Ato no Rio, há 40 anos, foi considerado o maior do país até aquele momento e reuniu de Sobral Pinto a Xuxa, além de rivais políticos
Italo Nogueira
Horas antes do início oficial do ato da campanha das Diretas Já marcado para a Candelária, no centro do Rio de Janeiro, há exatos 40 anos, o então governador Leonel Brizola (PDT) subiu ao palanque para checar os preparativos.
Do alto, avistou próximo ao palanque uma faixa de cerca de 30 metros com a defesa de uma greve geral para o dia 25 de abril de 1984, data em que estava marcada a votação da emenda à Constituição para o retorno da eleição direta no país.
Ao microfone, Brizola tentou por três vezes convencer os militantes do Alicerce da Juventude Socialista a retirar a faixa. Na quarta, insuflou apoiadores a rasgar o material. O grupo recebeu apoio da Polícia Militar.
Comício pelas Diretas Já em frente à Igreja de Nossa Senhora da Candelária, no Rio de Janeiro, no dia 10 de abril de 1984 - Folhapress |
O episódio resume as tensões externas e internas à campanha que cercaram o comício que transformou as Diretas Já num "monstro" que surpreendeu até políticos experientes que a organizaram. "O que preocupa é saber como vamos administrar isto que está aí. Creio que se está criando um fato desgastante para o governo", disse o então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, após o ato.
O comício na Candelária reuniu centenas de milhares de pessoas no centro do Rio de Janeiro em favor da emenda proposta pelo deputado Dante de Oliveira pela votação direta para presidente da República. Os organizadores falaram em um público de mais de 1 milhão, mas é bastante provável que esse número tenha sido superestimado.
De qualquer forma, o ato foi considerado o maior da história do país até aquele momento.
A avenida Presidente Vargas já estava lotada antes do início, previsto para 16h. Nas palavras do jornalista Ricardo Kotscho, em texto publicado no dia seguinte na Folha, "o Brasil já não era o mesmo antes do primeiro discurso do primeiro líder nacional".
O encontro juntou os juristas Sobral Pinto e Afonso Arinos, quatro governadores, políticos de diferentes espectros políticos e artista que iam de Xuxa a Chico Buarque, passando por Fafá de Belém, Erasmo Carlos e Milton Nascimento.
Fafá de Belém solta pomba no comício da Candelária, no Rio; a cantora repetiria o gesto nos eventos seguintes - Sebastião Marinho/Agência O Globo |
O clima de festa ficou por conta de diferentes blocos que tocavam marchinhas de Carnaval nas esquinas em que a multidão se concentrou. Um canhão de raio laser projetava num balão suspenso atrás do palanque o nome dos 52 oradores à medida que subiam no púlpito para falar à multidão, intercalados por palavras de ordem.
Ônibus e a barca Rio-Niterói eram gratuitos, o que ajudou a lotar a avenida Presidente Vargas. O preço do cachorro-quente, porém, subiu ao longo do comício: de Cr$ 350 para Cr$ 800, com fila, após os discursos.
O país ainda vivia a ditadura militar, mas experimentava a abertura política. Novos partidos já tinham recebido autorização para serem criados e, dois anos antes, nomes da oposição haviam vencido eleições para governador nos principais estados.
A eleição direta para presidente, no entanto, não estava no horizonte próximo. O último presidente da ditadura, general João Figueiredo, defendia o pleito indireto, pelo Colégio Eleitoral, em 1985.
A emenda Dante de Oliveira foi apresentada em março de 1983. A campanha pela sua aprovação foi ganhando força política ao longo daquele ano, mas recebeu apoio popular mais expressivo a partir do início do seguinte. O primeiro grande comício ocorreu em 25 de janeiro de 1984 na praça da Sé, em São Paulo.
Brizola tomou a frente da organização do ato previsto para o Rio de Janeiro. A primeira data firmada era 21 de março, mas o então governador decidiu adiá-lo para 10 de abril.
A primeira tensão foi exposta nesse momento. O PT e outros partidos de esquerda decidiram manter o ato do dia 21. Brizola acompanhou a movimentação do hospital, onde se recuperava de uma crise renal.
