13 de abril de 2024

Taxação de bilionários não é mais de direita ou esquerda, diz Nobel de Economia

Esther Duflo vê amplo apoio popular à criação de imposto sobre super-ricos para enfrentar crise climática e pobreza

André Fontenelle
Jornalista baseado em Paris

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em entrevista à Folha, economista francesa afirma que a cobrança de imposto sobre a fortuna de super-ricos e o aumento da tributação de multinacionais foram incorporados ao espírito do tempo e podem gerar, em todo o mundo, US$ 500 bilhões ao ano para financiar medidas de mitigação de impactos da crise climática sobre populações e países pobres.

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Na próxima quarta-feira (17), os ministros da Fazenda dos países do G20 reunidos em Washington ouvirão uma proposta que alguns anos atrás seria inimaginável em um fórum do gênero: usar um imposto sobre os bilionários para lutar contra a pobreza e as consequências da crise climática.

A autora da proposta, Esther Duflo, 51, vencedora do Nobel de Economia de 2019, falará como convidada do governo brasileiro, atualmente na presidência rotativa do G20. Segundo a economista francesa, chegou a hora para articular as duas questões, pobreza e aquecimento global.

Retrato de Esther Duflo, vencedora do Prêmio Nobel de Economia - Joel Saget - 20.jun.23/AFP

Propostas de taxação dos super-ricos vêm ganhando aliados nos últimos anos. Em fevereiro, Fernando Haddad encampou uma dessas propostas, de outro economista francês, Gabriel Zucman, colega de Duflo na Escola de Economia de Paris e especialista em paraísos fiscais.

Segundo Duflo, cobrar 2% sobre a fortuna dos super-ricos e aumentar a tributação das multinacionais arrecadaria US$ 500 bilhões de dólares por ano, que poderiam ser aplicados em favor dos mais pobres do planeta, maiores vítimas da emergência climática. Parte do dinheiro seria diretamente injetado em contas digitais dessas pessoas, parte seria usada como resseguro para os governos obrigados a arcar com os custos das catástrofes e o restante seria investido na adaptação ao calor extremo nas regiões mais afetadas.

A pesquisadora afirma buscar "influenciar o mundo real": é uma das fundadoras do J-PAL (Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) —rede mundial de pesquisa que tem uma representação no Brasil, no Insper, em São Paulo— e lançou na França no ano passado uma série de livros infantis com histórias para conscientizar as crianças dos problemas da miséria.

Em entrevista por videochamada, Duflo antecipou à Folha a proposta que vai apresentar em Washington.

Na última reunião preparatória do G20, em São Paulo em fevereiro, Fernando Haddad mencionou uma proposta de imposto sobre os super-ricos. Essa proposta é igual à sua? Não é a mesma, mas eu a conheço muito bem e a apoio. Gabriel Zucman, que está muito envolvido com ela, é meu vizinho de sala em Paris. A minha é, digamos, complementar, porque trata da necessidade de financiamento para adaptação e compensação pelos danos climáticos para as pessoas mais pobres do planeta. O imposto recomendado pelo ministro Haddad em fevereiro é uma dessas fontes.

A sra. dá muita ênfase à viabilidade dessas propostas. Por quê? Não basta mais apresentar argumentos teóricos e morais, do tipo "é só fazer isso". Temos que ser mais pragmáticos, porque a mudança climática já chegou. As temperaturas já aumentaram. Os últimos 12 meses foram os mais quentes já registrados. Os danos já estão acontecendo, principalmente nos países mais pobres, que não têm condições de se proteger.

Precisamos agir hoje. Até agora, temos demonstrado uma total incapacidade de lidar com esse problema. Não basta fazer declarações ou criar um fundo sem investir dinheiro algum nele.

Nunca se falou tanto em um imposto sobre os super-ricos. Ele está no espírito do tempo? Sim, e o Brasil fez muito para colocá-lo no espírito do tempo. Antes de fevereiro, estava menos que agora. O fato de ter sido encampado pela presidência brasileira do G20 faz uma grande diferença, mas há outros fatores que tornam esse imposto possível.

Por um lado, o aumento da desigualdade e, em especial, das enormes fortunas. Por outro, a constatação de que essas grandes fortunas não pagam Imposto de Renda. Não se trata de tirar a fortuna deles, mas obrigá-los a pagar impostos como os que nós pagamos sobre nossos salários.

O retorno mínimo na Bolsa, para quem é muito rico, é de 5%. Hoje, essa renda não é tributada. Tributar o patrimônio em 2% equivale a tributar cerca de 40% da renda, o que equivale à alíquota superior do Imposto de Renda na maioria dos países. Isso mostra que é possível chegar a um entendimento internacional. Chegou o momento de introduzir o imposto sobre bilionários.

