pelo diplomata José Viegas Filho. Depois, foi cotado para a Secretaria-Geral da Presidência, responsável pelas relações com o Congresso. Quando seu nome saiu na imprensa, no entanto, houve gritaria entre os petistas porque só haveria paulistas à frente de ministérios importantes. Genoino, embora cearense, fizera sua carreira política em São Paulo. Era um “paulistério”, dizia-se. Quem acabou assumindo o cargo foi o mineiro Luiz Dulci. Sobrou para Genoino o comando interino do PT, vago desde que José Dirceu assumira a Casa Civil. 

Até então, Genoino era o mais proeminente deputado petista e tinha uma trajetória respeitada na esquerda. Nascido numa família pobre do sertão do Ceará, virou líder estudantil e integrou a Guerrilha do Araguaia promovida pelo seu partido na época, o PCdoB. Foi preso e torturado. Fez a autocrítica da experiência da guerrilha e rompeu com o PCdoB. Em 1982, anistiado, elegeu-se deputado pela primeira vez. Dentro do PT, liderava uma tendência marxistaleninista que agia como um partido autônomo: o PRC, Partido Revolucionário Comunista. 

Genoino encantou-se com o Congresso logo na largada e elegeu-se deputado constituinte no pleito seguinte, em 1986. Revelou-se um negociador hábil e até hoje se orgulha da relação que construiu com Ulysses Guimarães, o respeitado líder da Constituinte. Guarda bilhetes que o emedebista lhe deixou. Dali em diante, dedicou sua vida a se tornar um parlamentar profissional. Conhecia o regimento da Câmara melhor do que os burocratas mais especializados. Com isso, tornou-se fonte indispensável para a imprensa. “O projeto tal precisa de maioria simples ou de dois terços dos votos para ser aprovado?”, indagavam os jornalistas. Era sempre Genoino quem sabia as respostas. 

Como não tinha uma base eleitoral cativa – não era vinculado diretamente a um sindicato ou movimento social –, Genoino fazia o que podia para aparecer na imprensa. Considerava-se um deputado formador de opinião e assinava uma coluna quinzenal no jornal O Estado de S. Paulo. “Às vezes, ele adiava viagens da família para atender jornalistas”, lembra Miruna. Quando criança, nas visitas ao pai em Brasília, Miruna era sempre levada por Genoino até o comitê de imprensa da Câmara para ser apresentada aos repórteres. 

Em 1989, diante da queda do Muro de Berlim e da posterior dissolução da União Soviética, Genoino “quebrou”, como se diz no jargão da esquerda. “Ele fazia parte de uma corrente campista que ainda refletia a tradição stalinista de ver o mundo dividido entre o campo socialista e o campo capitalista. A luta, para eles, era entre esses campos, mais do que entre classes”, diz o historiador Arcary. “Para quem pensava assim, o fim da União Soviética foi um pesadelo.” O ex-governador Tarso Genro, que também fazia parte do PRC, prefere dizer que ele e Genoino viveram um momento de “solidão histórica” 

O PRC se dissolveu com o fim do Muro e da União Soviética. Dali em diante, Genoino pouco a pouco se integrou à ala moderada do PT. Com o então petista Eduardo Jorge, fundou a corrente Democracia Radical, apelidada pelos adversários de “direita do PT”. Trocou a defesa da ditadura do proletariado pela defesa da social-democracia e aproximou-se de quadros do PSDB. Em 2001, advogou que a palavra “socialismo” não fosse usada nas teses do Segundo Congresso Nacional do PT. Passou a defender que se discutissem temas como a descriminalização do aborto e da maconha e, numa época em que poucos deputados faziam isso, prestigiava a Parada do Orgulho Gay em São Paulo, antes que a sigla LGBT fosse popularizada. Foi o deputado federal mais votado do Brasil na eleição de 1998, com 307 mil votos. 

Vivia, em suas próprias palavras, “em estado de poesia”. Parecia sentir-se confortável no convívio com os moderados dentro e fora do PT. Frequentava os jantares dos tucanos em Brasília, era tido como o menos petista dos petistas, tal a facilidade com que transitava entre os centristas, e a esquerda o acusava de “reformista”, palavra ofensiva para os revolucionários. Aos poucos, se acostumou também à vida de presidente do PT. Aproximou-se de Lula a ponto de as duas famílias se tornarem amigas. Acompanhava de perto todas as decisões do governo e, em 2005, pretendia concorrer a mais um mandato de presidente do partido. Só que, antes disso, o céu desabou sobre sua cabeça.


Em junho de 2005, em entrevista à Folha de S.Paulo, o então deputado federal Roberto Jefferson denunciou que o governo vinha comprando votos no Congresso em troca de uma mesada – o mensalão, como ficou conhecido. Hoje em dia, com um orçamento secreto distribuindo bilhões de reais anonimamente em troca de votos, o mensalão parece coisa de batedor de carteira, mas, naquela época, foi tratado como um grande escândalo. Abriu-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e o governo entrou em convulsão. José Dirceu, apontado como arquiteto do esquema, renunciou à Casa Civil. Delúbio Soares, acusado de distribuir a propina, licenciou-se do cargo de tesoureiro do PT. 

