19 de julho de 2025

Democracia sempre

A história nos demonstrou repetidamente que a democracia é o melhor caminho para garantir a paz, a coesão social e as oportunidades para todos

Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República

Gabriel Boric Font
presidente da República do Chile

Pedro Sánchez Pérez-Castejón
presidente do Governo da Espanha

Yamandú Orsi Martínez
presidente da República Oriental do Uruguai

Gustavo Petro Urrego
presidente da República da Colômbia

Folha de S.Paulo

Em diferentes partes do mundo, a democracia enfrenta um momento de grandes desafios. A erosão das instituições, o avanço dos discursos autoritários impulsionados por diferentes setores políticos e o crescente desinteresse dos cidadãos são sintomas de um mal-estar profundo em amplos setores da sociedade. A isso se somam as persistentes desigualdades, o retrocesso nos direitos fundamentais, a disseminação da desinformação e de discursos de ódio em plataformas digitais e a expansão de redes criminosas que desafiam a legitimidade do Estado.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, e o presidente brasileiro, Lula, em declaração à imprensa, no Palácio do Planalto; governos do Chile, Brasil, Espanha, Uruguai e Colômbia participam da Reunião de Alto Nível "Democracia Sempre", em Santiago, no próximo dia 21 - Pedro Ladeira - 22.abr.25/Folhapress

Diante desse cenário, não cabe o imobilismo nem o medo. Defendemos a esperança. Em um mundo cada vez mais polarizado, como líderes progressistas temos o dever de agir com convicção e responsabilidade frente àqueles que pretendem enfraquecer a democracia e suas instituições. Porque não basta evocar a democracia nem falar em seu nome: devemos fortalecê-la, renová-la e torná-la significativa para aqueles que sentem suas promessas não cumpridas. É com mais democracia que criaremos mais oportunidades para as gerações futuras, e como melhor nos adaptaremos aos desafios globais impostos pela inteligência artificial ou a mudança do clima. Resolver os problemas da democracia com mais democracia, sempre.

Esse é o princípio que convoca os governos do Chile, Brasil, Espanha, Uruguai e Colômbia à Reunião de Alto Nível "Democracia Sempre", a ser realizada em Santiago no próximo dia 21 de julho.

Esse esforço compartilhado não é apenas a continuação do encontro impulsionado pelos governos do Brasil e da Espanha durante a Assembleia Geral das Nações Unidas no ano passado, mas dá um passo adiante. Porque, longe de ser um gesto isolado ou simbólico, é uma iniciativa que busca defender a democracia como um bem comum.

Sabemos que as democracias não se constroem apenas a partir dos governos. Construir propostas conjuntas e eficazes que fortaleçam a coesão social, a participação cidadã e a confiança nas instituições é um trabalho que não pode se limitar a cartas de boas intenções ou recair apenas sobre os governos de turno e seus representantes. Por isso, essa iniciativa também convoca organizações sociais, centros de pensamento, juventudes e diversos atores da sociedade civil, porque sua participação e ação são fundamentais para que a democracia recupere sua capacidade transformadora.

Sabemos também que defender a democracia exige que sejamos capazes de condenar as derivas autoritárias e, ao mesmo tempo, falar de forma positiva, propondo reformas estruturais para enfrentar a desigualdade em nossos países e no mundo. A história nos demonstrou repetidamente que a democracia é o melhor caminho possível para garantir a paz e a coesão social, e as oportunidades para todos. Impulsionar estratégias comuns em favor do multilateralismo, do desenvolvimento sustentável, da justiça social e dos direitos humanos é um imperativo ético e político. Porque a democracia é frágil se não for cuidada.

Hoje nos reúne a certeza compartilhada da necessidade de melhorar a resposta do Estado às demandas de nossos povos e governar com eficácia, com justiça, com direitos. Com democracia, sempre. E com a convicção de que defender a democracia nestes tempos difíceis não é apenas resistir e proteger, mas propor e seguir avançando. Essa é a tarefa urgente do nosso tempo.

A comunidade justa: Legados da Guerra ao Terror

Assim que os EUA se tornaram a única superpotência mundial, as fantasias universalistas proliferaram. Mas, após o 11 de Setembro, elas se ampliaram, se intensificaram e se solidificaram em um novo consenso. Os formuladores de políticas de Washington e seus estenógrafos da mídia passaram a ver a guerra sem fim como uma condição normal e o mundo como um campo de batalha onde confrontos moralmente carregados poderiam ser encenados repetidamente, talvez para sempre.

Jackson Lears

London Review of Books

Vol. 47 No. 13 · 24 July 2025

Homeland: The War on Terror in American Life
por Richard Beck
Verso, 556 pp., £ 30, março, 978 1 83674 072 8

Seis semanas após o presidente George W. Bush lançar o que a Casa Branca chamou de Guerra Global contra o Terror, em outubro de 2001, o jornalista Bob Woodward perguntou ao vice-presidente, Dick Cheney, quando a guerra terminaria. "Não enquanto vivermos", disse Cheney. É possível imaginar seu sorriso irônico mal contido, um tique facial familiar em entrevistas. Cheney, e por implicação "nós", embarcamos em uma guerra que duraria mais que nossas vidas – uma guerra sem fim. Para um membro dos "vulcanos", o círculo de política externa de Bush, comprometido em expandir a hegemonia dos EUA por meio de constantes aventuras imperiais, o que poderia ser mais emocionante do que uma guerra perpétua contra um inimigo elusivo, mutante e frequentemente invisível?

Agora, quase um quarto de século depois, o sonho molhado de um militarista envelhecido tornou-se uma força fundamental que impulsiona a política externa americana. Isso não deveria ser surpresa, dado o papel central de Cheney na criação de um estado de guerra permanente. O clichê da mídia de que o 11 de Setembro "mudou tudo" ofereceu uma desculpa conveniente para violações sem precedentes de princípios constitucionais fundamentais – a expansão desenfreada do poder executivo, o total desrespeito ao habeas corpus e aos direitos dos réus em geral, a vigilância em massa sem mandado de milhões de cidadãos e a legitimação da tortura como tática militar. Para os combatentes do terror, a Declaração de Direitos havia se tornado "antiquada", como disse o procurador-geral de Bush, Alberto Gonzales, sobre as Convenções de Genebra.

A histeria provocada pelos ataques ao World Trade Center criou uma oportunidade para Cheney e seus camaradas ideológicos arquitetarem o que equivalia a um golpe de Estado. Em colaboração com a ala Clinton do Partido Democrata, eles moldaram um consenso de política externa em Washington, comprometido com a intervenção armada no exterior, aberta ou secreta, em qualquer lugar que as agências de inteligência dos EUA decidissem que os interesses americanos estavam de alguma forma em jogo. O que antes havia sido mantido oculto agora era exibido publicamente, à medida que as doutrinas de mudança de regime e guerra preventiva recebiam séria consideração no New York Times e no Washington Post. "Tudo mudou" era o mantra perfeito para um establishment de segurança nacional que visava mudar tudo – liberando o poder executivo das restrições constitucionais e definindo seu alcance como ilimitado.

A base para essa agenda havia sido lançada durante a Guerra Fria e construída na década de 1990, naquele inebriante momento unipolar. Os assessores vulcanos de Bush, o filho, liderados por Cheney, vinham tramando uma política externa mais agressiva desde que Bush, o pai, frustrou suas esperanças ao não tomar Bagdá em 1991. Os democratas de Clinton, por sua vez, ansiavam por envolvimento no exterior onde quer que pudessem encontrar ou inventar uma população ameaçada pela tirania. Assim que os EUA se tornaram a única superpotência mundial, as fantasias universalistas proliferaram. Mas, após o 11 de Setembro, elas se ampliaram, se intensificaram e se solidificaram em um novo consenso. Os formuladores de políticas de Washington e seus estenógrafos da mídia passaram a encarar a guerra sem fim como uma condição normal, e o mundo como um campo de batalha onde confrontos moralmente carregados poderiam ser encenados repetidamente, talvez para sempre.

Essa visão aterrorizante originou-se de um pequeno grupo de intelectuais cujo sistema de crenças teria sido considerado imprudente mesmo no auge da Guerra Fria – de fato, foi essa visão de mundo que condenou Barry Goldwater a uma derrota esmagadora para Lyndon Johnson em 1964. Mas, eventualmente, ela se infiltrou no círculo vicioso, passando a ser considerada uma opinião responsável e abarcando o Partido Democrata ainda mais profundamente do que os Republicanos.

Durante as semanas, meses e anos após a queda das torres, à medida que o medo e a raiva se espalhavam pelo corpo político, hábitos mentais perturbadores se arraigaram no debate político. O mais corrosivo foi a rejeição ao próprio debate, que passou a ser visto como uma traição à unidade nacional. Segundo a visão oficial, o pensamento independente era o passatempo patético de alguns forasteiros como Susan Sontag, que teve a ousadia de perguntar: "Onde está o reconhecimento de que este não foi um ataque 'covarde' à 'civilização', à 'liberdade', à 'humanidade' ou ao 'mundo livre', mas um ataque à autoproclamada superpotência mundial, empreendido como consequência de alianças e ações americanas específicas?". O simples fato de levantar a questão levou Sontag a ser denunciada como apologista do terrorismo.

"Terrorismo": a palavra adquiriu o poder mágico de interromper qualquer discussão, na verdade, qualquer pensamento, instantaneamente. No imaginário público, o terrorismo era próximo da barbárie – um casamento santificado por uma islamofobia implicitamente racista (o termo é inadequado, visto que se concentra no medo, excluindo o desprezo e a raiva). A obsessão em exterminar terroristas teve consequências calamitosas para a política externa dos EUA. A diplomacia estava fora de questão quando se lidava com selvagens assassinos — que é o que os terroristas eram por definição — e qualquer interpretação política de atos terroristas além de "eles odeiam nossa liberdade" traía a cumplicidade do intérprete.

A equipe de Bush fez o possível para elevar seus motivos acima da mera vingança, utilizando a retórica da "liderança global". Nesse idioma exaltado, eliminar terroristas e derrubar governos suspeitos de abrigá-los eram os primeiros passos de um projeto maior: a disseminação global da democracia ao estilo americano, que, em última análise, significaria o triunfo da civilização sobre a barbárie em todo o mundo. A "promoção da democracia" no exterior tornou-se um objetivo declarado da política externa dos EUA.

