27 de abril de 2024

Congresso também precisa ter responsabilidade fiscal, diz Haddad

Ministro afirma que governo recorreu ao STF contra desoneração da folha de pagamentos porque Legislativo deve ter as mesmas obrigações que o Executivo, ou equilíbrio fiscal nunca será alcançado

Mônica Bergamo

Folha de S.Paulo

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o esforço para que o país equilibre suas contas não chegará a uma vitória "por nocaute". "Cada seis meses é um round. Vai ser sempre por pontos", afirmou o petista em entrevista à Folha, em seu gabinete, na quinta-feira (25).

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante entrevista à Folha em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Questionado sobre a alteração das metas fiscais estabelecidas para 2024 e 2025, ele afirma que o "Executivo não consegue impor sua agenda ao Legislativo", e elenca propostas de ajustes que foram "desidratadas" pelo Congresso Nacional.

Entre elas está a que prevê a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de empresas e prefeituras.

A medida foi questionada pelo governo no Supremo Tribunal Federal (STF). Cinco magistrados já votaram para que ela seja suspensa por não indicar o "impacto financeiro" sobre as contas públicas. Luiz Fux pediu vista.

O ministro justifica a iniciativa afirmando que o Legislativo, que tem hoje a mesma prerrogativa do Executivo de criar despesas, deve também indicar as receitas para fazer frente a elas.

"Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República", afirma.

Questionado se o descumprimento não leva ao descrédito da meta fiscal, ele afirma que o mais importante é o compromisso do governo de persegui-la. E admite cortes de despesas se não houver alternativas.

"Ninguém teve a coragem de fazer o que estamos fazendo", afirma. "Nós estamos avançando."

META FISCAL

Que livro o senhor está lendo? Ou melhor, que livro o senhor estava lendo?

[Risos] Eu estou lendo as obras do historiador alemão Reinhart Koselleck. Terminei o segundo dos quatro livros que comprei dele, "Estratos do Tempo".

O senhor vai seguir lendo, mesmo depois das declarações do presidente Lula (PT) nesta semana de que, ao invés disso, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara?

O presidente fez uma brincadeira de super bom gosto, descontraída, que não merecia essa discussão toda.

Bem, sobre economia: a revelação de que a meta fiscal estabelecida pelo governo para 2025 será alterada gerou ruído e descrédito. Por que, afinal, devemos acreditar que as metas são para valer, e não que serão alteradas dezenas de vezes?

Não é a primeira vez que isso acontece. No governo [de Michel] Temer, por exemplo, também houve mudança de meta fiscal, sem maior questionamento.

Agora, uma coisa é você deixar de ter uma meta exigente, que indique uma trajetória consistente para a [redução da] dívida pública. Isso seria um problema. Outra coisa é você reconhecer que as condições políticas retardaram o cumprimento, mas seguir estabelecendo uma meta fiscal exigente para os anos seguintes. Não deixá-la frouxa. Foi o que nós fizemos.

A meta definida em março do ano passado, de zerar [o déficit] neste ano [de 2024], sofreu alguns reveses —políticos, e naturais em uma democracia.

O Executivo não consegue impor a sua agenda ao Legislativo.

Quais foram os principais reveses, na sua opinião?

Todos os projetos e medidas corretivas que propusemos foram negociados e desidratados [no Congresso], à luz das considerações que os parlamentares legitimam ente podem fazer.

Agora mesmo eu tive que renegociar o Perse [Programa Emergencial para Setores de Eventos, criado em 2021 e que prevê isenções tributárias para empresas paralisadas na epidemia da Covid-19].

No meu entendimento, ele tinha que acabar. Mas tive que postergar, diluindo seus efeitos no tempo.

A desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia é outro caso.

Há mais de dez anos eles são beneficiados, com um total de mais de R$ 150 bilhões, sem nenhuma vantagem para o país. Isso é demonstrado por diversos estudos acadêmicos.

A desoneração da folha de pagamento dos municípios [de até 156,2 mil habitantes] nem estava na pauta.