Dias depois, chegou a vez de Genoino. Uma reportagem da revista Veja mostrou que o publicitário Marcos Valério de Souza, na época suspeito de ser o operador do mensalão, havia assinado como avalista de um empréstimo bancário de 2,4 milhões de reais em nome do PT. Até então, Marcos Valério dizia que não tinha nenhuma relação com o partido, apenas uma relação pessoal com o tesoureiro Delúbio Soares. O documento do empréstimo, publicado pela revista, trazia também a assinatura de Genoino, na condição de presidente do partido. A relação entre o PT e o operador da propina estava comprovada. Mais tarde, apareceu um novo empréstimo, também assinado pelo publicitário e por Genoino. Sua assinatura, aposta nos dois empréstimos, fez com que a maioria dos ministros do STF concluísse que Genoino sabia do esquema do mensalão. 

Para piorar, na mesma semana em que veio a público o primeiro empréstimo, um assessor do deputado federal José Guimarães (PT-CE) – irmão mais novo de Genoino – foi preso pela Polícia Federal carregando 100 mil dólares na cueca. O episódio rendeu manchetes e piadas durante dias e, embora não tivesse relação com Genoino, ajudou a entornar o caldo. No dia seguinte à publicação dessa notícia, ele renunciou à presidência do PT. 

Miruna estava na Espanha no auge da crise. Foi pedida em casamento no dia em que Genoino deixou o comando do partido. De volta ao Brasil pouco depois, levou um susto com o que viu. “Encontrei meu pai de pijama em casa. Nunca tinha visto ele assim. Estava absolutamente deprimido.” Na época, Genoino ajudou a filha a obter o visto, já que ela voltaria à Espanha dali a alguns meses para o casamento. Quando os dois estavam na fila do consulado, um homem se aproximou dele e perguntou: “Você veio aqui fazer o quê? Veio roubar?” 

Aconteceram coisas piores. Em setembro, dois meses depois de deixar a presidência do PT, Genoino foi convocado para depor na CPI do Mensalão. No dia do seu depoimento, o então deputado federal Jair Bolsonaro levou para a sessão o coronel Lício Maciel, que torturou o petista depois de sua captura no Araguaia. A intenção de Bolsonaro era constranger Genoino diante do seu torturador. Mas eram outros tempos: os parlamentares, do governo e da oposição, ficaram indignados com o gesto repulsivo de Bolsonaro e forçaram a retirada do torturador da sala. 


Em São Paulo, os repórteres passaram a bater ponto na casa do petista. Um episódio em especial marcou a família, quando o programa Pânico na TV foi até o bairro do Butantã gravar uma reportagem em que fazia chacota de Genoino. Pouco depois de a equipe de tevê estacionar em frente ao sobrado, uma pequena multidão já se aglomerava no local. Miruna, que soube do ajuntamento enquanto estava numa festa de aniversário, pegou o carro e foi até lá para ficar com o pai. “Na hora que desci do carro, ouvi de tudo, desde ‘ô gostosa, deixa eu te comer’ até ‘seu pai é um ladrão’. Quando entrei em casa, eu caí no chão, quase desmaiei. Nessa hora meu pai teve um rompante e quis sair na rua para acabar com aquilo, mas meu irmão não deixou. Teria sido muito pior.” Magoou a família o fato de que um vizinho da frente, de quem sempre foram amigos, cedeu espaço de sua casa para que o Pânico instalasse um equipamento de luz. 

Em vez de três, Genoino passou a fumar quatro maços de cigarro por dia (só largou o vício anos mais tarde, quando sofreu o aneurisma na aorta). No auge da crise, tomava remédios para dormir. Uma vez por semana – às vezes mais –, ia até a casa de uma psicóloga amiga da família que também morava no Butantã. Num depoimento que deu em 2006 à jornalista Denise Paraná – e que resultou no livro Entre o Sonho e o Poder –, o petista registrou seu estado de espírito naquele momento: “Ainda conviverei com esse turbilhão por certo tempo. Espero que possa resistir sem ser tragado e devorado por ele. Em alguns momentos desse processo, cheguei a ter pensamentos extremos. Agora estou na fase de me defender, de resgatar a minha história de militância política.” 

Assim como o governo Lula, Genoino sobreviveu ao baque. Em 2006, reelegeu-se deputado federal, ainda que tenha obtido apenas um terço dos votos de sua última eleição vitoriosa. Tornouse uma figura reservada. Desapareceu o parlamentar expansivo e falante. Tinha pouco contato com os jornalistas. Em 2010, candidatou-se novamente e amargou uma suplência. Quando abriu uma vaga, em janeiro de 2013, voltou à Câmara. Pela primeira vez na vida, contratou uma assessora de imprensa. Já havia sido condenado pelo mensalão, mas ainda cabia recurso. Durante seis meses, exerceu o mandato. Foi seu último. Em dezembro, já preso em Brasília, renunciou ao cargo para evitar a cassação iminente. Na carta de renúncia, defendeu sua inocência e escreveu: “Entre a humilhação e a ilegalidade, prefiro o risco da luta.” 