Essa é a sensibilidade – uma mistura de repulsa visceral, raiva justificada e moralismo sentimental – que a guerra contra o terror legou aos formuladores de política externa americanos de ambos os lados, moldando suas percepções sobre todos os inimigos fabricados pelo Estado de segurança nacional desde o colapso da União Soviética. A mídia colaborou com esse projeto personalizando ameaças projetadas, demonizando adversários estrangeiros, transformando-os em vilões de histórias em quadrinhos. Por trás dessas figuras monstruosas, escondem-se hordas subumanas, cuja ameaça pode ser evocada pelas palavras mágicas "Rússia" ou "Hamas". Essa imagem caricatural do mundo floresceu nas décadas que se seguiram ao 11 de Setembro – nunca de forma tão flagrante quanto na atual tentativa americana e israelense de justificar a guerra genocida de Israel em Gaza. O grande crime de guerra impune de nosso tempo é produto da guerra contra o terror; israelenses que descendem de sobreviventes de um holocausto agora estão criando outro.

Homeland, de Richard Beck, fornece abundante matéria para contemplação. Ele reconstrói com destreza o golpe de Estado que se desenrolou nos corredores do poder após o 11 de Setembro, mas também explora os recantos mais obscuros da psique americana: o sadismo vicário; a certeza moral maniqueísta; e a crença, profundamente enraizada na história cultural americana, de que tudo se justifica em uma guerra contra bárbaros. A carta branca do Congresso para o ataque de Bush à Declaração de Direitos foi um passo rumo à ovação de pé pela limpeza étnica de Gaza promovida por Netanyahu. Homeland também aborda o momento histórico atual.


Beck reconhece que compreender a guerra contra o terror exige um alcance interpretativo mais amplo do que o idioma convencional da política de poder pode abranger. Ele utiliza fontes literárias para reconstruir o encontro arquetípico com o outro de pele escura. Seu guia é Richard Slotkin, cujo livro "Regeneration through Violence: The Mythology of the American Frontier, 1600-1860", publicado pela primeira vez em 1973, ilumina a fúria assassina há muito oculta nos livros didáticos de história dos EUA por frases anódinas como "expansão para o oeste".

No entanto, a ideia da fronteira mítica, por mais importante que seja, não captura todos os aspectos da guerra contra o terror: sua intensidade religiosa, por exemplo, ou a resistência dos guerreiros em aprender com seus repetidos fracassos. Esse tipo de guerra não se baseia em uma avaliação razoável das evidências: está enraizado em um sistema de crenças baseado na fé – uma perspectiva fomentada pelo protestantismo evangélico durante grande parte da história dos EUA, mas agora desvinculada de suas amarras teológicas e sobrevivendo, até mesmo florescendo, entre todos os tipos de americanos, incluindo muitos que nunca estiveram em uma igreja. Desde que os reavivamentos evangélicos varreram o país no século XIX, a história americana tem sido animada por esforços para imaginar a rede local de crentes como uma comunidade justa – uma comunidade que eventualmente se expandirá para toda a nação, talvez para o mundo. Ao mesmo tempo, essas comunidades são assombradas pelo medo de se afastarem da retidão. Ondas de preocupação com o declínio moral também periodicamente inundavam a classe política, mobilizando seus membros a se dedicarem novamente ao seu propósito missionário coletivo.

O ideal de uma comunidade justa deixava pouco espaço para incerteza moral: ou se era incluído ou excluído, salvo ou condenado. Os fiéis tinham um ar de expectativa milenarista, animados, porém ansiosos, aguardando o retorno do Messias – ou, na versão judaica, sua primeira vinda. Tanto na tradição judaica quanto na cristã, o motivo da espera pelo Messias prepara o cenário moral para uma gama de possibilidades: desde a retirada do mundo até a construção de um mundo melhor para o Messias habitar, como no protestantismo do Evangelho Social e no judaísmo reformista. Essa tradição reforçou um poderoso ethos social-democrata, mas também abriu caminho para um terreno emocional ocupado conjuntamente por israelenses de extrema direita e sionistas cristãos. A mistura de esperança e ansiedade, o clima de expectativa tensa, a espera interminável (talvez impaciente), tudo intensificado pela necessidade de reafirmar a justiça comunitária por meio do compromisso missionário: essa sensibilidade compartilhada também intensificou o anseio por conquistas dentro da liderança de Israel e entre seus defensores americanos. Há muitas razões pelas quais a febre da guerra se alastrou descontroladamente, como Homeland demonstra brilhantemente, mas a visão de mundo milenarista contribuiu para desencadear a conflagração. De que outra forma podemos explicar a compulsão de repetir estratégias fracassadas vez após vez, e muito menos a disposição de destruir o mundo inteiro, inclusive a si mesmo, para cumprir o que se acredita ser um propósito divino?


Beck começa observando que, para a maioria dos americanos, a experiência primordial dos ataques de 11 de setembro foi assistir à queda das torres repetidas vezes no noticiário da televisão. "A verdade emocional da situação", escreve Beck, era "uma sensação de total desamparo, de que não havia nada que alguém pudesse fazer". Era como assistir a um filme-catástrofe de Hollywood. Mas era real. A inquietante sensação de impotência era profunda. A necessidade desesperada de encontrar exemplos de atuação eficaz concentrava-se nos socorristas, especialmente nos bombeiros. O público da TV não percebeu que os próprios bombeiros muitas vezes estavam desamparados e que a maioria das pessoas que escapavam o fazia por conta própria. O socorrista tornou-se um herói cultural instantâneo — um dos muitos que emergiram, literal ou metaforicamente, das ruínas do World Trade Center.

Como Beck reconhece, tanto a política pós-11 de Setembro quanto a cultura popular estavam enraizadas naquele trauma coletivo de espectadores impotentes. Ele cita a pergunta feita por Susan Faludi em The Terror Dream (2007): e se o "legado psicológico mais profundo" da guerra contra o terror não fosse "o prazer que agora sentimos com a dominação, mas a vergonha original que a dominação busca desesperadamente esconder"? Como escreve Beck, as pessoas fazem "esforços extraordinários" para evitar sentir vergonha. "Elas se esquivam, atacam, racionalizam ou se perdem em histeria. Começam lutas que não conseguem vencer, buscam desesperadamente por inimigos ocultos em seu meio e veem o mundo ao seu redor como repleto de ameaças potenciais." A última frase captura a lama autodestrutiva e bipartidária que é a política de segurança nacional dos EUA no século XXI.

Beck pretende explicar a origem da vergonha. Seguindo Slotkin, ele explora as raízes mais profundas da guerra americana nas narrativas de cativeiro colonial e nos contos de caçadores heroicos. A maioria das narrativas de cativeiro foi escrita por colonas inglesas que foram feitas prisioneiras por indígenas, depois resgatadas e trazidas de volta à "civilização"; como diz Beck, esses contos "converteram experiências reais e traumáticas em parábolas de provação e redenção". As cativas retornaram com um compromisso renovado (embora às vezes ambivalente) com sua própria comunidade justa e sua superioridade sobre os selvagens que as cercavam. Mas algumas delas ainda permaneciam acordadas à noite, como Mary Rowlandson, refletindo sobre seus tormentos passados e "a terrível dispensação do Senhor para conosco".

Uma versão higienizada da narrativa de cativeiro, despojada das reflexões de Rowlandson, tornou-se a história oficial da América pós-11 de setembro, conforme construída por seus líderes: o povo americano seria libertado de sua vulnerabilidade indefesa ao se alistar em uma Guerra Global contra o Terror. Os terroristas, assim como os habitantes indígenas da América do Norte, seriam derrotados por heróis caçadores americanos, fictícios e históricos: figuras como Daniel Boone, Natty Bumppo e Davy Crockett – homens brancos que substituíram as mulheres cativas como protagonistas na mitologia da fronteira em desenvolvimento. Nas histórias de heróis caçadores, "a violência é o único remédio para a humilhação, o medo e o trauma, e será administrada em qualquer quantidade necessária para varrer o inimigo da face da Terra", como escreve Beck. Os heróis caçadores não tinham medo de quebrar regras: isso os tornou especialmente atraentes na atmosfera pós-11 de setembro, repleta de conversas portentosas sobre quais regras seriam necessárias quebrar em busca de vingança. Em um mundo governado pela mitologia da fronteira, para triunfar sobre a barbárie era necessário lutar como bárbaros.

Os líderes americanos abriram caminho para essa conclusão ao afirmarem desde o início que a guerra contra o terror não seria uma guerra convencional. Não seria sequer uma guerra de guerrilha convencional, como a travada contra o Viet Cong, que tinha queixas e objetivos bem definidos. Como disse o secretário de Estado de Bush, Colin Powell: "O inimigo está em muitos lugares. O inimigo não quer ser encontrado. O inimigo está escondido. O inimigo está, muitas vezes, aqui mesmo, dentro do nosso próprio país." Tais comentários alimentavam uma atmosfera de pesadelo de crise permanente e inescapável, com inimigos misteriosos em todos os lugares e em lugar nenhum.

O tom e a essência dominantes da política externa americana mudaram da noite para o dia. Em debates com Al Gore durante a campanha presidencial de 2000, Bush se apresentou como um moderado em política externa, repudiando a "construção da nação" e expressando preocupação com o excesso de forças americanas no exterior. Tudo isso era consistente com um momento em que, nas palavras de Beck, "os grandes nomes da política externa entendiam o papel do país como privilegiado, mas essencialmente gerencial": disciplinar Estados desonestos quando estes saíam da linha, como Saddam fez quando invadiu o Kuwait; mantendo as rodas do capital global girando por meio de instituições como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio.

Mas quando o jovem Bush assumiu o cargo, nomeou assessores de política externa que tinham uma visão menos otimista da situação dos Estados Unidos no mundo. O gabinete de guerra de Bush e sua equipe de apoio não viam nada além de "ameaças crescentes à paz americana estabelecida no fim da Guerra Fria", como Robert Kagan, ex-funcionário do Departamento de Estado durante o governo Reagan, e William Kristol, editor do Weekly Standard, escreveram em uma coletânea de ensaios intitulada "Perigos Presentes: Crise e Oportunidade na Política Externa e de Defesa Americana", publicada em 2000, ano eleitoral. "Perigos Presentes" foi um texto original do pensamento neoconservador. Para esses formuladores de políticas temerosos e truculentos, era quase como se as torres já tivessem caído.

Sua truculência temerosa moldou fundamentalmente a ideologia da equipe de Bush, que os especialistas descreviam como "neoconservadora" bem antes do 11 de Setembro. Entre os principais ideólogos neoconservadores estavam Richard Perle (assessor de Donald Rumsfeld), Paul Wolfowitz (secretário adjunto de Defesa) e Elliott Abrams (diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional). Todos esses homens contribuíram para "Perigos Presentes". O livro foi um modelo para a política externa dos EUA, que seria caracterizada por medos e fantasias neoconservadoras pelos próximos 25 anos. Enquanto escrevo, enfrentamos as consequências do envolvimento direto dos EUA na invasão não provocada do Irã por Israel; um cessar-fogo está em vigor, mas como as hostilidades se desenrolarão ainda está para ser visto. Todos os velhos argumentos a favor da mudança de regime (ou do colapso no caos) estão sendo descartados, como aconteceu duas décadas atrás, na preparação para a Guerra do Iraque. Neste ponto, hábitos mentais milenares parecem inevitavelmente presentes. Fazer a vontade de Deus muitas vezes exige fazer a mesma coisa repetidamente, como a seita milerita demonstrou na década de 1840: quando suas previsões sobre o fim do mundo continuavam errando o alvo, eles simplesmente continuavam remarcando.