No entanto, uma emenda de última hora [apresentada por parlamentares], que representa R$ 10 bilhões em custos tributários, foi aprovada. E tivemos que recorrer ao Poder Judiciário [STF] para reverter [o ministro Cristiano Zanin deu liminar a favor do governo em ação que sustenta que o Congresso não pode prorrogar a desoneração das folhas de pagamento sem demonstrar o seu impacto financeiro. Quatro magistrados já seguiram o seu voto].

É importante, então, esclarecer: uma coisa é a meta, onde se quer chegar.

Outra coisa é o resultado que você consegue, politicamente, atingir, respeitando os poderes.

E a terceira coisa importante é saber se o governo está ou não comprometido com a trajetória [das contas públicas]. O nosso compromisso é o de botar ordem em dez anos de déficits públicos que acumulam quase R$ 2 trilhões.

RESPONSABILIDADE

Um líder do PT me disse que a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024 é que antes ele era rico, e agora ele é pobre. Ou seja, perdeu poder sobre o Orçamento, que hoje tem que dividir com o Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) afirma que a briga para ver quem manda nos recursos será permanente.

Há não muito tempo atrás, criar despesas e renunciar a receitas eram atos exclusivos do poder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal disse que o Parlamento também tem o direito de fazer o mesmo.

Mas qual é o desequilíbrio? É que o Executivo tem que respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. E o Parlamento, não.

É por isso que nós recorremos agora ao STF [na ação que discutia a desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia e para prefeituras].

É preciso dizer que o Congresso também tem que respeitar a mesma lei. E que atos que não a respeitem precisam ser suspensos.

Se o Parlamento tem as mesmas prerrogativas do Executivo, ele deve ter também as mesmas obrigações.

Nós temos o Orçamento fechado, com meta estabelecida, tudo bonitinho.

Aí vamos [referindo-se ao Congresso] dar benefício pa ra prefeituras, para governos, para entidades assistenciais, para taxista. Tudo bem. Mas de onde vêm as receitas?

Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República, e chama o vice.

Ninguém quer retirar a prerrogativa de ninguém. Mas não pode um Poder [o Executivo] ficar submetido a regras rígidas, e o outro [o Parlamento], não.

Se a exigência de equilíbrio fiscal valer só para o Executivo, ele não será alcançado nunca.

Como é a sua relação com o presidente da Câmara, Arthur Lira? Ele conversou com o presidente Lula recentemente. O clima melhorou entre os Poderes?

A conversa foi boa. O Lula é bom conversador. Toda vez que eles dialogam, o clima melhora.

Ainda sobre os desafios de se cumprir a meta fiscal, ouvi no próprio governo que o senhor tem o mesmo comportamento do filho que promete à mãe que vai tirar dez na prova. Volta com boa, mas menor, e fica parecendo um fracassado. Estabelecer uma meta ambiciosa que, sabe-se, não será cumprida, não gera o efeito inverso, de perda de credibilidade?

Ao contrário. Eu tenho certeza absoluta de que, se a meta não for exigente, as medidas [de aumento de arrecadação e contenção de gastos] não passam no Congresso. Se eu baixar a guarda e disser que a meta é de 1% de déficit, ele vai para 2%.

É difícil. Mas a meta é factível.

O mercado não acredita nela e prevê déficit de 0,7% para este ano e 0,6% para 2025.

As projeções são diferentes. O mercado coloca na conta os eventuais reveses que o governo vai ter.

E por que o próprio governo não coloca?

Porque eu não posso reconhecer que um projeto não vai ser aprovado antes de lutar por ele.

Vou te dar um exemplo. A revisão da vida toda [recálculo do valor da aposentadoria considerando todas as contribuições feitas pelo trabalhador, com impacto de R$ 400 bilhões] foi revertida no Supremo [Tribunal Federal, que antes a aprovara].

Se tivéssemos perdido, a meta de 2025 não poderia ser zero, porque o impacto seria de no mínimo 0,5% do PIB. Nós estamos agindo junto ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo para que a disciplina das contas públicas volte à ordem do dia.

Desde 2015 estamos com mais de 19% do PIB de despesa primária e, em média, 17,5% do PIB de receita primária. É estruturalmente inviável.