Nos meses de 2013 que antecederam a prisão, entre o recesso e a convalescência do aneurisma, Genoino ficou enfurnado no quarto de empregada que transformou em escritório, nos fundos da casa. “O momento mais angustiante para mim foi um dia em que olhei pela janela de um dos quartos, para fora da casa, e vi o Genoino paradão no escritório. Ele estava quase catatônico, olhando para o nada”, conta Rioco Kayano, sua mulher. Os dois se conheceram na prisão, durante a ditadura, e estão juntos até hoje, mais de quarenta anos depois. “Fui até ele e falei assim: ‘Gê, você já percebeu que as plantas do quintal estão meio murchas? Você não quer ir lá regar?’ Ele adora cuidar das plantas, e eu tive uma visão, na hora, de que elas estavam tristes iguais a ele. No momento em que falei isso, foi como se ele tivesse acordado. Levantou, pegou o regador e começou a molhar as plantinhas. Ele foi melhorando junto com elas.”

Quando o STF extinguiu sua pena, em 2015, Genoino deixou a prisão domiciliar em Brasília e pôde voltar para São Paulo. Seu filho, Ronan, e seu genro Juan Miguel, marido de Miruna, foram buscá-lo de carro na capital federal. A família temia que ele pudesse ser hostilizado caso embarcasse num avião. Ao chegar no Butantã, o ex-deputado viu pela primeira vez o portão azul de ferro que sua família, traumatizada com o assédio da imprensa, havia instalado na entrada da casa. Assim como o sobrado, Genoino se fechou para o mundo. Convivia com algum grau de depressão, assunto sobre o qual evita falar até hoje. Pouco saía à rua. Falava com os amigos principalmente por telefone e passava seus dias em casa, entre o quarto de dormir e o pequeno escritório nos fundos do quintal. Nunca mais deu entrevistas. Sentiase traído sobretudo pela imprensa. 

“Quando eu saí da prisão na ditadura, em 1977, eu ficava assustado quando via um carro de polícia. Quando saí da prisão em 2015, ficava assustado quando via um carro de televisão”, disse Genoino em conversa com a piauí em sua casa, no final de abril. Ele frequentemente traça comparações entre as duas vezes em que foi preso. “Vivi duas guerras. A guerra da tortura começou no corpo e chegou na alma. A guerra do mensalão começou na alma e chegou no corpo.” Atribui ao estresse o aneurisma que sofreu em 2013. “Na ditadura, matavam a pessoa na tortura ou no desaparecimento. Na Justiça de exceção, matam pela reputação.” Ele guarda, numa mesma pasta, os alvarás de soltura de 1977 e 2015. 

Genoino é econômico ao falar dos traumas pessoais. “Talvez ele só se abra mesmo com a Rioco. E pus um talvez aí”, diz o jornalista Roberto Benevides, o Bené, seu amigo de infância do interior do Ceará que, como ele, se mudou para São Paulo ainda jovem. Genoino diz que viveu uma “situação-limite”, mas que nunca sucumbiu à depressão. Conta que, nos piores momentos da crise, teve pesadelos sobre a vida no Parlamento. Cenas desconexas, angustiantes. Ao ser indagado se os “pensamentos extremos” que relatou em 2006 eram suicidas, responde: “Não, não. O que eu pensava era sumir do mundo, me mudar pro interior do Ceará, do Brasil, me tornar um anônimo.” 

Miruna diz que os tempos de prisão domiciliar foram os mais duros para o pai. Foi o único momento em que o viu chorando. Genoino vivia aflito com a multa de 468 mil reais que tinha de pagar e não sabia como. Tinha medo de que tomassem a casa da família em São Paulo ou o apartamento de Ronan, seu filho, que ele ajudara a comprar. Miruna abriu uma vaquinha online para arrecadar recursos, e assim conseguiram pagar a fatura. Genoino foi contra a ideia. Temia que pudessem acusá-lo de alguma falcatrua. 

Vivia à beira da paranoia. No aniversário de 7 anos de sua neta Paula, Genoino não quis que a família pusesse balões e cama elástica na casa onde cumpria prisão domiciliar. “E se a imprensa vir isso? Meu Deus, se virem isso...”, dizia, preocupado que o acusassem de levar uma vida de farras. Estava sempre em estado de alerta, esperando que a qualquer momento aparecesse um jornalista ou um oficial de Justiça para “dar uma incerta” – isto é, conferir se ele estava cumprindo a prisão domiciliar. A aflição era tanta que ele conta ter ficado aliviado quando retornou à Papuda, em maio de 2014. “Não tem nada pior do que se sentir perseguido. Na prisão eu ficava mais tranquilo.” 

Parte dessa paranoia persiste até hoje. Genoino não usa cartão de crédito com receio de que seja clonado. Não se sente seguro para fazer compras online. “Quando ele recebe algum spam, fica desnorteado. Na hora já quer ligar para saber o que é, morre de medo”, conta Miruna. Nessas horas, Ronan, que cuida das finanças do pai, trata de acalmá-lo.