A captura do discurso público americano por uma seita milenarista restrita merece alguma explicação – especialmente porque o compromisso da seita com a guerra eterna está em forte desacordo com a opinião pública americana e as aventuras imperiais apoiadas por sectários têm se mostrado confiavelmente calamitosas. Apesar disso, uma mentalidade militante floresceu na mídia e nos círculos governamentais. Na tipologia de Max Weber, a seita tornou-se uma igreja – à vontade com riqueza e poder, governada por Padres da Igreja que aprenderam casuística geopolítica como diretores de agências de inteligência dos EUA, o lar institucional dos neoconservadores.

Em retrospecto, este golpe de Estado, prolongado e expandido desde os anos Bush, é ao mesmo tempo previsível e intrigante. Não é de surpreender que um quadro milenarista, animado por uma ideologia militarista raivosa que lembrava os reacionários da Guerra Fria, pudesse migrar das margens para o centro do Partido Republicano: Reagan havia pavimentado o caminho ao domesticar o militarismo em sua visão radiante de Frank Capra de nacionalidade e masculinidade virtuosas. O notável é que essa mesma ideologia, adornada com alguns cosméticos identitários, também conquistaria o Partido Democrata. Sob o governo clintoniano, os democratas podiam embarcar no aventureirismo imperial com a mesma avidez que os republicanos, especialmente se a aventura fosse conduzida em uma atmosfera estimulante de urgência moral. Foi assim que o consenso da política externa de Washington se reformulou para se conformar à ortodoxia emergente. Como isso aconteceu de forma tão rápida e completa? A possibilidade pouco explorada continua sendo a importância da sensibilidade milenarista – impaciente com a espera, ansiosa e temerosa, mas ávida por um conflito apocalíptico com um inimigo selvagem.

Esperar pelo Messias acaba se assemelhando muito a esperar pelos bárbaros. No grande romance de J.M. Coetzee, grande parte do tempo no posto avançado imperial é gasto à espera de um evento apocalíptico, um confronto com os bárbaros que devem ser obliterados pelo avanço do império. Para aqueles no assentamento da fronteira, nenhum outro resultado é considerado possível, até que os patéticos remanescentes da força expedicionária do império começam a recuar. Como o Estado imperial em Esperando pelos Bárbaros, os EUA e Israel estão convencidos de seu status exaltado como Nações Escolhidas; seus líderes estão embriagados por fantasias excepcionalistas e comprometidos em conquistar populações que consideram inferiores.

A ascendência do pensamento neoconservador em Washington ajuda a explicar por que partes de Present Dangers parecem consistentes com o que agora passa por pensamento ousado entre os convivas do Cosmos Club. Em sua contribuição, por exemplo, Elliott Abrams atacou o "otimismo ingênuo" da busca de Bush I e Clinton por um acordo de paz no Oriente Médio. A alternativa de Abrams era rejeitar soluções diplomáticas e, em vez disso, concentrar-se em buscar a segurança de Israel por meio da dominação militar de inimigos reais e potenciais em toda a região. Isso agora se tornou uma justificativa declarada para o genocídio de Israel em Gaza. O que antes era uma fantasia sionista reacionária (a "ruptura total" com a diplomacia ao estilo de Oslo) tornou-se uma parte respeitável do discurso público. Israel desempenhou um papel importante na virada neoconservadora da política externa americana. Ninguém pode desconsiderar o papel de seus lobistas na construção de apoio para o que antes seria considerado um aventureirismo extremo e perigoso em política externa. Mas o lobby israelense jamais poderia ter feito o trabalho sozinho.

O que realmente levou os neoconservadores ao topo foi o 11 de Setembro. Quem sabe como teriam se saído se as torres nunca tivessem caído? Eles enfrentaram oposição substancial, inclusive de dentro do próprio partido. "Mas, como o 11 de Setembro aconteceu, eles conseguiram concretizar sua visão na maior escala possível, de uma só vez", como observa Beck. A belicosidade estridente dos neoconservadores se adequava perfeitamente ao clima pós-11 de Setembro, que infundiu fúria messiânica no papel gerencial dos Estados Unidos. O mundo seria limpo de terroristas; haveria tolerância zero para tais vermes – assim como na guerra às drogas de Reagan. Quais objetivos de guerra poderiam fornecer melhor as certezas morais que os americanos (ou pelo menos sua classe política) almejavam, após as ambiguidades e mentiras do Vietnã?

No entanto, os neoconservadores sabiam que a população americana permanecia cautelosa com aventuras no exterior e intolerante a guerras estrangeiras com baixas em massa, e não havia mais um serviço militar obrigatório para forçá-los a vestir uniforme. Lutar uma guerra no exterior exigia não apenas a dependência de uma mídia condescendente para fabricar consentimento, mas também o uso de uma força de combate menor e mais móvel. As Forças Especiais se encaixavam nesse perfil, adicionando o apelo duplo do sigilo e da hipermasculinidade. Eram as reencarnações atuais dos heróis caçadores da mitologia da fronteira – "espécimes físicos impressionantes" (nas palavras de Beck), livres das convenções burguesas, ousados o suficiente para quebrar as regras quando necessário (o que, em uma guerra contra o terror, acontecia praticamente o tempo todo). Após o fim do recrutamento, tornaram-se "a coisa mais próxima que o país tem de uma classe santificada". Não é de se admirar que, quando o Departamento de Defesa assinou contrato para consultoria com cineastas de Hollywood, os contratados do governo tenham feito mais do que fornecer conhecimento especializado em armamento, assumindo com entusiasmo o papel de roteiristas – e removendo qualquer coisa que remotamente se assemelhasse a críticas às Forças Armadas dos EUA.


Contradictory​ messages streamed from Washington in the days following the attacks. They ‘changed everything’ and changed nothing. From the outset, Bush and his staff advised Americans to go to work, go shopping, take the whole family to Disney World. If you alter your daily routine, especially if you stop having fun, then (the refrain went) ‘the terrorists will have already won.’ As late as 2015, Obama was still striking the same chord: ‘We cannot give them the victory of changing how we go about living our lives.’

An atmosphere of strain, a willed normality, pervaded everyday life. While it may have been ‘comforting to shop’, as Beck says, what was sold was also part of the story. Gun sales shot up, and so did sales of SUVs – people felt safer sitting up high. Time magazine, finger on the American pulse as always, noted the transformation of the soccer mom into the ‘security mom’: ‘Her civil liberties seem less important to her than they used to, especially compared with keeping her children safe.’ This sociological fantasy legitimated the false choice between abstract ‘civil liberties’ and the innocent bystanders strapped into the back seat of the Range Rover – the sort of choice that greenlit the coup that was unfolding in Washington.

The yoking together of faux normality and draconian security emerged with particular clarity at the 2002 Super Bowl in New Orleans. The normal part was present in what Beck calls the ‘militaristic bombast and apple-pie-sentimentality’ of the pre-game show, which included Paul McCartney singing ‘Freedom’ with ‘no hint of the naive peacenik of yore’, as one reporter noted. But the stadium and the surrounding neighbourhoods were cordoned off and swarming with armed police. McCartney sang his paean to freedom in ‘one of the least free areas in the United States’, as Beck writes. Never before had the nation seen such ‘an enormous, complex and intrusive security apparatus’ – which only intensified the anxieties it was meant to relieve by reminding everyone of all the bad things that could happen.

An ever expanding quest for a reified, fetishised feeling of security animated the logic of the Global War on Terror. Victory required more than hunkering down and sealing the borders: the US had to project power into the world. The National Football League’s collaboration with Homeland Security at the Super Bowl paved the way for the militarisation of public space. This was the fate of Ground Zero, which eventually became an obsessively monitored ‘security zone’. Individuals were also monitored by new surveillance tools and practices. The quest for security at the US border led to a preoccupation with preventing terrorism by profiling passengers according to facial expressions, body language and emotional demeanour. (Be careful about showing annoyance or any other ‘negative’ trait.) ‘It wasn’t just that the Transportation Security Authority was going to invade your privacy – you were going to behave as though you liked it, too,’ Beck writes. The new method was called SPOT – Screening Passengers by Observation Techniques. As a project manager at the Department of Homeland Security told Congress, he and his colleagues had been examining people’s mannerisms, modes of sitting or standing, staring or not staring, looking down and the like – all ‘to establish whether there is something to detect’. Apparently, SPOT didn’t result in a single arrest of a terrorist. But the new surveillance practices did help create a world of universal mistrust where everyone was spying on everyone else.

Still, some people have been more spied on than others. Profiling behavioural traits to identify potential terrorists could easily slide into identification by racial, cultural and political group. In the weeks after 9/11, much of the American population was caught up in racist and Islamophobic stereotypes; hate crimes proliferated against Arabs and Muslims, even imaginary ones, like the turbaned Sikh murdered outside his own gas station in Mesa, Arizona on 15 September 2001. Persons of interest were rounded up by the FBI after criticising US foreign policy or conducting even brief internet searches on jihad, weapons and combat training. Sometimes those arrested were simply unattached young Muslim men who had displayed no suspicious behaviour at all. Unable to find real threats, law enforcement was forced to imagine them and to engage in what Beck calls ‘pre-emptive prosecution’ – convictions wholly or partly concocted by law enforcement. To provide spurious evidence, police often resorted to entrapment. This systematic misconduct led to the arrest of thousands of innocent people. As Beck concludes, ‘the threat of domestic terrorism was largely a hysterical fiction.’

Meanwhile, the Patriot Act, passed in October 2001 with 66 dissenting votes in the House and one in the Senate, had granted expansive new powers to law enforcement: citizens and non-citizens alike could be jailed or deported on evidence that could be kept secret; those accused could be refused bail and access to lawyers; they could be subject to indefinite detention at newly constructed camps, where they were tried by military tribunals, not courts. The ‘post-9/11 dragnet’, Beck charges, was ‘one of the most shameful episodes in the country’s history’. To illustrate, he provides an account of Adama Bah, a 16-year-old Muslim girl who was brought to New York City from Guinea when she was a toddler. In March 2005, FBI agents burst into her family’s apartment at dawn, with her handcuffed father in tow (he had been arrested at the local mosque), claiming there were irregularities in his immigration papers and shouting: ‘We’re going to deport you and your whole family!’ Adama and her parents were dragged off to jail and interrogated. She was told that Tashnuba, a girl from her mosque, had written her name on a list of potential suicide bombers. She later learned that FBI agents told Tashnuba that Adama had written her name on a suicide bomber list. No such list was ever found.

