7 de abril de 2024

O clima de guerra na Europa está encobrindo a extrema-direita

A caminho das eleições europeias de junho, os políticos centristas apelam a um voto para travar a extrema-direita. Mas a extrema-direita já conquistou a credibilidade do mainstream - e isso deve-se ao facto de aceitar a crescente dedicação dos fundos públicos da UE à indústria da defesa.

Francesca De Benedetti


Ursula von der Leyen. Foto do Conselho Europeu.

Tradução / Esqueça-se o cordão sanitário contra a extrema-direita. Hoje, o neoliberalismo europeu é protegido por um cordão que já integrou essa força sectária. O futuro da União Europeia está a ser construído muito antes de os cidadãos votarem no primeiro fim de semana de junho: a mudança de paradigma já cá está.

Até às eleições para o Parlamento Europeu de 2019, ainda fazia sentido falar de uma barreira contra a extrema-direita. Hoje, ela ruiu completamente. Uma das principais razões pelas quais o chamado centro-direita se reconciliou com líderes de extrema-direita, como Giorgia Meloni, é porque têm um objetivo conjunto pró-negócios.

Durante a campanha para as eleições de junho, a atitude de Bruxelas em relação ao investimento de dinheiro público na indústria da defesa e a pressão dos líderes europeus para com uma "economia de guerra" não revela apenas que dão prioridade aos lucros de uma pequena elite. A construção de uma narrativa de "tempo de guerra" e o apelo à unidade também servem para evitar críticas e ajudar a preparar o caminho para as próximas decisões e nomeações nas instituições da UE.

"É necessária uma abordagem menos ideológica na chefia das instituições europeias", afirmou recentemente o presidente francês Emmanuel Macron. Este defendeu a nomeação de Mario Draghi, antigo presidente do Banco Central Europeu (BCE), para um dos cargos principais da UE. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, está a fazer campanha para um segundo mandato, o que, no seu caso, significa fazer com que as políticas da UE sejam cada vez mais vantajosas para as grandes empresas; já o tinha feito com a Big Pharma e agora é a vez da indústria agrária e do setor da defesa.

Mesmo que muitos não se apercebam disso, uma Europa cada vez mais neoliberal está a ser construída mesmo debaixo do nosso nariz, e a sua liderança política inclui agora a extrema-direita. Mas propor uma alternativa já se tornou mais difícil. Enquanto os reacionários estão em marcha, falta uma frente progressista contra eles.

A trindade neoliberal

Fala-se muito da possibilidade de von der Leyen, Draghi e o primeiro-ministro holandês cessante, Mark Rutte, assumirem papéis-chave depois de junho. O trio partilha uma notável compatibilidade com o pacto neoliberal. Embora os eleitores tenham de esperar até 6 a 9 de junho para escolherem o novo Parlamento Europeu, os líderes europeus já estão a negociar o que virá depois.

A política da UE tem uma regra oculta, mas bem conhecida, com nome alemão: o chamado processo spitzenkandidat ("candidato principal"), que implica que a presidência da Comissão Europeia deva ser confiada ao candidato do partido político mais votado. Isto sugere que os eleitores europeus têm controlo direto sobre pelo menos uma das posições de liderança em Bruxelas. Mas, na vida política real, não é assim que as coisas funcionam.

Isto foi bem evidente em 2019, quando o spitzenkandidat do Partido Popular Europeu (PPE), Manfred Weber, hoje líder deste agrupamento de centro-direita, foi ultrapassado por Angela Merkel. Durante a negociação entre os chefes de governo, a então chanceler alemã, e membro do PPE, Merkel, impôs a sua ministra da Defesa, von der Leyen, como presidente da Comissão Europeia. Agora, candidata-se a um segundo mandato como spitzenkandidat escolhida pelo PPE, apesar de muitos delegados da sua família política preferirem não a apoiar.