Ao receber a piauí em sua casa, uma das primeiras coisas que Genoino fez foi exibir uma pilha de papéis que havia colocado na mesinha de centro. “Aqui estão as minhas declarações de imposto de renda”, anunciou. “Não tenho fortuna, não tenho bens, não me formei e moro aqui desde 1984. Tenho um carro de 2009.” Depois do aneurisma em 2013, ele pediu aposentadoria por invalidez à Câmara dos Deputados, mas seu pedido foi negado após uma junta médica ter avaliado que sua saúde não o impedia de trabalhar. Por isso, em vez de receber a aposentadoria integral de deputado, hoje de 33,7 mil reais, Genoino aposentou-se por tempo de serviço. Recebe 25,2 mil reais brutos. 

Em seguida, Genoino pegou outra pilha sobre a mesa. “Aqui, os dois empréstimos bancários que assinei, do BMG e do Banco Rural, e que foram as únicas denúncias que me envolveram no mensalão.” Desde o início, o petista disse que assinou os empréstimos “em confiança de Delúbio”, o então tesoureiro do PT, e que nada sabia do esquema. Na época, a ideia do “eu não sabia” já nascia desmoralizada, mas, no caso de Genoino, não eram poucos os que, de fato, acreditavam que o petista assinara os documentos sem conhecimento do que se tratava. “Eu cuidava da parte política, das alianças, viajava pelos estados. Nunca tratei das finanças.” Delúbio Soares confirmou à Justiça que Genoino efetivamente não sabia de nada. “Fui condenado pelo que eu era, não pelo que eu fiz. Precisavam incluir o presidente do PT no processo pra dizer que era formação de quadrilha”, argumenta o ex-deputado. 

No STF, os réus do mensalão – Genoino entre eles – alegaram que o dinheiro operado por Marcos Valério era um mero caixa dois. Era um crime, mas já prescrito àquela altura. A tese, porém, não foi aceita pela maioria dos ministros. Para eles, assim como para a Procuradoria-Geral da República, tratava-se de uma organização criminosa que praticou atos de corrupção e lavagem de dinheiro. Genoino foi condenado pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha (deste último, foi inocentado pouco depois pelo STF). Na Justiça Federal de Minas Gerais, onde correu o processo do caso do empréstimo ao BMG, ele foi condenado por falsidade ideológica. Hoje, todos os processos contra o ex-deputado foram encerrados. 

Genoino sempre afirmou ser um preso político e comportou-se como tal. Ao sair de casa rumo à Polícia Federal, em 2013, manteve o punho em riste. Na Papuda, onde dividiu cela com Dirceu, Delúbio e Valdemar Costa Neto, combinou com os colegas de não colocarem as mãos para trás ao passarem pelo carcereiro ou por pessoas de fora. Um hábito dos tempos da ditadura. “Você tem que estabelecer um limite”, ele diz. “Porque quando você se humilha, você morre.” 

Assim como faz com Bolsonaro, Genoino se recusa a falar o nome de Joaquim Barbosa, o ex-ministro do STF. “Já tive a oportunidade de cruzar por aí com pessoas que me condenaram. Dei meiavolta pra não ter que cumprimentar”, diz ele. “Tu acha que vou cumprimentar quem fez isso comigo?” Não mudou de posição mesmo depois de Joaquim Barbosa ter anunciado que seu voto na eleição presidencial era para Lula.


No escritório nos fundos da casa, Genoino montou um museu da própria vida. As paredes são tomadas por molduras – algumas com fotos do ex-deputado discursando na Câmara ou fazendo campanha de rua, outras mostram caricaturas e charges acumuladas durante décadas de vida parlamentar. Nas prateleiras de livros, há fotos de família e pequenas esculturas. Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida convive com um busto de Karl Marx. Em frente à janela, uma escrivaninha branca com uma luminária e um laptop. Numa gaveta, estão todas as cartas de solidariedade que recebeu nos últimos anos. 

Ali, encastelado, Genoino assistiu à derrocada do governo Dilma. Não participou dos atos em defesa da presidente. Discutia política apenas com um restrito grupo de amigos, quando o visitavam ou era convidado para a casa deles. De pouco em pouco, foi empreendendo aventuras maiores. “Ele participava de reuniões no diretório estadual do PT, mas pedia para não gravarem. Depois foi saindo da ‘semiclandestinidade’”, brincou o deputado federal Rui Falcão (PT-SP), numa conversa em seu gabinete, em julho. 

Os dois se aproximaram desde que Genoino retornou a São Paulo. Falcão considera que o colega foi “o mais injustiçado de todos” no escândalo do mensalão. “Ele não é organizador. É um propagandista e agitador incomparável. Mas presidente de partido tem que cuidar de burocracia, e ele não deu muita atenção a isso”, diz. É difícil achar quem hoje, no PT, não pense da mesma forma. “Ele foi escolhido como bode expiatório da esquerda”, opina Tarso Genro. “Aquela fantasia que a Globo criou em torno dele, como se ele fosse um repassador de cheques da corrupção, foi uma infâmia.” 