O imposto sobre empresas já está sendo implantado. Ao aumentar um pouco esse imposto ou usar o todo ou parte do imposto sobre os super-ricos, poderíamos financiar até US$ 500 bilhões por ano para os mais pobres do mundo.

A sra. foi convidada a Washington pelo governo brasileiro. Não teme que sua proposta fique associada a um grupo político? Não creio. Foi o G20 que me convidou, como parte da presidência rotativa brasileira, que tem foco na pobreza e na mudança climática. É normal que esse foco reflita a política de Lula, enquanto o G20 geralmente lida mais com os problemas dos países industrializados. A França apoiou imediatamente a proposta, com um governo que não é de esquerda.

Além disso, quando analisamos as pesquisas, o apoio é muito forte. Taxar grandes empresas ou bilionários para ajudar os países pobres a lidar com as mudanças climáticas tem mais de 80% de popularidade. Vai além de direita ou esquerda. É senso comum.

Elon Musk e o STF entraram em conflito sobre a liberdade de expressão. Isso não mostra que haverá resistência dos bilionários a propostas como a sua? É possível. Por outro lado, estamos falando em 2% de suas fortunas. Mesmo que eles não façam nada com essas fortunas —e geralmente fazem—, elas rendem mais de 5% ao ano. Concordar em serem tributados nesse nível totalmente razoável não seria um investimento no tecido social por parte dos bilionários?

Eles podem alegar que já fazem filantropia. Deixaria de ser filantropia, porque seria um imposto: logo, eles não teriam controle. Porém, ainda que seja puramente estratégico, pode ser do interesse deles: "Estamos pagando nossa contribuição razoável para as sociedades em que vivemos".

Não sei se Elon Musk entenderia isso, mas outros talvez se deem conta de que é um preço pequeno, comparado ao que poderia aguardá-los se houvesse uma revolta popular e populista que saísse do controle. Um bilionário razoável deveria ser a favor.

Como o dinheiro seria aplicado? Podemos dividir as propostas em três "cestos": primeiro, as individuais. Quando as pessoas recebem dinheiro, podem se mudar temporariamente se houver uma enchente ou muito calor, podem se proteger e seus animais ou não trabalhar por algum tempo se estiver muito quente. Durante a pandemia, vimos que muitos países sabem fazer isso. Qualquer pessoa pode ter uma conta no celular, diretamente conectada a um grande "pipeline" de dinheiro.

Há quem diga: "Mas tem corrupção, o dinheiro não vai chegar". Não. Hoje, há pesquisas demonstrando que as pessoas que recebem dinheiro o utilizam muito bem. Por isso, é a parte mais importante da proposta.

Depois, as propostas nacionais: quando ocorre um grande desastre climático, os governos são sempre os seguradores de última instância. Portanto, um resseguro para os governos.

Por fim, a adaptação, que pode ser em nível comunitário ou regional, às consequências das mudanças climáticas. No Brasil, há uma tradição muito forte de descentralização, que pode servir de exemplo.

O que a sra. responde a quem diz que as estimativas não estão corretas e que isso não vai acontecer? Não dá para dizer que não vai acontecer porque já está acontecendo. Nos países pobres, já é uma realidade. Basta ver as enchentes do ano passado no Paquistão, a seca intensa no norte da Índia. Tenho certeza de que você pode pensar em exemplos no Brasil. O Níger e todo o Sahel se tornaram áreas onde nada mais pode ser cultivado. Não se trata mais de uma questão do futuro: é uma questão do presente.

Não seria melhor enfrentar a própria existência de bilionários em vez de tributá-los? Estaríamos saindo do meu campo pragmático, para entrar, por exemplo, na proposta de Thomas Piketty de tributar a riqueza em um nível muito mais alto para garantir que não haja bilionários —ou [tributar] as heranças. São propostas interessantes, mas não estão na mesa no momento. Minha pergunta é concreta: o que podemos fazer hoje?

A partir do momento em que sua proposta for apresentada, quantos anos acha que seriam necessários para colocá-la em prática? Não faço ideia. Não sou muito familiarizada com negociações internacionais. No entanto, se pegarmos o exemplo da tributação de multinacionais, ela demorou uns dez anos até ser feita. Que seja em dez, mas acho que acontecerá e espero que aconteça.

O que a sra. pensa sobre o papel do intelectual na sociedade? Escolhi a economia quando me dei conta de que o economista pode ter uma influência no mundo real. Na maior parte do meu trabalho com o J-PAL, há uma relação clara da intelectual a serviço da política. Os políticos têm ideias, e nós estamos aqui para ajudá-los a encontrar maneiras eficazes de atingir seus objetivos.