Na passeata de 21 de março, Lula falou em discurso sobre a situação dos camelôs. O tema foi visto por Brizola como uma crítica a seu governo. Os dois já travavam uma disputa pelo papel de liderança de esquerda na futura democracia brasileira.
Nas vésperas do comício de 10 de abril, Brizola alertou que acompanharia o discurso de Lula com outro microfone nas mãos. A intenção era interrompê-lo em caso de falas consideradas ofensivas ao seu governo. O petista respondeu: "Quem vai nos vigiar são todas as pessoas que estiverem nas ruas".
"O Lula estava com um discurso radicalizado nessa época, até para se diferenciar das demais lideranças [de esquerda]. Esse confronto já estava ali", lembrou Vivaldo Barbosa, à época secretário de Justiça no governo Brizola.
Vivaldo conta que uma preocupação de Brizola durante a organização do comício era evitar ampliar as tensões com os militares. Por essa razão, o governador procurou dificultar a participação dos partidos comunistas, ainda clandestinos —só retornariam à legalidade em 1985.
Em seu discurso, ele buscou desvincular o comício das bandeiras vermelhas em meio à multidão. Brizola referiu-se a "certos relatórios" que falariam, segundo ele, da presença na manifestação de partidos não legalizados. "O povo do Rio de Janeiro repele estas insinuações. O que prevalece nesta manifestação é o verde e amarelo de nossa bandeira."
O veto foi objeto de crítica de Luiz Carlos Prestes, que se recusou a participar do comício —ele havia ido a outros atos da Diretas. "Deixei de ir por uma razão bem simples, que é a de não concordar com a conotação anticomunista que o Brizola deu ao comício, proibindo espaços aos partidos clandestinos."
Segundo Vivaldo, o objetivo era também não entrar em confronto com o setor conservador, que começou a aderir à campanha. "Havia muita gente favorável que não era de esquerda."
Apesar das preocupações, lideranças das siglas clandestinas acabaram autorizadas a subir no palanque. Carlos Alberto Muniz, à época presidente do PCB-RJ, disse que Brizola sempre teve "implicância com organizações clandestinas", mas que mantinha diálogo com esses grupos.
"Prestes tinha uma posição esquerdista. Ele foi mais para demarcação de posição antiparlamentar. Olhava para nós como se fôssemos iludidos. Mas nós achávamos que o principal era organizar grandes mobilizações para chegar a um patamar de avanço maiores", afirmou Muniz.
Vivaldo afirma que havia também a preocupação com a presença de provocadores dentro do ato com o objetivo de gerar tumultos que afetariam a campanha das Diretas.
Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola durante comício pelas eleições diretas em Porto Alegre em 13 de abril de 1984 - Achutti/Photon |
O comício, no entanto, terminou sem intercorrências. Lula e Brizola discursaram sem alfinetadas. Coube a Sobral Pinto, aos 90 anos, emocionar a multidão ao falar com a voz já marcada pela idade trecho do artigo 1º da Constituição: "Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido".
A cobertura da TV Globo, até então distante da campanha, começou nesse comício, ampliando o alcance da mobilização pelo país. Jornalistas entraram ao vivo ao longo da programação para relatar a movimentação e os discursos. A novela "Champanhe" foi interrompida para transmissão da última fala, de Brizola.
O único episódio violento se resumiu ao ataque a um boneco gigante que representava o ministro Delfim Netto. A alegoria havia sido usada no desfile da Mangueira naquele ano e foi comprada por um manifestante.
"A gente não estava acostumado a ver manifestações tão grandes. Essa passagem da história foi um jogo de expectativa, animação e frustração, com a derrota da emenda depois", disse a historiadora Maria Paula Araújo.
"Essa frente que se consagrou nas Diretas foi, aos poucos, se desmantelando e deu nas polarizações. Essa campanha é um exemplo para voltarmos a pensar em frentes não apenas eleitorais, mas com conteúdo político."
Alguns políticos encerraram a noite acompanhados de Brizola no Scala, casa noturna que realizava apresentações de Carnaval.
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