Antes de começar a campanha eleitoral, quando tinha uma rotina mais folgada, Falcão conversava com Genoino quase toda semana, e os dois trocavam dicas de leitura. Sempre se falam por telefone ou e-mail, já que Genoino não tem WhatsApp. “Sou ruim com isso. E olha que na Papuda fiz curso de informática como remissão de pena.” Falcão recomendou, e Genoino leu, O Alfaiate de Ulm, em que Lucio Magri analisa as razões que levaram à dissolução do Partido Comunista Italiano, do qual foi dirigente. 

Desde a prisão, Genoino se voltou para os livros. Tornou-se um estudante aplicado. Releu obras de Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Nicos Poulantzas, Palmiro Togliatti e Antonio Gramsci. “Gramsci foi o mais importante para mim, porque ele inovou o pensamento da esquerda”, diz. Conheceu autores que nunca tinha lido, como Chantal Mouffe, Ernesto Laclau, Alysson Mascaro e David Harvey. À luz dessas leituras, passou a fazer uma análise crítica de sua trajetória. No fim das contas, acredita ter finalmente encontrado o equilíbrio no marxismo: “Compreendi que o caminho não é nem o dogmatismo, nem a diluição.” Em outras palavras: não é nem a guerrilha maoista, à qual aderiu sob a ditadura, nem a defesa ingênua da social-democracia, papel que assumiu como parlamentar por duas décadas. Sua bandeira é radicalizar a luta, com ampla mobilização de massas pelo triunfo do socialismo. 

A desilusão com a política institucional vinha fermentando na cabeça de Genoino desde 2005, em função do mensalão. Num primeiro momento, voltou suas energias contra o Judiciário. Firmou posição contrária à indicação do primeiro colocado na lista tríplice para a Procuradoria-Geral da República, coisa que o PT fez em todos os seus governos. “É uma mistura de ingenuidade e republicanismo achar que as instituições são neutras”, dizia. Mantém a mesma posição até hoje. Foi um dos únicos deputados a se posicionar contra a Lei da Ficha Limpa, que considerava ser “o suicídio da política e da democracia”. Foi voto vencido até no PT. O projeto foi sancionado por Lula em 2010. Na contramão da opinião pública, em pleno ano eleitoral de 2010, Genoino sofreu nova bateria de ataques por ter votado contra a Ficha Limpa. Atribui a isso o fato de não ter sido reeleito. 

O julgamento do mensalão e a prisão aceleraram a guinada à esquerda. “A primeira atitude do revolucionário é com preender. Como é que eu visitava a casa dos Marinho, do Bracher, e de uma hora pra outra virei o inimigo?”, diz ele, referindo-se à família dona da Globo e ao banqueiro Fernão Bracher, falecido em 2019. “Isso é expressão da luta de classes, pô!” Pouco tempo depois, Dilma talvez tenha se feito a mesma pergunta. “O jeito que o PSDB tratava a Dilma naquela época... eu era amigo do [José] Serra, pô. Era amigo do Aloysio Nunes. O que é isso? Fui tentar entender”, explica Genoino. 

A crise que culminou na derrubada do PT e, mais tarde, na prisão de Lula, era o empurrão que faltava para a radicalização de Genoino. “Ele teve uma inflexão grande”, atesta Falcão, que sempre militou à esquerda do PT e presidiu o partido de 2011 a 2017. O deputado atribui essa guinada, em parte, ao Sexto Congresso Nacional do PT, realizado em 2017 – o primeiro pós-impeachment. Na época, o partido fez um balanço crítico da experiência dos governos Lula e Dilma e recolocou o socialismo no horizonte político. 

Genoino explica da seguinte forma a sua nova posição política: “Por incrível que pareça, tirei uma lição em comum da experiência da guerrilha e do Parlamento: ou a gente organiza e mobiliza uma resistência popular, com enfrentamento, pressionando a burguesia, ou não vamos mudar esse país – nem através da ação armada, nem através da mera institucionalidade. Se o povo não entra na história, se você não aposta no enfrentamento, por mais maleável que você seja, na hora H os caras te cortam – como fizeram conosco. Eu acreditava que, por meio do diálogo, a classe dominante ia ceder, e o PT conseguiria fazer seu projeto de transformação. Foi uma visão equivocada.” 

Isso não significa que ele tenha perdido a fé no PT ou em Lula. “Não passa pela minha cabeça imaginar um processo de transformação do Brasil que não seja através do PT”, diz, categórico. Mas defende que o partido radicalize. Nas conversas recentes que teve com Lula, antes da eleição presidencial, Genoino diz ter dito ao ex-presidente o seguinte: “Lula, o Nelson Mandela entrou na cadeia como radical e saiu como grande negociador. No seu caso, tem que ser o contrário: você entrou na cadeia como grande negociador, tem que sair como radical.” Lula, sendo Lula, achou graça e desconversou.


A partir de 2016, Genoino começou a gravar conversas suas com Roberto Benevides, o Bené, e Sérgio Carvalho, seu assessor parlamentar por mais de vinte anos. Os dois conduziam durante horas uma espécie de entrevista informal, em que o petista refletia sobre suas escolhas políticas e os erros e acertos do PT. Foram vários encontros. Como Genoino não é dado à escrita, essa foi a forma que encontrou de registrar seus pensamentos. “Meu processo de elaboração é dialógico”, diz. As conversas estão sendo transformadas em livro por Bené, que assumiu o papel de ghost-writer do amigo. 