Os líderes nacionais são ainda mais influentes quando se trata da renovação da presidência do Conselho Europeu, que reúne os vinte e sete chefes de Estado e de Governo para definir as prioridades políticas da União Europeia. Draghi parece ser uma escolha provável para este cargo, embora os seus patrocinadores prefiram não o apoiar publicamente: ações prematuras desperdiçariam as suas hipóteses.

A OTAN também vai mudar o seu secretário-geral em 2024, mais tarde do que o previsto. Não foi por acaso que o atual secretário-geral, Jens Stoltenberg, prolongou o seu mandato: a sua permanência no cargo até ao outono permitirá que as escolhas para a chefia da UE e da NATO sejam decididas em conjunto. Hoje, Rutte, que enquanto primeiro-ministro holandês se destacou como um defensor "frugal" da austeridade, apresenta-se para este papel na OTAN.

Há três datas-chave para ver quem vai liderar a UE. De 6 a 9 de junho, os europeus vão votar. A 17 de junho, uma reunião informal de chefes de governo dará início às negociações. Mas o momento não oficial para a decisão é agora: já estão a decorrer conversações acesas nos bastidores. Von der Leyen discutiu esta questão com Meloni durante a sua viagem a Itália, em janeiro. O primeiro-ministro italiano, por sua vez, falou com Macron sobre as nomeações no último Conselho Europeu. E o Presidente francês tinha negociado com Olaf Scholz alguns dias antes, aquando da sua deslocação a Berlim.

A valsa das convergências está a decorrer. O resultado está sujeito a fatores imprevistos até ao fim, mas os pressupostos neoliberais das principais figuras estão definidos. Depois de a UE e os seus líderes terem pregado a austeridade durante os anos da crise financeira, a pandemia constituiu um estímulo para aumentar a despesa pública, não para apoiar o bem-estar, mas para restaurar um sistema capitalista em crise.

Eis o cenário que está a ser trabalhado atualmente. Com a permanência de von der Leyen como presidente da Comissão, as políticas da UE serão cada vez mais favoráveis às grandes empresas. Já durante a crise pandémica, von der Leyen agiu como forte aliada da Pfizer-BioNTech, utilizando comunicações privadas (mensagens e telefonemas) com o CEO da Pfizer, Albert Bourla, para negociar um contrato de vacinas a preços mais elevados. O Ministério Público Europeu está a investigá-la por "interferência pública, destruição de SMS, corrupção e conflito de interesses". Nessa altura, a presidente da Comissão Europeia também impediu a Trips Waiver, uma isenção temporária de patentes destinada a reduzir as enormes desigualdades no acesso global às vacinas. Durante o seu atual mandato, as grandes empresas têm acesso privilegiado às decisões em Bruxelas.

Com a campanha para um segundo mandato já em curso, no outono passado, esta atitude acentuou-se, com o objetivo de atrair os principais eleitores do PPE: as grandes empresas. Em setembro, a Presidente da Comissão anunciou a nomeação de um representante da UE para as pequenas e médias empresas. Pediu também ao ex-chefe do BCE e ex-primeiro-ministro italiano, Draghi, que preparasse um relatório sobre o futuro da competitividade europeia, afirmando que "cada novo ato legislativo deveria ser objeto de um controlo da competitividade".

Depois chegou o inverno, e foi a época do agro-negócio: o Copa Cogeca, o mais forte lóbi de agricultores, e manifestantes foram recebidos com deferência em Bruxelas. Pelo contrário, os ativistas do clima foram criminalizados pelos governos europeus. O Pacto Ecológico, a única mancha de cor progressista na presidência de von der Leyen, acabou por ser esbatido em derrogações. Os planos para a política agrícola comum (PAC) da EU, cujos objetivos ecológicos foram considerados "blá blá blá" por Greta Thunberg, quase não referem questões climáticas.