Adama and Tashnuba spent six weeks at a federal detention centre in Pennsylvania, where they were strip-searched several times a day and told: ‘You no longer have rights.’ Adama’s family hired a lawyer and the government eventually granted her release on condition that she keep a 10 p.m. curfew and wear an ankle bracelet 24 hours a day. She wore it for two and a half years, until she was finally issued a green card. She was never given any justification for her treatment, which was common for Muslims regardless of gender, age or class. Together they supplied a steady stream of scapegoats to keep Americans believing they were in perpetual danger – and that only the security state could protect them.

The top-down effort to control the national mood was a direct result of the diffuse and boundless nature of the war Bush had declared. He could have focused on al-Qaida in Afghanistan, but instead his administration made the entire world its battlefield, beginning with the expansion of the war to Iraq in March 2003. Israelis became the overseas cheerleaders for the invasion. I remember sitting in a diner in Lambertville, New Jersey, across a table from Gadi Taub – then a PhD candidate at Rutgers, now a prominent Israeli journalist. He confidently predicted that, once Saddam Hussein was overthrown, the Iraqis would embrace American-style democracy, just as Germany and Japan had done after the Second World War. This preposterous belief passed for conventional wisdom on both sides of the Atlantic. Expectations ran high. ‘Iraq will be the first step’ towards ‘structurally changing the entire area’, an Israeli general announced after the invasion. American neoconservatives agreed: the war on terror required the transformation of the Middle East through toppling autocracies and replacing them with democracies – or what the CIA and Mossad considered democracies.

Despite all the talk about democracy, a crucial component of it – public debate – was missing in the run-up to the Iraq War. Only pro-war views got a fair hearing, or indeed any hearing at all. In the first two weeks of February 2003, 267 current or former government officials appeared on major US TV networks to discuss the coming war. Only one (Edward Kennedy) was opposed to it, and even he treated it as a foregone conclusion. As Beck says, the media – including the New York Times, CNN et al – ‘refused to stage a real debate’. Public officials assumed their task was ‘confidence-building and grief management’, as Sontag wrote. ‘Politics, the politics of a democracy – which entails disagreement, which promotes candour – has been replaced by psychotherapy.’ She was among those whom conservatives and centre-left liberals wanted to silence, Beck writes, just as they wanted to suppress ‘any deviations, no matter how minute, from the scripted morality play of mourning, national innocence and vengeance’.

Besotted with Bush’s militaristic posturing in the months and years after 9/11, the US media have remained infatuated by presidential displays of military might ever since. Fareed Zakaria of CNN went so far as to declare that Trump ‘became president of the United States’ only after he had launched Tomahawk missiles into Syria – ‘as though it were impossible to embody the full majesty of the office’, Beck writes, ‘without killing people over something of negligible strategic importance’. After 9/11, Congress passed a series of resolutions granting the president nearly absolute power over when, where and how to launch military action anywhere in the world. The stage was set for the enactment of the vision contained in Bush’s Second Inaugural Address in 2005, when he promised to lead a crusade to drive tyranny from the face of the earth.

As​ the promoters of the war on terror waxed grandiose, they orchestrated a propaganda campaign requiring Muslims to play two contradictory roles. First, they had to be defined as barbarians who understood only violent force. This was the war on terror’s foundational logic. If the US had acknowledged al-Qaida as a group with political grievances, no matter how abhorrent to Americans, conflict could have been confined to Afghanistan. But if terrorism had no rational explanation or causes, terrorists’ putative grievances were merely cover for irremediable barbarism. Confronted by ‘a group of people who were not only immune to reason but also believed that victory could be found only in domination and destruction’, Beck writes, ‘the US could claim that it had no choice but to pursue extremists to the ends of the earth, no matter the cost.’

Yet at the same time, to placate liberal imperialists like Hillary Clinton and win popular support for a distant conflict, the architects of the war on terror had to raise the moral ante by giving Muslims a dual status – not only must they be barbarians, but also ‘innocent victims in need of saving, people who longed for liberation at the hands of America’s armed forces’, in Beck’s words. The balancing of innocence and savagery among the enemy was difficult enough, but what really undermined the Americans’ pretence at humanitarian motives was the revelation of the torture they routinely inflicted on prisoners, most notoriously at Abu Ghraib.

Beck documents the role of torture as a titillating spectacle shared by soldiers on the ground and civilians back home. ‘Nothing communicated the viciousness and ghastly inventiveness of the American guards at Abu Ghraib more effectively than the fact that they wanted to photograph the torture,’ Beck writes. The vicious behaviour was not confined to prison guards. Military intelligence officers gave detailed instructions on torture methods including sleep deprivation and other means of weakening prisoners between interrogation sessions. Meanwhile, Americans at home became fond of watching torture in films and TV shows. Before 9/11, prime-time television showed fewer than four scenes of torture per year; after 9/11, it showed more than a hundred. TV shows like 24 made it look as if torture works. At one point the hero of 24, Jack Bauer, resigns from his counterterrorism unit before he illegally tortures someone, to make sure the unit won’t be held responsible. Sometimes Daniel Boone has to break the rules but he will always cover his bosses’ collective ass.

From top to bottom, American society became entangled with torture. Military intelligence officers were enablers of the prison guards and were in turn enabled by the White House lawyer John Yoo and Bush’s Office of Legal Counsel – whose decisions weren’t bound by congressional oversight or judicial review. This institutional support for torture changed people. Up and down the chain of command, Beck observes, Americans who saw the Afghan and Iraq wars as revenge missions were disposed towards sadism. Soldiers abused and tortured detainees without being ordered to do so by officers – ‘sadism was a part of the project from the very beginning,’ in Beck’s words. ‘The government’s legalisation of torture was not a deviation from the war’s purpose but an attempt to formalise an aspect of the war that had been present at the outset.’

Torture was deeply rooted in the history of North American encounters with the aboriginal other: frontier justice had stressed the necessity of moral flexibility. Soldiers ‘made out of suspected terrorists a new kind of Indian’, Beck says, ‘a people born and raised so far from the heart of real civilisation that violence and humiliation were the only languages they could be expected to understand’. But what happened after 9/11 was something new: the legitimation of torture at the highest levels of government.

The ethics of the political class had been sullied, and some of its leading members tried to clean up the mess without taking or assigning too much blame. ‘Even before I came into office,’ Obama said, ‘I was very clear that in the immediate aftermath of 9/11 we did some things that were wrong. We did a whole lot of things that were right, but we tortured some folks. We did some things that were contrary to our values.’ The painful locution ‘we tortured some folks’ revealed the usually nimble Obama striking a faux-populist note at the worst possible time. And his claim that torture was ‘contrary to our values’ was aspirational rather than factual. As Beck makes clear, when it came to fighting brown-skinned barbarians – whether in the Black Hills of Dakota, the Philippine jungle, or the Mekong Delta – torture was as American as cherry pie.

Many Americans (including myself) believed Obama would bring an end to the Bush administration’s coup; instead, the new president merely refined it. There were a few hopeful signs at first – he promised to ban torture and to close Guantánamo Bay – but he soon showed signs of being absorbed into the Washington consensus. He quickly embraced Washington’s double standard towards Israel; in a 2009 speech advocating the two-state solution he called for only one side, the Palestinians, to ‘abandon violence’. Ultimately, Obama’s main achievement was to recast the cultural style of the war on terror, not its substance. His administration’s attempt to rename the Global War on Terror as the ‘Overseas Contingency Operation’ failed for obvious reasons, although it did demonstrate his wish to establish a more technocratic, less melodramatic idiom for warmaking. In practice, ‘banning torture’ meant a shift from flagrantly violent abuse worthy of prime-time TV to psy-ops involving patience and cunning. Most important, Obama’s approach was torn by contradiction; at the same time as declaring an end to Bush’s Global War on Terror, he also said he had ‘no plans to diminish counterterrorism operations abroad’ – which could involve who knew what enhanced interrogation techniques at ‘black sites’ around the world. He vastly expanded CIA drone operations, and his administration’s lawyers decided that drone strikes did not require a congressional declaration of war. Reports of civilian casualties were minimised by the bureaucratic gambit of classifying all ‘military-age males’ who had been killed as ‘enemy combatants’. Unlike Bush’s invasions, Obama’s ‘surge’ in Afghanistan was preceded by what seemed to be thoughtfulness, but still ended with the war becoming the longest in US history. As Edward Snowden revealed, Obama authorised unprecedented surveillance of Americans’ private lives; the president later asserted without evidence that Americans really didn’t disapprove of mass surveillance without a warrant as much as they imagined they did.

Obama institutionalised and expanded the war he had promised to end. Like other liberal Democrats, he wanted to elevate it above revenge and racism. Yet his desire to cultivate nobler aims only prolonged the fighting. Osama bin Laden’s death could have ended the war on terror, as Beck observes, but Obama vowed to keep it going: ‘having accomplished the war’s only goal that was both concrete and achievable, Obama decided the country would continue to pour money and blood into a project whose only remaining function was to fuel bigotry and anger.’

As the war on terror began to seem genuinely endless, it became increasingly unpopular. Why did it continue? The bottom line, Beck believes, was that it seemed to be a solution to secular stagnation (that is, stagnation unconnected to the business cycle). The ‘war for oil’ conducted by the military-industrial complex was only part of a larger economic project, the attempt to speed up the slowing growth that had bedevilled Western capitalism since the 1970s – an effort begun by Reagan and Thatcher which quickly spread across the ideological landscape and was labelled ‘neoliberalism’. This ideology revived all the 19th-century liberal pieties sanctifying unregulated markets and the free flow of capital; what was ‘neo’ about it was its veneer of technocratic expertise, its overt transfer of authority from big government to big business, and its commitment to policing the shambles left by capitalism’s ‘creative destruction’ by means of an increasingly militarised carceral state.

Paul Bremer’s spell as leader of the C0alition Provisional Authority in Iraq epitomised the imperial reach of the neoliberal project. The Bremer regime sought to hollow out Iraqi society and transform it into an exemplar of free-market liberalism. To be part of the world economic order, Bremer & Co. assumed, Iraq must be more like the US, and place few or no constraints on entrepreneurs. Foreign businessmen could parachute in, pay nominal taxes on phenomenal profits, and ignore any legal strictures that might involve investment in the future wellbeing of the country. In Bremer’s belief system, installing a democracy in Iraq meant implementing economic ‘reforms’. Whose ends those reforms served remained an open question. When $8.8 billion in reconstruction funds disappeared in Iraq, Bremer’s financial adviser responded dismissively. ‘Yeah, I understand,’ he told an interviewer. ‘I’m saying what difference does it make?’