O título já foi definido: Do Encantado Eu Vim. Encantado é o nome do povoado onde Genoino nasceu, na zona rural de Quixeramobim, no semiárido do Ceará. O formato do livro foi inspirado nas obras do historiador britânico Tony Judt, em especial os livros Pensando o Século XX e O Século XX Esquecido, que Genoino leu durante a prisão domiciliar em Brasília. “Gostei porque ele narra a vida dele, mas não é exatamente uma autobiografia. Ele faz uma análise política e histórica”, diz. O novo livro não tem previsão de publicação. Certo é que ficará para o ano que vem, quando a situação política deverá estar mais nítida e ele então terá condições de amarrar melhor suas ideias. Bené é acionado toda hora para atualizar o texto. “O Genoino é um animal em ebulição”, comentou. 

Genoino formou um círculo de contatos com quem discute política. Além de Falcão e dos dois amigos, fazem parte dele os historiadores Valerio Arcary e Valter Pomar, líder da Articulação de Esquerda, tendência marxista do PT, os jornalistas Breno Altman e Celso Marcondes, a militante do Psol Andrea Caldas e o engenheiro Joaquim Soriano, líder da corrente Democracia Socialista, do PT. Genoino costuma falar com cada um deles ao menos uma vez por semana. “O homem é forte no telefone”, diz Arcary. 

A convite de Gustavo Codas, militante da Democracia Socialista que morreu de infarto em 2019, Genoino passou a frequentar uma roda de conversas sobre Estado e Forças Armadas na Fundação Perseu Abramo. “A gente chegava cedo e às vezes ficava duas, três horas conversando direto”, conta Soriano. Vizinho de Genoino, ele dava carona ao petista do Butantã até a sede da fundação, na Vila Mariana. No trajeto, que durava cerca de uma hora, o exdeputado se abria. “Ele falava com lágrimas nos olhos sobre o fim do PRC. Das pessoas que faziam parte do núcleo do partido, ele é o único que continua defendendo essas posições mais à esquerda. Ele viveu um processo de reflexão muito solitário.” 

Genoino também retomou paulatinamente a vida civil. Dizia para a família que queria se reconciliar com São Paulo, cidade que sempre adorou. “Lembro de os meus pais me contarem da primeira vez que foram ao cinema desde a prisão”, conta Miruna. Foi em 2016. Depois de algum tempo, Genoino tomou coragem de voltar a frequentar o Shopping Eldorado, em Pinheiros, onde há uma loja da qual ele é fã, especializada em canetas. Ele é um colecionador. Na mesma época, se matriculou numa academia. Passou a ser chamado para eventos, como um lanche coletivo com a turma da hidroginástica. 

Desde que saiu da prisão domiciliar, foram poucas as vezes em que foi hostilizado na rua. O único episódio do qual ele se lembra foi quando voltava de uma reunião com advogados de esquerda no Rio de Janeiro, em 2016, e foi xingado agressivamente por um homem no Aeroporto de Congonhas. Fazia poucos dias que Fernando Haddad (PT-SP) havia perdido a Prefeitura de São Paulo para João Doria (PSDB-SP), e o homem gritou: “Já derrubamos um, agora vamos derrubar os outros!” Kayano, sua mulher, recorda como esse tipo de hostilidade foi diminuindo. “Às vezes eu saía com o Genoino para fazer compras e, quando andava um pouco atrás dele, ouvia as pessoas fazerem comentários. Não tinham coragem de falar abertamente”, diz. “Às vezes revidei, às vezes deixei quieto. Mas isso foi parando de acontecer.”


A primeira vez que José Genoino apareceu diante de um grande público desde a prisão foi em novembro de 2019, no Sétimo Congresso Nacional do PT. Petistas de vários estados se reuniram na Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, em São Paulo, e reelegeram Gleisi Hoffmann para a presidência do partido. Ela teve o apoio do ex-presidente Lula, de José Dirceu, de Aloizio Mercadante, de Tarso Genro e outros petistas históricos. De Genoino, não. 

No último dos três dias do evento, um domingo, Genoino pediu o microfone para falar. Subiu à tribuna e surpreendeu os presentes ao sair em defesa da candidatura do historiador Valter Pomar ao comando do PT. Filho de Wladimir Pomar, um dos fundadores do PT, e neto de Pedro Pomar, um dos fundadores do PCdoB, assassinado na ditadura, Valter vem de uma linhagem respeitada no partido. Mas, ali, ele representava um setor mais à esquerda que estava isolado e enfraquecido dentro do PT. 

“Em muitos momentos eu divergi do companheiro Valter Pomar”, introduziu Genoino. “Mas sempre tivemos uma relação de camaradagem e profundo respeito, porque o que nos unia era o objetivo do socialismo e da revolução.” Aplausos e gritos de apoio. Falou por catorze minutos. Disse que o país vivia uma “nova época histórica”, que o PT foi golpeado pelos seus acertos e, autocrítico, completou: “Mas temos que criar coragem de dizer que alguns erros contribuíram para a nossa derrota.” A fala provocou um mal-estar na cúpula do partido. Mercadante se viu obrigado a pedir a palavra em seguida e fazer a defesa de Gleisi Hoffmann. Valter recebeu apenas 11,67% dos votos dos delegados do partido. 