Se não compreendermos que temos que reverter esse quadro e voltar ao patamar [de receita] de 18,7% do PIB, como era em 2011, 2013, não haverá ajuste.

E é absolutamente possível voltarmos a esse patamar só combatendo os gastos tributários [perda de arrecadação provocada por benefícios e isenções] criados neste período, como o da desoneração da folha.

O gasto tributário no Brasil, que já foi de 2%, chegou a 6%. Ou seja, os lobbies atuaram firmemente para diminuir a base fiscal em proveito próprio, não em proveito do Brasil.

Estamos eliminando gastos tributários absolutamente ineficazes. Já conseguimos fazer muita coisa. A arrecadação, neste ano, está aumentando 8,5% acima da inflação.

Mas há receitas extraordinárias neste ano que não vão se repetir, como a taxação dos estoques dos depósitos em fundos offshore. A margem da Fazenda é cada vez menor.

Não são receitas extraordinárias. A maioria delas é receita consistente.

Você pensa que foi fácil reverter politicamente a decisão populista do [Jair] Bolsonaro [PL] de tirar imposto dos combustíveis para fazer demagogia [baixando o preço da gasolina e do diesel] em período eleitoral?

Essa é uma receita permanente.

Não foi fácil convencer o nosso governo, convencer um presidente [Lula] que acabou de tomar posse, de que era o certo a fazer. Eu falei para ele: "O dólar vai cair, vai compensar a volta dos impostos, a gasolina vai baixar". Foi o que aconteceu.

Como o senhor mesmo admite, não é fácil.

É por isso que nós fomos ao Legislativo e estamos indo agora ao Judiciário.

Ninguém teve coragem de fazer o que nós estamos fazendo. Muitos ministros respeitáveis passaram por aqui e não enfrentaram esse debate. Não estou criticando ninguém. Tudo é difícil.

O negócio é não desistir de buscar o certo. Nenhum economista critica o mérito do que estamos fazendo.

PAUTAS-BOMBA

O limite de 2,5% de crescimento da despesa estabelecido no arcabouço fiscal é outro número colocado em dúvida. Há pressão de gastos estruturais como o da Previdência, atrelado à política do governo de reajustes do salário mínimo acima da inflação. Há aumento de despesas com emendas parlamentares, há pautas-bomba como a volta do quinquênio para juízes, promotores e outras categorias.

Estou trabalhando. Tive uma reunião com 15 senadores anteontem para segurar a PEC do quinquênio, que considero um retrocesso. Estamos agindo para evitar que esse tipo de coisa aconteça. Mas aqui é apenas um ministério. O país precisa se entender.

Há duas alternativas caso não se consiga evitar o aumento exponencial de despesas: ou altera o teto de 2,5% do arcabouço fiscal, ou o governo corta gastos. Me parece que o presidente Lula não está disposto a usar a tesoura. Qual será a escolha?

Cada dia com a sua agonia. Nós estamos avançando.

Agora, não adianta imaginar que vamos voltar aos bons tempos de crescimento de 3,5%, 4,5%, cometendo os mesmos erros que nos trouxeram para 1,5%.

Estamos fazendo as coisas corretas. Aceitei ser ministro da Fazenda para implementar o ajuste sobre quem não paga imposto. E sem penalizar os mais pobres.

Porque todo ajuste neste país é feito no lombo do trabalhador.

Congela o salário mínimo por sete anos, congela tabela do imposto de renda. Uma pessoa que ganha R$ 1.500 estava pagando imposto, e o sujeito [que tem dinheiro] no fundo exclusivo dos super-ricos não pagava nada? Desonera os fundos, desonera as empresas que não pagam impostos, os lobbies, cria paraísos fiscais dentro do país, acaba com voto de qualidade do Carf para beneficiar empresas lobistas que não pagam impostos? São coisas inaceitáveis para mim. Prefiro não participar de um trato como esse.

CORTES DE DESPESAS

Quando o senhor não diz claramente que o teto de despesas de 2,5% do arcabouço é sagrado, podemos concluir que cortes de despesas estão descartados e que, no fim, esse percentual será, sim, alterado.