Neoliberal policies, wherever they were implemented, spelled insecurity for working people. Beginning in the 1970s, the global economy had witnessed the gradual disappearance of stable, full-time employment and of the safety nets meant to cushion the unemployed. Laid-off workers needed to find a new job (or jobs) quickly. The result was what Beck calls a ‘surge in informal work’ and a dramatic increase in the global ‘surplus population’ – workers without skills, resources or luck enough to land a steady job, who were driven to migrate. But regional politics played its part. After 1967, the Israeli occupation of the West Bank and Gaza turned Palestinians in one fell swoop into part of the world’s surplus population. The rise of the Palestine Liberation Organisation was a response to this forced economic marginality. Yet since 11 September 2001, attempting to suggest that terrorist acts have anything to do with economic exploitation or inequality has been met with reactions that range from incredulity to howling condemnation.

The war on terror, Beck argues, ‘is a tool for managing the very surplus populations that the end of American-led economic prosperity helped to create, people whom the US now finds itself unable and unwilling to help’. Strategists recognised the centrality of this task even before 9/11. The 1990s were a golden age for think tanks that focused on ‘how the military might reorient itself towards prolonged, sporadic, low-intensity urban conflict’, Beck writes, noting that the armed services considered constructing training sites in rundown urban housing developments – where the US’s own surplus population lives and needs to be managed.

Whatever domestic agendas such conflict promotes, the most striking feature of endless war is its futility. Any honest appraisal of America’s military performance since 9/11 would have to acknowledge a record of consistently catastrophic interventions abroad. The invasion of Iraq produced explosive instability, not democracy, throughout the region. Policymakers’ return to the cold porridge of regime change in Libya and humanitarian intervention in Syria ‘produced only chaos and destruction’, Beck writes. Under Obama, Hillary Clinton used her tenure as secretary of state as a springboard for clumsy meddling – scuttling peace talks in Syria by her demand for Assad’s removal, for example, and plotting the overthrow and murder of Gaddafi, which turned Libya into a failed state and chief arms supplier to jihadists and other ‘moderate rebels’ in Syria. Failure followed failure – unless the interventions were intended to create conditions for permanent war.

None​ of the architects of the continuing disaster in the Middle East has ever been called to account. This ‘impunity culture’, as Beck calls it, has enveloped the war on terror since its inception, forbidding efforts to place any blame on powerful individuals or institutions for war crimes or strategic blunders. Apart from the blank cheque the US has issued to Israel, the most egregious grant of impunity occurred when Obama refused to prosecute Bush, his war cabinet and his Office of Legal Counsel for complicity in torture. In a January 2009 interview on ABC, Obama said that ‘we need to look forward as opposed to looking backward.’ There would be no reckoning, no coming to terms with torture and the people who condoned it. This blanket pardon came from a man who fashioned his own ‘kill list’ and became assassin-in-chief; who authorised more secret drone strikes than any of his predecessors; and who pursued Snowden and other whistleblowers with what Beck calls ‘a frightening intensity’. Obama has been a beneficiary of impunity culture too.

Trump would put his own personal stamp on the concept of impunity, but what made it a systemic feature of US political culture was the Global War on Terror – a conflict conducted by war criminals who have remained unaccountable; ‘a war’, in Beck’s words, ‘that most people agree was detrimental to the country’s international reputation and its capacity for global leadership’. But, at first, the war revived the myth of America’s unique virtue, reinforced by Bush’s ultimatum: ‘Either you are with us, or you are with the terrorists.’ There would be no diplomacy, even among allies. ‘America demanded allegiance from the rest of the world and offered nothing in return in 2001,’ Beck notes, ‘because America no longer felt it owed the rest of the world anything.’ One of the war’s fundamental (if unarticulated) goals was to confirm that the rest of the world would automatically defer to America, simply because of its overwhelming strength.

Homeland is an indispensable account of how we got to the terrible place we are in. It is also a reminder of how hard it is to tell who ‘we’ are, especially when the government that acts in our name makes its decisions in secret and without public assent or even discussion. The most catastrophic harm inflicted by the war on terror has been the triumph of militarism in foreign policy – the commitment to endless war that tickled Cheney’s fancy a quarter of a century ago. This default setting originated in the deep history of North American settler colonialism. As Beck says, ‘those who launched and supported the war have carried out a series of failed attempts to exorcise the country’s founding trauma of victimisation by setting out into the wilderness in search of savages to dominate.’ Along with these historical roots, there is a millenarian compulsion at work in the recurring clamour for war, one rooted in the righteous community’s need for periodic regeneration through violence, as shown most recently in the aura of déjà vu surrounding the frantic effort to bring the US formally into Israel’s war on Iran, using the same claims deployed two decades ago to justify the invasion of Iraq. It didn’t work the first time, but we must try it again. Beck wrote Homeland before this particular hysteria had resurfaced, but he knew the region was on the brink.

He also knew that the militarist mind-set could shape American perceptions of any alleged adversary, not just Muslims. The legacy of the war on terror ‘flourishes in America’s refusal to see the world as something other than a battlefield’, he writes. This aggressive stance promoted the eastward expansion of Nato, provoking Putin’s actions in Ukraine. As in the war on terror, the US was determined to take the offensive against the alleged aggressors – the Russians – who, despite their pretensions to civilisation, were in the popular imagination barbarians too. As Beck writes, ‘during the first two years of the [Ukraine] war, America’s response has been to escalate the conflict at every opportunity.’ The rhetoric of neoconservative ideologues – Anne Applebaum, Jeffrey Goldberg, Timothy Snyder – recalled the posturing after 9/11: America’s support for Ukraine was described as a ‘transhistorical defence of “civilisation”’ and it was claimed that ‘Vladimir Putin, like Osama bin Laden, is motivated solely by a hatred of freedom.’

The ideology justifying the Ukraine war has been as moralistic and insistent on conformity as the rhetoric surrounding the war on terror. In October 2022, progressive members of Congress were bullied by the party leadership into backing off from even mild criticism of Biden’s war in Ukraine. While the US and Nato settled into what Beck calls ‘militarised intransigence’ in Ukraine, parts of the Washington consensus sought to escalate rivalry with China into armed conflict. Endless war was threatening to become everywhere war.

Nowhere has the continuity with the war on terror been more obvious than in Israel’s war on Gaza. Israel’s strategy, which lay ‘between ethnic cleansing and genocide’ (as Beck says) or combined the two, was ‘exactly the kind of war crime that international courts were established to prosecute’. But as Cheney and his comrades assumed from the beginning, a righteous war to exterminate terrorists rendered older prohibitions obsolete. The Israel-Palestine conflict shows how easily the social and political dynamics at work in the war on terror can come rushing back. The hundreds of Israeli civilians killed on 7 October 2023 were the excuse for the inevitable retaliation by the IDF. But the Israeli government was not interested in retaliation; it wanted to build public support for a war of extermination. So Israeli propagandists manufactured false information about atrocities committed by Hamas on 7 October – beheaded infants, foetuses ripped from their mother’s wombs. Like the Americans who embraced an annihilationist agenda after 9/11, Beck observes, ‘the people cheering on the slaughter drape their bloodlust in a hysterical rhetoric of civilisational defence against a horde of savages.’ Those who object to Israel’s mass murder of Palestinians, like those who have suggested that terrorist acts might have political motives, ‘are accused of being apologists for rape, murder and torture’. If we succumb to the mind-numbing power of words like ‘terrorism’, Beck writes, we enact ‘a morality play in which the only path to “peace” is the total displacement or annihilation of an ancient enemy’.
The situation seems close to hopeless. Simone Weil, quoted by Beck on the Iliad, cuts to the heart of the matter: ‘To be outside a situation so violent as this is to find it inconceivable; to be inside it is to be unable to conceive its end.’ Those of us who seek to conceive an end to endless war must somehow learn to challenge embedded American fixations and fantasies, as well as habits of mind and heart. Success is a long shot, but the stakes are too high not to risk it.

18 de julho de 2025

Como o Hamas mudou sua estratégia antes de 7 de outubro

Nos anos que antecederam o ataque de 7 de outubro, houve uma luta interna pelo controle da estratégia dentro do Hamas. A recusa de Israel em dialogar com qualquer líder palestino que insistisse no fim da ocupação entregou a iniciativa à facção militarista de Yahya Sinwar.

Erik Skare


Yahya Sinwar participando de um comício na Cidade de Gaza, Gaza, em 14 de abril de 2023. (Majority World / Universal Images Group via Getty Images)

Este é um trecho de "Road to October 7: A Brief History of Palestinian Islamism", agora disponível na Verso Books.

Em 25 de junho de 2006, oito militantes palestinos das Brigadas Qassam, do Comitê de Resistência Popular e do Exército do Islã cavaram seu caminho para fora do extremo sul de Gaza. Aproximando-se silenciosamente, os militantes surpreenderam uma unidade de tanques israelense e mataram dois soldados israelenses. Outros dois israelenses ficaram feridos; um deles, o sargento Gilad Shalit, foi arrastado através da cerca da fronteira.

Os israelenses responderam bombardeando a Faixa de Gaza, matando 1.390 palestinos, dos quais 454 eram mulheres e crianças. Quando um cessar-fogo foi firmado quatro meses depois, em novembro, Shalit ainda não havia sido encontrado.

As negociações para a libertação de Shalit persistiram por meio de canais secretos não oficiais estabelecidos entre o Hamas e as autoridades israelenses. Após anos de construção de confiança, ambas as partes estavam prontas para chegar a um acordo em 2011, com Shalit em troca de 1.027 prisioneiros palestinos.

Yahya Sinwar já estava preso havia 22 anos. Sinwar teria sido contra o acordo de Shalit, embora ele próprio estivesse incluído, por considerá-lo como uma concessão excessiva aos israelenses. De fato, quando as negociações atingiram um estágio crucial, Sinwar foi transferido para confinamento solitário por medo de atrapalhar a troca de prisioneiros.

Prisão a céu aberto

Não sabemos o que Sinwar deve ter sentido ao retornar a Gaza e testemunhar as mudanças que haviam ocorrido nas últimas duas décadas. Um deles foi a desolação da Faixa de Gaza, cuja população mais que dobrou, de 589.000 em 1988 para 1,6 milhão em 2011. O bloqueio israelense-egípcio contra Gaza destruiu sua economia, em uma punição coletiva à população da faixa. Eles foram efetivamente confinados no que só pode ser descrito como uma prisão a céu aberto.

O desmonte de Gaza persistiu com força implacável ao longo da década de 2010. Em 2022, quase 80% da população de Gaza dependia de ajuda humanitária, com a insegurança alimentar atingindo 65,9%. Quase metade de sua população sofria de pobreza multidimensional. Mais da metade de sua população estava desempregada em 2018, enquanto os números da população jovem ultrapassavam 70%.