Para ele, era de se esperar que o alto escalão do PT ficasse desconfortável. “O Genoino fez a mesma opção que eles entre 1990 e 2005, sofreu o pão que o diabo amassou, teve a máxima dignidade, fez um balanço político e teórico a respeito, tirou as devidas consequências e passou a defender outra linha política. Já esse pessoal não tirou as devidas consequências e insiste desde então na mesma estratégia”, argumenta Valter. “Se você comparar o Dirceu com o Genoino, ficam claras as diferenças”, completa ele, referindo-se ao fato de que um reviu suas posições e o outro não. 

Genoino planejou a cena com antecedência. Em julho daquele ano de 2019, num evento menor do PT, afirmou que o Sétimo Congresso do partido seria “o mais importante” da história e deveria ser um congresso “do combate”. Elaborou com esmero o que falaria na tribuna. “Quando ele comentou que ia se pronunciar, eu perguntei: ‘Precisa mesmo?’”, conta Miruna, sua filha. “Porque com isso ele se expõe, acaba ficando mal na fita com a Gleisi e com outros nomes. Entendo a importância do gesto, mas às vezes é cansativo ser filha do mártir.” 

Miruna cita o fato de que, embora Genoino mantenha relação de amizade com Lula, não foi chamado para o casamento do ex-presidente, em maio. “Foi chato ver que o Alckmin foi convidado, ex-BBBs foram convidados, e meu pai não.” Indagado se isso havia lhe incomodado, Genoino respondeu: “De jeito nenhum. O Lula sabe que essas coisas sociais não são o meu forte.” 

Em dezembro do ano passado, o exdeputado foi convidado para o jantar que o Prerrogativas, grupo formado por juristas de inclinação progressista, promoveu no restaurante Figueira Rubaiyat, em São Paulo, para sedimentar a aliança Lula-Alckmin. Genoino não podia ir porque tinha uma viagem marcada, mas deixou claro que, mesmo que pudesse, não iria. Ele foi contrário à união com Alckmin desde o início. “Não me oponho a fazer aliança ao centro, mas isso tem que ser ponto de chegada, não ponto de partida”, diz. “Qual o programa da frente ampla? Ninguém sabe. O acordo tem que começar pelo programa de governo. A gente chegar e apontar: isso aqui para nós é inegociável. Vocês aceitam? Aí a gente conversa. Porque senão dá problema lá na frente.” 

Mas e do ponto de vista eleitoral? Alckmin não foi uma escolha estratégica? “Sempre defendi que a gente não fizesse uma campanha água com açúcar. Para não perder o discurso antissistema. O desencanto pela política você só enfrenta se transformar a política em algo apaixonante”, responde Genoino. “Não estou fazendo um desabafo juvenil. Vivi isso intensamente, porra. A direita esfola, oprime a gente, e a gente tem que pedir desculpa por existir? Ah, não dá, né, meu!”, disse, soltando uma risada. Parou um pouco e retomou o raciocínio. “O Lula falou esses dias uma palavra: harmonia. Eu quero conflito. É isso que eu quero.” Bateu na mesa. “Sem conflito, os caras não cedem.”


Todo dia útil, às seis da manhã, Genoino tira o Sandero 2009 da garagem para levar o neto Luiz Miguel, de 14 anos, para a escola. Uma vez por semana, leva-o também para o treino de handebol. Quando a neta Paula, de 15, vai à casa de uma amiga assistir a seriados como Stranger Things, é o avô quem a transporta. A avó, Rioco Kayano, não sabe dirigir. “Outro dia ele não pôde levar meu filho no handebol e ficou superpreocupado”, diz Miruna. “Ele está fazendo por eles as coisas que não conseguiu fazer por mim e pelo meu irmão.” 

Desde que manifestou publicamente sua nova posição política, mais à esquerda e mais radical, Genoino tem sido requisitado. Na primeira semana de setembro, sua rotina foi a seguinte: de quinta a sábado, corpo a corpo em Curitiba pedindo votos para sua amiga Andrea Caldas, candidata a deputada federal pelo Psol, e para o petista Roberto Requião, candidato ao governo do Paraná (nenhum dos dois se elegeu); domingo, live comentando o noticiário com jornalistas do Diário do Centro do Mundo; segunda-feira, debate online com um professor de economia sobre as Forças Armadas e o risco de golpe; terça-feira, live sobre o cenário eleitoral no canal de YouTube da revista Fórum; quarta-feira, live comentando o Sete de Setembro com o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas. Antes da eleição, sempre que estava na rua em São Paulo, distribuía a quem encontrasse panfletos das campanhas de Lula e de Rui Falcão (que se elegeu deputado federal). 