Eu nunca tratei do marco fiscal desde que ele foi aprovado. Para mim, aquilo ali [os 2,5% de limite de crescimento de despesas] é o que tem que ser.

Podemos concluir então que pode haver cortes de despesas.

Veja bem: amanhã tem outra eleição, outro presidente, as condições econômicas melhoraram, conseguimos arrumar as contas? Então esses parâmetros podem ser revistos. Eu sempre disse isso.

Mas, hoje, acredito que eles devem ser mantidos, até que consigamos demonstrar que estamos em uma trajetória consistente [de ajuste fiscal e redução da dívida pública].

O senhor preferiria então, se necessário, defender cortes a alterar esses 2,5%?

Se necessário, sim.

Mas há muita resistência, inclusive do presidente Lula.

E eu entendo. Depois de sete anos de baixo investimento, de servidor e aposentado pagando a conta, de calote nos precatórios, de bombas-relógio sendo construídas, de o sujeito iludindo a população de que as contas estavam sendo colocadas em ordem, é natural que haja resistência.

Por outro lado, se cortes forem necessários, o senhor não vai acabar botando a conta em cima dos mais fracos novamente? Qual é a saída?

Não. Tem várias formas de cortar [despesas]. Supersalários, por exemplo, tem que cortar. O Proagro [programa voltado para agricultores] gastava R$ 1 bilhão e passou para R$ 10 bilhões. Tem alguma coisa errada.

A Fazenda está cuidando dos gastos tributários. O [ministério do] Planejamento está cuidando dos gastos primários.

Todos os gastos, na minha opinião, têm que ser revistos. Os tributários, que saíram de 2% e foram para 6% do PIB, e os primários, que desde 2015 superaram 19% [do PIB].

Agora, falamos sempre dos problemas, e é justo.

Mas tem muita coisa importante acontecendo. O crédito e a renda voltaram a subir, o desemprego caiu, a confiança do mundo no Brasil melhorou muitíssimo, aumentamos a nossa nota de crédito junto às agências de risco.

Entramos com gente falando em recessão, e agora tiveram que encaixar 2, 9% de crescimento. E eu penso que na revisão do IBGE vai chegar a 3%.

INFLUÊNCIA EXTERNA

Como vê o cenário externo, com a possibilidade de alta de juros nos EUA, o que afetaria diretamente o Brasil?

Muita gente falava que os juros americanos cairiam em março. Tinha aposta em dinheiro. E quando isso acontece é para valer, né? Não é palpite de economista-chefe. O FED [banco central dos EUA] fez uma barbeiragem, errou em suas próprias previsões. Comunicou errado. Levou o mundo a errar. Muita gente perdeu dinheiro, inclusive no Brasil, apostando na valorização do real.

Eu acredito que os juros não vão subir [nos EUA]. Mas também acredito que eles vão empurrar o ciclo de cortes para a frente.

JUROS

E no Brasil? O presidente do Banco Central, Roberto Campos, falou que a âncora fiscal menos transparente aumenta o custo da política monetária, sinalizando que os juros podem subir.

O governo Bolsonaro fez o maior déficit da história, inclusive por causa da pandemia da Covid-19. Mas mesmo tirando a pandemia, foi o estouro da boiada, furando o teto o tempo inteiro. No pior momento, a Selic chegou a 2%.

Eu não sou diretor do Banco Central. Mas, para mim, seria uma enorme surpresa, com a inflação de março em 0,16% [os juros subirem]. Estão pedindo o quê da economia brasileira?

Está sendo uma experiência extremamente complexa conviver com um presidente do Banco Central que você não escolheu.

Que outras medidas estão sendo pensadas para, diante das previsíveis dificuldades, se alcançar de fato as metas propostas?

Não posso te antecipar. São medidas ainda em estudo.

O Ministério da Fazenda enfrenta rounds. Cada seis meses é um round. No ano passado ganhamos o primeiro e o segundo rounds. Estamos agora no terceiro round, no Legislativo e no Judiciário.

Se a gente for ganhando, avançando, vai ser sempre por pontos. Não vai ter um nocaute.

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