Yahya Sinwar teria sido contra o acordo de Gilad Shalit, embora ele próprio tenha sido incluído, por considerá-lo como uma concessão excessiva aos israelenses.

Quase metade da população de Gaza era composta por crianças, e um jovem de dezesseis anos teria, até 2023, vivenciado quatro guerras e um incontável número de escaramuças, ataques aéreos e confrontos armados transfronteiriços. O Relatório da Missão de Investigação das Nações Unidas sobre o Conflito de Gaza (também conhecido como Relatório Goldstone) declarou, em 2009, que o principal objetivo da restrição de mercadorias em Gaza era "criar uma situação em que a população civil considerasse a vida tão intolerável que abandonaria (se isso fosse possível) ou expulsaria o Hamas do poder, bem como punir coletivamente a população civil".

Também não está claro o que Sinwar pensava sobre as mudanças que estavam ocorrendo dentro de seu próprio movimento, o Hamas. Quando Sinwar foi preso em 1988, o Hamas era um movimento clandestino e seu aparato militar era uma pequena rede de células militares. O Hamas era o governo e responsável pelo bem-estar social e pela administração em Gaza. As Brigadas Qassam eram o serviço de segurança de fato na faixa.

Sinwar tinha sido pessoalmente próximo do guia espiritual do Hamas, Ahmad Yasin, e de militantes como Salah Shahada. Agora, os escalões superiores do movimento eram ocupados por uma classe profissional de políticos "que haviam esquecido o que era estar em fuga ou na prisão", como disse o jornalista israelense Avi Issacharoff.

Sinwar ascendeu rapidamente na hierarquia do Hamas. Sua antiguidade, suas credenciais na luta armada palestina e o tempo que serviu na prisão significavam que a influência de Sinwar na ala militar, e sua lealdade em troca, eram inquestionáveis. Seu irmão, Muhammad, serviu como um proeminente comandante militar nas Brigadas Qassam, o que criou um importante canal de comunicação entre as alas.

A ascensão de Sinwar

Em 2015, Sinwar era o ministro da segurança de fato do Hamas, com a responsabilidade de conduzir negociações com Israel para a libertação de prisioneiros do Hamas em Israel em troca dos corpos de dois soldados israelenses mortos e da libertação de dois israelenses que haviam entrado em Gaza e sido capturados.

A posição de Sinwar também se fortaleceu dentro das Brigadas Qassam. O líder sênior da al-Qassam, Ahmad al-Ja'bari, foi assassinado em novembro de 2012, o que obrigou Muhammad Deif a retomar a liderança na ala militar. Ainda assim, Deif teria ficado fisicamente debilitado após sobreviver a pelo menos cinco tentativas de assassinato entre 2001 e 2014.

Na primeira tentativa de assassinato, Deif perdeu um olho e parte do braço. Ele também foi gravemente ferido na segunda tentativa, em 2006, com relatos de perda de membros adicionais, e Deif foi forçado a se submeter a uma série de tratamentos ortopédicos e ceder seu cargo a al-Ja'bari. Paralisado e com longos períodos de reabilitação, seu vice, Marwan Issa, assumiu o controle dos assuntos cotidianos.

Outro fator que contribuiu para a ascensão de Sinwar foi o sucesso com que ele se apresentou como o oposto de outros líderes políticos do Hamas.

Em 18 de agosto de 2014, durante a Operação Borda Protetora, os israelenses lançaram uma bomba de uma tonelada sobre a casa de Deif. Após um minuto, lançaram outra. Sua esposa, seu filho de sete meses e sua filha de três anos foram mortos. Deif sobreviveu.

Sua sobrevivência milagrosa contra adversidades esmagadoras — um sinal, segundo alguns, de proteção divina — conferiu a Deif um status lendário. Suas graves deficiências e as dores de cabeça debilitantes causadas pelos estilhaços alojados em sua cabeça fizeram com que Sinwar e Issa fossem os que efetivamente detinham o comando diário das Brigadas Qassam.

Outro fator que contribuiu para a ascensão de Sinwar foi o sucesso com que ele se apresentou como o oposto de outros líderes políticos do Hamas. Khaled Mishal frequentava hotéis de luxo, conversava com a imprensa internacional e vivia uma vida relativamente abastada em comparação com os padrões de Gaza. Sinwar, por outro lado, permaneceu um asceta e exerceu seu capital político em condições modestas no campo de refugiados de Khan Yunis, evitando a mídia.

Disputas pelo poder

Nas eleições internas de 2017, Sinwar foi eleito líder do Hamas em Gaza, sucedendo Ismail Haniyeh, que assumiu o lugar de Mishal. Observadores interpretaram as eleições como um protesto contra a liderança do Hamas e suas políticas econômicas e sociais em Gaza, além da incapacidade de capitalizar a guerra de Gaza de 2014, que, em vez disso, resultou em destruição generalizada.

A formalização da autoridade de Sinwar consolidou efetivamente a mudança no equilíbrio de poder interno do Hamas. Embora a liderança externa controlasse as Brigadas Qassam desde a década de 1990, supervisionando o financiamento, o crescimento da economia de túneis de Gaza e o redirecionamento estratégico da ajuda iraniana para o braço militar reforçaram a autonomia da liderança de Gaza.

Em meados da década de 2010, surgiram relatos de que as Brigadas Qassam haviam se tornado governantes de fato, com Deif, Issa e Sinwar detendo a autoridade máxima sobre todas as decisões. Além da ascensão formal de Sinwar na hierarquia do Hamas, a influência das Brigadas Qassam também foi reforçada, com seus militantes conquistando vitórias nas eleições locais em diversas áreas de Gaza.

Há, portanto, duas maneiras de encarar o esforço do Hamas para revisar seu estatuto em 2017. Por um lado, era óbvio que seu estatuto de 1988 não trouxe muitos benefícios ao movimento. O Hamas moderou posições-chave desde o início da década de 1990, e líderes e membros seniores do Hamas raramente, ou nunca, se referiam ao estatuto de 1988 para explicar as posições do movimento.

Líderes e membros seniores do Hamas raramente, ou nunca, se referiam à Carta de 1988 para explicar as posições do movimento.

Naquela época, o movimento já havia se distanciado da concepção do conflito como parte de uma conspiração global de judeus e cruzados contra o Islã. Em vez de refletir a nova posição do Hamas, que distinguia o judaísmo como religião do sionismo como movimento político, a Carta de 1988 foi usada por críticos para retratar o grupo como intransigente, fundamentalista e, não menos importante, supostamente antissemita.

Por outro lado, o processo de revisão da Carta também foi motivado pela ascensão da linha dura do Hamas nas eleições internas. Mishal, seu arquiteto, esperava que o documento criasse consenso sobre todas as posições declaradas do Hamas e comprometesse "a nova liderança com essas posições, independentemente de qualquer tendência linha dura que alguns de seus membros pudessem ter", segundo Khaled Hroub.

A Marcha do Retorno

Como Sinwar era visto como "extremamente linha-dura e, ao mesmo tempo, implacavelmente pragmático", nas palavras da revista The Economist, previsões bastante divergentes foram feitas nos anos seguintes. Vários se referiram às suas credenciais militares e previram que sua ascensão aumentaria a probabilidade de outra guerra entre Gaza e Israel.

No entanto, Sinwar rapidamente declarou que apoiava a resistência popular pacífica contra a ocupação israelense, que buscava uma trégua de longo prazo com Israel e pressionava por negociações, que outra guerra não era do interesse do Hamas e que trabalharia pela reconciliação política com Mahmoud Abbas e a Autoridade Palestina (AP) na Cisjordânia. De fato, Sinwar se conteve ativamente, o que foi interpretado como uma percepção crescente de que Gaza tinha mais a perder do que os israelenses.

Embora também defendesse o uso da violência para chamar a atenção para a causa palestina, ele aparentemente se mostrou um ator político mais complexo do que se supunha inicialmente. Sinwar demonstrou como se pode ser moderado e linha-dura, dependendo da questão, e os fatores externos foram fundamentais para a linha política adotada.

Muitos indicam que a repressão israelense à Grande Marcha do Retorno em 2018 foi um ponto de virada crucial.

Muitos indicam que a repressão israelense à Grande Marcha do Retorno em 2018 foi um ponto de virada crucial. Reunindo palestinos de todas as idades, gêneros e grupos políticos e sociais, o elemento unificador foi, desde o início, um princípio compartilhado de desarmamento e paz. Referindo-se explicitamente à expropriação de palestinos em 1948, os manifestantes exigiram o direito de retornar às aldeias e cidades de onde foram deslocados durante a Nakba.

Inicialmente imbuídos de otimismo, canções nacionais foram cantadas, almoços foram preparados para famílias e crianças, e meninas foram vestidas com trajes bordados tradicionais. Orações e partidas de futebol foram realizadas da mesma forma. Para muitos moradores de Gaza, a marcha foi inicialmente um alívio das condições sufocantes na faixa.

Em seu relatório de fevereiro de 2019, a comissão internacional independente de inquérito concluiu: "Na opinião da comissão, as manifestações eram de natureza civil, tinham objetivos políticos claramente declarados e, apesar de alguns atos de violência significativa, não constituíam combate ou campanha militar". Apesar disso, soldados israelenses receberam ordens de atirar em qualquer pessoa a centenas de metros da cerca e usaram força considerável para reprimir os protestos.

As forças israelenses, a maioria atiradoras de elite, atiraram e mataram 223 palestinos durante a marcha. Quarenta e seis deles eram menores de idade. A Anistia Internacional observou como "soldados israelenses atiraram em manifestantes desarmados, transeuntes, jornalistas e equipe médica a aproximadamente 150 a 400 metros da cerca, onde não representavam qualquer ameaça". Ao final dos protestos, pelo menos 10.000 pessoas ficaram feridas, incluindo quase 2.000 crianças.

Impasse

No final das contas, Sinwar devia estar claro para ele, no final da década de 2010, que o projeto de governança do Hamas em Gaza havia se tornado uma perda líquida para o movimento. Após mais de uma década, o Hamas não estava nem perto de suspender o bloqueio. Sua população ainda sofria com a pobreza, o desemprego e a dependência de ajuda humanitária, ambos politicamente determinados.

Israel nem se preocupou em abordar o Hamas como um ator político, mas, em vez disso, via Gaza como uma questão de segurança, um excesso populacional a ser pacificado indefinidamente. O relacionamento do Hamas com o Irã havia começado a se normalizar, mas mesmo isso representava um retorno ao status quo anterior a 2012. Não havia sinais de que os esforços de reconciliação com a AP na Cisjordânia estivessem dando frutos.

A partir de 2020, os Acordos de Abraham iniciaram um processo de normalização entre Israel e vários Estados árabes, enquanto as negociações entre palestinos e israelenses permaneciam em um impasse. À medida que o bloqueio de Gaza se normalizava e a Cisjordânia permanecia pacificada pela infraestrutura israelense de controle, ficou claro que a causa palestina simplesmente não parecia ser priorizada pela comunidade internacional.