Essa proposta é uma postura um pouco diferente da que tive durante toda a minha carreira acadêmica, porque se trata de uma proposta política, não apenas técnica. Pode ser criticada ou melhorada. Ao apresentá-la, me torno uma espécie de porta-voz da ciência atual.

Por que a sra. escreveu uma série de livros infantis sobre a pobreza? As leituras da infância são marcantes. O que vemos nos impressiona, nos choca e nos desafia. Foi essa a minha experiência.

Outro motivo é a literatura atual sobre pobreza e questões ambientais não ser das melhores. Tende a ser extremamente didática ou caricatural. Queria mostrar a riqueza da vida das pessoas pobres. Conscientizar as crianças dos problemas da pobreza e das soluções —porque todos os meus livros oferecem soluções—, só que sutilmente.

Em conferência recente, a sra. falou de um "efeito Bolsonaro" e um "efeito Lula" em relação ao desmatamento. A esquerda se preocupa com o meio ambiente mais que a direita? A política conta. Isso está demonstrado. Uma decisão política afeta outras decisões.

Quanto a Bolsonaro vs. Lula, são duas personalidades específicas. Não acho que Bolsonaro seja representativo da direita, assim como Lula não é necessariamente representativo da esquerda. É verdade que, se observarmos as propostas, os governos de direita tendem em geral a não defender tanto a ecologia quanto os de esquerda. Mas isso não basta para dizer que a direita é menos ecológica que a esquerda.

A sra. parece cética em relação a abordagens baseadas em compromissos voluntários para cumprir as metas de emissões por país. Está pessimista em relação à COP em Belém? Discutem-se muito os termos dos comunicados finais, e, na diplomacia, muitas vezes, o comunicado é a ação. Não sei o que teria acontecido sem as COPs, mas o esforço tem sido muito lento em comparação com a dimensão da necessidade.

Em relação à compensação para os países pobres, está nítido para mim que não é suficiente e que deveríamos fazer melhor e imediatamente. Mas não há só o imposto sobre o carbono. Há também, em tese, a possibilidade de um sistema de cotas por país. Esse era o princípio [do Protocolo] de Kyoto, que não deu certo.

A solução mais justa parecem ser cotas com base na população de cada país. Se conseguíssemos isso, minha proposta não seria mais necessária, porque haveria uma transferência absolutamente maciça para os países mais pobres. Só que não parece estar em pauta.

A sra. lamenta isso? Lamento, mas é preciso encarar o mundo como ele é. Não sou ingênua. Todo o meu trabalho sempre foi fazer o melhor dentro das restrições políticas. O que não quer dizer que não se deva sonhar com sistemas melhores. Tem gente que pode e deve fazer isso, mas meu trabalho sempre foi mais reformista: como fazer o melhor dentro do sistema muito imperfeito existente.

Recentemente, uma reforma tributária foi aprovada no Brasil para simplificar um sistema considerado muito complexo. Esse tipo de reforma pode desempenhar um papel na redução da pobreza? Não estudei [a reforma brasileira], mas ter um sistema mais legível, que unifique diferentes impostos e possibilite calcular a verdadeira extensão da redistribuição, possibilita um debate sobre as questões reais. Na França, temos um Imposto de Renda progressivo, mas também temos um monte de impostos "flat", o que pode tornar seu caráter redistributivo obscuro.

Qual mensagem a sra. deseja transmitir em Washington? Para mim, é fundamental apresentar essa proposta diante dos ministros das Finanças para obter uma reação e forçá-los a dizer sim ou não e por quê. Isso coloca a proposta oficialmente no debate público. Espero que desemboque em uma declaração do G20 neste ano, que seria um passo importante para a concretização da proposta.

Minha mensagem mais importante será: "Vocês representam os países responsáveis pelas mudanças climáticas, que já estão ocorrendo e causando a perda de vidas nos países pobres. Até que encontrem uma maneira mais eficaz de combater as mudanças climáticas, vocês precisam encontrar uma forma de compensar as pessoas mais pobres por meio de mecanismos sustentáveis, porque os voluntários não deram certo. Estou ciente da pressão fiscal sobre seus orçamentos, mas existem duas fontes de financiamento justas, realistas, populares, que nos permitiriam arrecadar US$ 500 bilhões de dólares por ano para proteger vidas".

ESTHER DUFLO, 51

Presidente da Escola de Economia de Paris e professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), é cofundadora do J-PAL (Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) e vencedora do Prêmio Nobel de Economia de 2019, com Abhijit Banerjee e Michael Kremer. Autora, com Banerjee, de "Good Economics for Hard Times" e "Poor Economics: a Radical Rethinking of the Way to Fight Global Poverty", entre outros livros.

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