No início de março, os delegados do PPE tiveram de se reunir em Bucareste para aprovar von der Leyen como a sua principal candidata. A presidente da Comissão deu-lhes uma bela prenda. Na véspera do congresso do PPE, a Comissão Europeia lançou uma "nova estratégia industrial de defesa". Este pacote legislativo é uma piscadela de olho à indústria da defesa e a Macron: o presidente francês está a exercer pressão para se injetar fundos no setor e von der Leyen vai precisar do seu apoio para ser confirmada para um segundo mandato.

No entanto, o gabinete de Macron pretende obter as melhores condições de negociação, e foi por isso que, no final de março, quando os jornalistas lhe perguntaram sobre o futuro de von der Leyen, ele disse que "a presidência da UE não deve ser hiperpolitizada: o presidente deve estar acima dos partidos". Esta declaração faz lembrar o principal argumento com que o antigo homem da Goldman Sachs e ex-chefe do BCE, Draghi, foi chamado à política italiana para se tornar primeiro-ministro. A chamada de atenção não é acidental.

Desde 2023, a comitiva de Macron considera Draghi como opção para um cargo de chefia na UE, dando-lhe primazia como presidente do Conselho Europeu. O plano é precisamente propô-lo como um nome um tanto imparcial como antigo salvador do euro e o futuro salvador de uma Europa encurralada no meio de múltiplas crises, guerras e forças de direita em ascensão.

União em nome das empresas

Fecha-se assim o círculo vicioso: depois de a austeridade e as políticas anti-sociais terem aumentado o apoio ao populismo de direita, propõe-se como remédio outra dose de neoliberalismo.

Há uma razão para que a palavra "resiliência" esteja tão na moda em Bruxelas depois de a globalização do capitalismo ter mostrado todos os seus limites. Em vez de alargar os direitos sociais, reforçar o bem-estar e redistribuir a riqueza, o número de magia de Draghi consistirá em aumentar a dívida pública da UE para ajudar as empresas. Não importa que a austeridade reduza as despesas sociais: paradoxalmente, o financiamento público pode ser utilizado sem restrições, quando ajuda os privados globais a ter um bom desempenho e o capitalismo a reconverter-se de novo.

Com o álibi de estar a preparar o relatório sobre o futuro da competitividade europeia, o "custe o que custar", como Draghi é conhecido pela sua resposta à crise da zona euro durante a década de 2010, este já está a discutir de perto com os governos europeus, a quem explica como gerir os desafios globais: com uma "enorme quantidade" de investimento, e "o dinheiro público nunca será suficiente".

Draghi e Macron, duas figuras certamente recetivas às exigências dos grandes nomes da finança e da economia mundial, partilham a ideia de uma nova dívida comum, emitida conjuntamente pelos Estados-membros da UE, segundo o modelo "Next Generation EU", desde que se sentaram juntos no Conselho Europeu, enquanto dirigentes nacionais. Nessa altura, como agora, tiveram de enfrentar as dúvidas de Berlim a este respeito.

Ao lançar a “economia de guerra” e referindo-se às “botas europeias na Ucrânia”, o presidente francês desempenhou um papel de liderança na criação de entusiasmo em torno do aumento dos gastos militares e na promoção da narrativa sobre o risco de a UE se envolver diretamente numa guerra. Esta tendência não se deve apenas ao amor de Macron pelas empresas de defesa.

É importante notar que o centro-esquerda europeu também está alinhado com este foco na indústria de defesa. No início de março, os líderes socialistas reuniram-se em Roma para o congresso europeu do partido. O chanceler alemão, Scholz, falou a favor do aumento dos gastos militares. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, também um nome na corrida à presidência do Conselho Europeu, está preparada para cortar assistência social para este fim: “A Europa deve reduzir os gastos com a assistência social para dissuadir a Rússia com aumentos prolongados do financiamento da defesa”, disse ela ao Financial Times.

Os cientistas políticos referem-se ao chamado “efeito unir em torno da bandeira” para explicar como, confrontados com a perceção de uma ameaça externa como a guerra, toda a nação se identifica com o líder e a atenção crítica é reduzida.