Na pandemia, em que viveu completamente isolado – por ser idoso e cardíaco, é do grupo de alto risco –, Genoino mergulhou de cabeça nas lives. Com Rui Falcão, Valter Pomar e outros correligionários, participou da criação do Manifesto Petista, um grupo de debates em defesa do socialismo que faz duas transmissões semanais de análise da conjuntura. Dentro do PT, além da campanha de Falcão e de Requião, Genoino contribuiu com a candidatura a deputado de Wadih Damous (que conseguiu uma suplência). Segundo Falcão, Genoino ajudava “do jeito dele”. “Se eu pedir metade da aposentadoria dele pra campanha, ele me dá. Mas não peça pra organizar um evento.” 

Numa chamada de vídeo meses atrás, o ex-presidente Lula perguntou informalmente a Genoino se não gostaria ele próprio de se candidatar a deputado. “Estou sem instinto político, e quero experimentar fazer política sem mandato”, respondeu Genoino, segundo ele próprio se recorda. Disse, além disso, que não sabia se poderia ser candidato, devido ao fato de ter sido condenado pelo STF, e não estava interessado em comprar essa briga jurídica. Pela Lei da Ficha Limpa, condenados que transitaram em julgado ficam inelegíveis por oito anos após o cumprimento da pena – no caso de Genoino, esse prazo termina em março de 2023. 

Bené acha que, por trás da decisão, está uma mágoa que Genoino guarda em relação ao PT e a Lula desde o mensalão. “Ele acha que deveria ter sido defendido pelo partido, e sente que não foi.” Genoino desconversa. “Eu tenho memória, sim. Mágoa, não.” Sobre a possibilidade de se candidatar numa eleição futura, quando terá expirado o prazo da Ficha Limpa, ele diz: “Com a visão que tenho hoje, não está nos meus planos participar da disputa institucional. Mas não vou decretar nada agora.” 

O petista evoca sempre uma lição que aprendeu com a amiga psicóloga que o ajudou em 2005, no auge da crise do mensalão: “Ela me disse: ‘Genoino, você tá no fio da navalha. Você não pode viver sem a política, mas tem que encontrar novos caminhos dentro dela. Se livre dos adereços, da formalidade, do paramento, e viva como o José Genoino militante de esquerda, com seus ideais.’ É isso que estou fazendo agora. Não quero disputar a institucionalidade, nem ter cargo. Quero ser um propagador de causas”, diz. “Cheguei à seguinte conclusão: o capitalismo não me cabe. O lucro, a competição, a selvageria não me cabem. Quero ser um rebelde desse sistema.”

Em dezembro do ano passado, Genoino passou dez dias na casa da mãe, no vilarejo de Encantado, em Quixeramobim. Desde que saiu de lá, no começo dos anos 1960, foi a primeira vez que voltou sozinho, sem mulher, sem filhos, sem assessores. Reencontrou-se com os irmãos que não via há anos. Genoino é o mais velho de onze filhos – três moram em Encantado, quatro em Fortaleza, dois em São Paulo, e um já morreu. A mãe, que fez 97 anos em setembro, por vezes reconhece o primogênito, por vezes não. 

Genoino sempre teve uma relação mal resolvida com suas origens. Não gostava de Encantado e da vida rural, que considerava limitante. Dizia se sentir oprimido por aquele ambiente. Mais tarde, como político, passou a se sentir constrangido. Percebia na família uma pressão para que ajudasse financeiramente os irmãos e arrumasse emprego para parentes. Ele sempre recorda uma das últimas conversas que teve com o pai, pouco depois de ter renunciado à presidência do PT, em 2005: “Ele disse assim: ‘Meu filho, tem quatro coisas que não entendi até agora. Primeiro, você queria ser doutor e a política o tirou da universidade. Segundo, você não queria trabalhar na roça, mas depois voltou pra roça pra fazer essa tal de guerrilha. Terceiro, você foi preso, achei que ia morrer, saiu da cadeia, virou deputado famoso e não ficou rico. Quarto, vocês ganharam a questão contra o governo [ou seja: venceram uma eleição e viraram governo] e você tá nessa situação?’” 

O pai, um camponês analfabeto, morreu em 2016, aos 96 anos. Genoino o visitou alguns meses antes, mas o pai já estava bastante mal de saúde. “A morte dele me marcou muito. Ele me reconheceu, mas já não estava consciente. Eu queria muito ter conversado com ele.” A viagem dessa vez foi uma espécie de reconciliação. “Fui sozinho, sem adereço, sem farda, sem paletó. Bicho, não sou autoridade, não sou personalidade, não quero mais isso. Fui como José Genoino e ponto. Eles entenderam. Dormi na casa onde nasci, comi as comidas de lá. Ouvi as músicas deles, encontrei um primo da minha idade que trabalha na roça”, diz Genoino. “Fiz a viagem como se estivesse lendo Cem Anos de Solidão.” 

Ao retornar para São Paulo, estava contentíssimo. Contou histórias da infância que nunca tinha contado. Falou sobre cantorias em torno de uma fogueira e as sobrinhas que conheceu. “Aquilo reverberou na cabeça dele durante muito tempo”, diz Kayano. “Essa volta para a terra dele, a convivência com a família, completou o processo de reconciliação que ele viveu. Eu vejo assim. O Gê retomou a identidade originária dele.”

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