Israel nem se preocupou em abordar o Hamas como um ator político, mas, em vez disso, via Gaza como uma questão de segurança, um excesso populacional a ser pacificado indefinidamente.

A popularidade do Hamas também estava em declínio, e havia uma crescente agitação popular causada pela incapacidade do governo de melhorar as condições de vida. Em março de 2019, protestos eclodiram com o slogan "Queremos Viver", que se transformou em um dos protestos antigovernamentais mais sérios em Gaza desde 2007.

"Não somos políticos e não queremos mudar os sistemas políticos. Só queremos conquistar nossos direitos", proclamou um ativista de Gaza. "Queremos empregos, queremos viver. Queremos igualdade, dignidade e liberdade." A resposta do Hamas foi reprimir violentamente os manifestantes.

Apesar dos custos políticos, o bloqueio permitiu ao Hamas desenvolver suas capacidades e infraestrutura militares. Túneis de contrabando em Gaza existiam desde 1981. Foi com o bloqueio a Gaza, a partir de 2007, que os túneis se tornaram uma tábua de salvação, sendo cada vez mais usados para contrabandear alimentos, medicamentos, combustível e qualquer produto necessário à sobrevivência além do mínimo necessário.

Outra rede de túneis, militar, também foi construída após o Hamas expulsar o Fatah da Faixa de Gaza. Percebendo que os palestinos não poderiam derrotar os militares de ocupação israelenses no mar, no ar ou em terra, a estratégia de túneis em desenvolvimento permitiu ao Hamas se movimentar livremente, conduzir exercícios de treinamento e testar armas longe do olhar dos drones israelenses que pairavam sobre eles.

7 de outubro

Em 2021, o Hamas teria escavado uma rede subterrânea com mais de 500 quilômetros de extensão, com algumas passagens suficientemente largas para a passagem de um carro. A rede de túneis também foi usada para fabricar armas secretamente e — embora longe de ser autossuficiente — o Hamas produziu grande parte de seu próprio arsenal, desenvolveu drones e veículos subaquáticos não tripulados e se envolveu em guerra cibernética.

As armas que o Hamas não conseguiu produzir foram contrabandeadas do Irã para Gaza, por mar ou terra, primeiro via Iêmen e Sudão e depois pelo deserto egípcio com a ajuda de contrabandistas beduínos. Componentes para mísseis balísticos foram contrabandeados para Gaza, onde pessoal treinado da Al-Qassam os construiu. Engenheiros do Hamas também viajaram para o Irã, onde receberam treinamento no desenvolvimento de sistemas mais avançados.

Política e diplomaticamente em um impasse, o Hamas ainda conseguiu se fortalecer militarmente.

Política e diplomaticamente em um impasse, o Hamas ainda conseguiu se fortalecer militarmente. Em julho de 2023, uma oficial de inteligência israelense alertou seus comandantes de que o Hamas havia concluído uma série de exercícios de treinamento nos quais o braço armado simulava ataques contra kibutzim israelenses e postos avançados do exército no lado israelense da fronteira com Gaza. Seus superiores desdenharam seus avisos, considerando-os "imaginários". Afinal, embora tenha havido conflagrações militares ocasionais nos últimos dezesseis anos, eles nunca ameaçaram os israelenses.

Além disso, esta não foi a primeira vez que o Hamas treinou ataques surpresa no lado israelense da fronteira. Tais exercícios já haviam sido noticiados em junho de 2015, quando jornais israelenses notaram que "é possível que... o Hamas tente, na próxima guerra, atacar uma comunidade ou base militar israelense, matando o máximo de civis ou soldados possível". Mesmo assim, os exercícios de treinamento continuaram sendo exercícios de treinamento.

Então, no sábado, 7 de outubro de 2023, às 6h30, o Hamas lançou 2.200 foguetes da Faixa de Gaza em direção ao sul e ao centro de Israel. Enquanto as sirenes de ataque aéreo alertavam os israelenses para que se abrigassem, 3.000 soldados das forças especiais do Hamas invadiram o muro da fronteira de Gaza e cruzaram para Israel por terra, ar e mar.

Colaborador

Erik Skare é historiador na Universidade de Oslo e autor de "Road to October 7: A Brief History of Palestinian Islamism" e "A History of Palestinian Islamic Jihad: Faith, Awareness, and Revolution in the Middle East".

Todo o resto

Em Dubai.

Caitlín Doherty

Sidecar


No final de abril, viajei para Dubai para assistir a uma competição de violino. Era uma encomenda para a qual eu não tinha nenhuma qualificação, exceto em um aspecto: eu queria visitar Dubai. O editor de um site de música clássica entrou em contato para me oferecer uma vaga na viagem depois que outro freelancer desistiu. Minha falta de conhecimento musical não seria, ele explicou, um empecilho. Na verdade, poderia até ajudar. O objetivo da encomenda não era avaliar as apresentações, mas relatar o que aconteceu, o que provavelmente seria estranho. Meu interesse foi despertado, ainda mais quando soube que a semana seria discretamente financiada pelo compositor residente da competição, um rico ex-operador de fundos de hedge russo-ucraniano que, em sua aposentadoria precoce, passou a compor obras clássicas ingênuas e a pagar músicos de classe mundial para executá-las. Uma pista tão insana parecia impossível de recusar.

A Palm Jumeirah – uma ilha artificial no Golfo Pérsico, construída sobre areia importada do Saara e moldada para se assemelhar à árvore homônima – é visível do espaço, mas inacessível a pé. Fui levado de carro do Aeroporto Internacional de Dubai por um homem de pouco mais de 20 anos, de Uttar Pradesh, que havia chegado ao estado do Golfo três anos antes em busca de trabalho. O emirado, um dos sete que compõem os Emirados Árabes Unidos, tem uma população de cerca de cinco milhões de pessoas, 92% dos quais são "expatriados". A atração de Dubai para estrangeiros pode ser resumida em uma fórmula cujas compensações dependem do seu país de origem e do propósito de estar lá: sem imposto de renda – sem direitos trabalhistas, de imprensa ou de migrantes. Sua capital abriga quatro milhões de pessoas e está disposta em uma faixa contínua entre o deserto e o mar, um calçadão de 4.000 km² de empreendimentos imobiliários ao longo do qual anúncios de condomínios, Gucci e criptomoedas são pontuados por outdoors exibindo o rosto do "CEO Sheik", Mohammed bin Rashid al Maktoum.

Além da faixa, no deserto que circunda o aeroporto, ficam os acampamentos. A mesma rodovia que me levou a um resort cinco estrelas traz uma população de trabalhadores desprotegidos e em trânsito, principalmente da Índia, Paquistão, Bangladesh e Filipinas, para construir, servir e limpar em nome de uma população itinerante e protegida de compradores, principalmente da Rússia, Israel e Alemanha. Em um recente registro no diário para o LRB, Peter Talbot escreve sobre as condições em que os trabalhadores são alojados: barracos precários no deserto, cercados por cercas, com horários de refeições e alimentação divididos com base em uma hierarquia de descartabilidade ou percepção de falta de valor humano.

A competição foi realizada no teatro do resort Zabeel Saray, na extremidade sul da Palm Jumeirah, construído em estilo "otomano", cujos corredores eram repletos de restaurantes pan-asiáticos, butiques de roupas de banho e barracas de tranças. Cheguei tarde, na noite anterior ao início da competição, e peguei o elevador com minaretes de ouro até uma sala no quinto andar. Me deram uma suíte com vista para a marina de Dubai, com uma banheira do tamanho de um barco e uma TV quase tão larga quanto eu. Liguei a TV e mudei de canal, passando pela Karl Largerfeld TV, pelos noticiários sobre a morte do Papa, pelo vídeo interno anunciando tratamentos de spa, por um serviço de televisão estatal chinês transmitindo em árabe, e adormeci com uma reportagem de primeira linha no Russia Today.

Do lado de fora do hotel, havia um calçadão de asfalto rosa vazio, com o calor escaldante já derretendo suas bordas às sete da manhã seguinte. O mar também estava vazio, apenas as chaminés do que o Google me informou ser o porto de Jebel Ali, visíveis a oeste. Aproximei o zoom do mapa, tentando entender minha posição na Terra. Abri outro aplicativo, projetado para rastrear navios, e vi a imagem de um mar fervilhando de embarcações do mundo todo, fazendo fila para entrar no porto na borda do horizonte, o tráfego marítimo organizado um pouco além do alcance do olho nu. Um jet ski solitário passou rugindo, criando as primeiras ondas do dia. De cada lado do resort, mais obras estavam em andamento – outro hotel, ao que parecia – com centenas de trabalhadores indianos já se movimentando pelos andaimes. Na sombra, havia um punhado de homens árabes falando ao celular; tanques de água estacionados ao longo da estrada, o logotipo da empresa estatal de desenvolvimento, Nakheel, estampado nas laterais, em blocos de concreto, nas costas dos coletes neon usados pelos trabalhadores.

Nas noites de sexta e sábado, a marina de Dubai enche-se de iates. A princípio, algumas proas hesitantes, circulando a baía plana e quente, depois mais uma dúzia surge e se multiplica; um banco de areia preenche o Golfo. Pulsações monótonas de músicas pop remixadas flutuam pelo ar impregnado de areia, intercaladas com um chamado à oração, o ronco de motocicletas e o canto staccato dos pássaros. Em um promontório escuro, erguido entre a ilha artificial e o horizonte em zigurate do centro da cidade-estado, um enorme palco ganha vida, lançando ondas de rosa fluorescente sobre o céu lilás. Observei da varanda do meu quarto e pesquisei o preço de um cruzeiro "de luxo" ao entardecer: cerca de US$ 30 por adulto. O hotel era frequentado por famílias de Moscou, Munique, Milão e dos "-stões". Pareciam, por um certo valor da palavra, normais. Apesar de toda a sua reputação como refúgio de uma elite internacional obscura, Dubai é uma proposta mais simples, personificada pela visão diante de mim, de inúmeros foliões se divertindo com o estilo de vida da riqueza oligárquica, economizando por um ano para serem servidos por escravos modernos por quinze dias.