Não é necessária uma guerra para isso, embora a guerra esteja hoje à nossa volta. Há treze anos, em Itália, o aumento do spread (a diferença entre os rendimentos das obrigações alemãs e italianas, considerado como uma medida da confiança dos investidores em Itália) foi apresentado pelos principais meios de comunicação e pelos políticos como algo cataclísmico. Este enquadramento abriu caminho à ascensão de Mario Monti, um antigo comissário da UE, e às suas políticas de austeridade.

Já naquela altura, foi feito o apelo a um governo “técnico” (em vez de político-partidário). Na verdade, tudo menos “técnica” nas suas intervenções, a liderança de Monti foi politicamente orientada por uma bússola neoliberal, como pode ser visto nas políticas de austeridade do seu governo, incluindo uma contestada reforma das pensões. Tornando-se primeiro-ministro em 2021, Draghi foi apresentado à opinião pública italiana como um salvador que colocaria os partidos atingidos pela crise numa situação difícil. O mesmo enquadramento poderia agora ser utilizado a nível europeu: este verão, Macron talvez o descreva como o novo messias.

O esperado sucesso eleitoral da extrema-direita vai favorecer este tipo de narrativa porque proporcionará o bicho-papão, ou dito de outra forma, uma “ameaça” que favorece o efeito da união em torno da bandeira. Mas este é um jogo em que cada lado desempenha o seu papel: quando se trata de políticas neoliberais, a extrema-direita e os principais partidos estão na mesma página.

O desmantelamento do cordão sanitário foi desencadeado pelo Partido Popular Europeu há três anos, quando iniciou uma aliança tática com Meloni. Esta cooperação baseia-se principalmente numa atitude neoliberal comum. A primeira-ministra de Itália vai além do laissez-faire: diz frequentemente que o Estado “não deve incomodar aqueles que têm negócios”. Depois de incluir num decreto um escudo criminal para evasores fiscais, durante uma viagem à Sicília, Meloni referiu-se à luta contra a evasão fiscal por parte dos lojistas como um caso de pizzo di stato: isto é, comparou os impostos a uma rede mafiosa imposta pelo Estado. Embora a extrema-direita demonstre simpatia pelos evasores fiscais, nenhuma simpatia vai para aqueles que estão no lado mais difícil da situação. Meloni aboliu o chamado “reddito di cittadinanza”, uma rede de segurança social que beneficiava grupos vulneráveis, e aproveitou o Dia Internacional dos Trabalhadores para emitir um decreto que reduz ainda mais as restrições aos contratos precários.

Em fevereiro, no Parlamento Europeu, o Reconquête, o partido xenófobo e islamofóbico francês liderado por Éric Zemmour e Marion Maréchal, juntou-se ao grupo Conservadores e Reformistas Europeus (ECR) de Meloni, que é uma ponte para o PPE. Isto é apenas aparentemente paradoxal. Embora seja a força de extrema-direita na política eleitoral francesa, o partido de Zemmour “tem uma abordagem neoliberal e explora um processo de radicalização da burguesia”, diz Jean-Yves Camus, um dos principais especialistas em extrema-direita francesa.

Apesar da retórica de líderes como Macron e Weber, que ainda dedicam palavras inflamadas contra a ameaça da extrema-direita, foram eles que a normalizaram. A perspetiva neoliberal é o traço de união que os une. Imediatamente após as eleições de junho, a extrema-direita irá fornecer aos auto-denominados centristas um álibi perfeito para desviar a UE numa direção ainda mais neoliberal. Será um apelo à “união em torno das grandes empresas” que a política europeia serve cada vez mais.

Colaborador

Francesca De Benedetti cobre assuntos europeus para o Domani e escreve colunas sobre política europeia para a Vanity Fair. É co-fundadora do boletim informativo European Focus. Os seus textos sobre a política italiana têm sido publicados pelo Libération, Balkan Insight, International Press Institute e outras publicações internacionais.

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