*

Fui para Dubai com a cabeça no lugar errado. Não aprendi nada e saí enjoado. Pensei que seria divertido – engraçado, até – vivenciar a desorientação de estar no ponto de articulação entre dois sistemas mundiais. Em vez disso, foi apenas desorientador – repugnantemente. Existem infernos na Terra e Dubai é um deles: uma criação infernal nascida das piores tendências humanas. Sua infernalidade não pode ser atribuída apenas aos oligarcas, cuja riqueza atrai, nem aos violentos criminosos organizados que se mudam para lá para evitar processos. É infernal porque, como a autoproclamada cidade-show do livre comércio, oferece às pessoas comuns a oportunidade de comprar a forma mais pura da mercadoria mais hedionda: a exploração de terceiros. Se você quer saber como é ter escravos no mundo moderno – e não ser culpado abertamente por esse desejo – visite Dubai. Mas saiba que você não estará isento de culpa por isso. Cada postagem no Instagram, cada vídeo do TikTok, cada mensagem de WhatsApp vangloriada enviada de seu luxo é uma abominação. Uma campanha de relações públicas veiculada por aqueles que já compraram o produto e agora querem apenas mostrar que podem pagar por ele.

Há algumas experiências que o jornalismo não pode desculpar. Não acrescento nada ao registro por ter ido. Pensei que a viagem apresentaria uma tapeçaria grotesca que poderia revelar alguma nova verdade sobre a reorganização do mundo. Ela me venceu. Imaginei uma revelação ao estilo gonzo sobre pedir um mojito em russo a um barman indiano enquanto olhava para o Irã. Tudo isso é possível, mas nada disso faz minha visita valer a pena.

Se você tentar humanizar o lugar, perderá a cabeça. Se você se perguntar o que a mulher na barraca de tranças deixou para trás para estar aqui, e por quê, perderá a cabeça. Se você aceitar a gentileza dos funcionários com quem faz um esforço irrisório para conversar todas as manhãs enquanto eles limpam seu prato sujo de café da manhã, perderá a cabeça, porque sua gorjeta é a única gentileza que você pode oferecer significativamente em troca. Tentar cuidar da sua própria toalha à beira da piscina pode fazer com que o homem que fica horas sob o sol feroz faça isso por você perca o emprego. Ser servido nos torna crianças cruéis. Isso nos humilha a todos.

Talvez outros Estados do Golfo sejam igualmente ruins. Mas não há ironia plausível em visitar a Arábia Saudita, com sua brutalidade teocrática. No Catar, alguma justificativa de imprensa pode desculpá-lo. Nos outros emirados, talvez um esnobismo cultural compensado pela necessidade de amenizar os salários em declínio no Ocidente forneça motivo pessoal suficiente para ir a Abu Dhabi e consultar seus xeques sobre sua coleção de arte, ou a Sharjah para escrever o texto do catálogo para a bienal. Mas em Dubai não há nada a fazer, e eu quero dizer nada mesmo, além de se sentir rico e ser atendido.

Se você for e voar de Londres como eu fiz, sobrevoará a região chamada "Oriente Médio". Não tire os olhos das câmeras a bordo. Abaixo, você verá Basra. Talvez, como eu, esta seja a primeira vez que você terá uma visão do Iraque. A primeira vez que essa nação existe como uma realidade, de terra, rios e conurbações, não apenas como um cântico ou um ponto de referência em um argumento político. Você verá isso como, talvez como eu, viu durante a maior parte da sua vida: uma vista aérea, como se estivesse procurando petróleo ou lançando bombas. Ao pousar, parecerá impossível compreender que você está no Oriente Médio. A competição que observei confirmou a verdade anedótica de que Israel é o estado do Oriente Médio com os laços culturais mais fortes com o emirado. O sionismo é lavado em Dubai para exportação para o mundo todo.

Seis semanas depois do meu retorno, a guerra eclodiu no Golfo. Eu vinha tentando, sem sucesso, resumir minha experiência em Dubai em uma narrativa longa e espirituosa para uma segunda publicação, uma revista americana, um relato de um "Tár russo", um Fitzcarraldo no deserto. Mas quanto mais eu avançava no rascunho, mais eu caía em desespero. Não havia sentido no texto, exceto provar que há pouca coisa, agora, que o dinheiro não possa comprar. Bens móveis ou a legitimidade contida do mundo da música clássica, ambos estão à venda em Jumeirah. Sabemos disso. Mas sabemos também que há coisas que não devem e não podem ser compradas e vendidas. Amor, dignidade, liberdade, criatividade, respeito por nós mesmos e pelos outros. Se, no mundo vindouro, há algo pelo qual lutar, é a crença de que esses princípios são os fundamentos inatos daquilo que torna a vida humana valiosa. Para todo o resto, há Dubai.

Convergência?

Trump e a Ucrânia.

Lily Lynch

Sidecar


Nas últimas semanas, o presidente Trump pareceu acelerar a distensão com o establishment. Ele horrorizou a ala "contenciosa" do movimento MAGA ao enviar bombardeiros B-2 para atacar instalações nucleares no Irã, chocou apoiadores de longa data ao minimizar a importância dos arquivos de Epstein e recebeu uma recepção de herói na cúpula da OTAN em Haia, onde o servil Secretário-Geral Mark Rutte o chamou de "papai".

Uma das mudanças mais pronunciadas ocorreu no início desta semana, em uma coletiva de imprensa com Rutte no Salão Oval, quando Trump declarou estar "muito decepcionado" com Vladimir Putin e lhe lançou um ultimato: concordar com um acordo de cessar-fogo com a Ucrânia em cinquenta dias ou então enfrentar tarifas secundárias de 100%, destinadas a dificultar o financiamento da guerra por parceiros comerciais russos como Brasil, Índia e China. Trump também agradou os fiéis atlantistas com o anúncio surpresa de que enviaria armas de ponta para a Ucrânia, ainda que indiretamente. De acordo com o novo plano, os EUA venderão munição, mísseis e Patriots – tanto interceptadores quanto lançadores – para aliados europeus, e a OTAN facilitará sua entrega à Ucrânia. A decisão provocou ainda mais discursos indecorosos de Rutte. "Sr. Presidente, caro Donald, isso é realmente importante. Isso é realmente importante."

Tudo isso estava muito distante dos eventos de fevereiro passado, quando Trump e Zelensky se envolveram em uma discussão televisionada que virou manchete em todo o mundo. Há apenas duas semanas, o presidente Trump suspendeu alguns embarques de armas para a Ucrânia, alegando preocupações do Pentágono com a redução dos estoques. O que explica essa mudança abrupta de rumo? Trump revelou sua disposição de se submeter à perspectiva neoconservadora-atlantista convencional ou trata-se apenas de uma convergência efêmera?

Desde o retorno de Trump à presidência no início deste ano, Putin tem tentado equilibrar duas prioridades contraditórias. Por um lado, ele tem buscado continuar travando a guerra, já que atualmente está em vantagem e, portanto, tem pouco incentivo para encerrar o conflito em termos aceitáveis para a Ucrânia. Por outro, ele está ciente de que Trump atribuiu enorme importância ao fim dos combates, então tentou convencer Washington de que a Rússia está aberta a uma solução diplomática e a uma paz negociada. Essa dinâmica levou a duas rodadas de negociações, em grande parte teatrais, em Istambul, em maio e junho, que garantiram uma troca de prisioneiros de milhares de pessoas, juntamente com uma troca de mortos de guerra, mas fizeram pouco progresso em direção a um cessar-fogo. A Rússia enviou uma delegação de funcionários de médio escalão – um movimento que indicou que estava menos interessada em pôr fim à guerra do que em enviar uma mensagem simbólica a Trump: a de que a Rússia é o ator racional e construtivo comprometido com o engajamento diplomático, enquanto a Ucrânia é a parte com demandas impossíveis e maximalistas.

Mas a Rússia só conseguiu sustentar essa dupla atuação por um tempo limitado. As últimas três semanas testemunharam uma rápida deterioração nas relações até então amigáveis entre Putin e Trump, à medida que ficou claro que as negociações de paz eram pouco mais do que uma pantomima e que a guerra provavelmente se arrastaria. Em 3 de junho, os dois homens tiveram um telefonema que Trump descreveu sucintamente como "ruim". Poucas horas depois, a Rússia iniciou seu maior ataque aéreo de todo o conflito, lançando 539 drones e 11 mísseis balísticos e de cruzeiro contra a Ucrânia. No dia seguinte, Trump teve um telefonema com Zelenskyy, no qual teria perguntado se a Ucrânia poderia atingir Moscou ou São Petersburgo. "Com certeza", teria dito Zelenskyy a Trump. "Podemos, se você nos der as armas". Um comentarista especulou que a conversa foi divulgada à imprensa como forma de pressionar Putin. Mas isso parece ter fracassado, já que a Rússia lançou ainda mais ataques contra a Ucrânia nos dias seguintes. O ultimato desta semana também não pareceu perturbar os membros do Kremlin; de fato, o mercado de ações de Moscou subiu 2,7% logo depois.

Embora a mudança de rumo de Trump tenha sido aclamada como um divisor de águas, resta saber se essa boa vontade renovada entre Washington e a Europa perdurará. Na Cúpula da OTAN, em junho, a Ucrânia ficou em segundo plano em relação ao tema preferido de Trump: os gastos europeus com defesa. Convencido de que muitos Estados da OTAN não estavam pagando sua parte justa, Trump conseguiu impor sua exigência de que os membros aumentassem os gastos com defesa para 5% do PIB: um decreto aceito por todos os países, exceto a Espanha. O acordo levou Trump a abandonar sua retórica anti-OTAN e começar a elogiar a aliança, no que foi amplamente noticiado como uma vitória para a diplomacia europeia e, em particular, para Rutte, cuja subserviência havia encontrado justificativa aparente.

No entanto, mesmo na cúpula, havia a sensação de que o número mágico de 5% era apenas fachada. Um alto funcionário de um ministério da defesa europeu me confidenciou que os anúncios de gastos eram menos um "compromisso vinculativo" do que um meio de "projetar unidade entre a Rússia e Trump". Poucos dias após o evento, foi noticiado que, para atingir a meta, o governo italiano planejava classificar uma ponte de € 13,5 bilhões para a Sicília como despesa de defesa. Essa contabilidade criativa pode apaziguar Washington por enquanto, mas pode não apaziguar no futuro.

Também vale a pena notar que a mudança de política de Trump é um pouco menos drástica do que a cobertura da mídia sugere. O presidente a enquadrou não como ajuda ou caridade, mas sim como um acordo "America First" que beneficiará os fabricantes de armas dos EUA – uma continuação de sua abordagem transacional à política externa, em vez de uma ruptura com ela. Tampouco é um desvio de seu plano de longo prazo de repriorizar os compromissos e recursos dos Estados Unidos no exterior, transferindo-os gradualmente da Europa para a Ásia. Trump acredita que pode dominar e coagir outros Estados à distância, por meio de uma série de acordos fragmentados como este, em vez de se comprometer com o conjunto tradicional de alianças externas que permaneceram sacrossantas sob Biden. É essa falta fundamental de investimento em tais relações geopolíticas que distingue Trump de seus antecessores. Sua mudança de rumo em relação à Ucrânia não afeta essa abordagem mais ampla.

"Trump", como Patrick Porter gracejou recentemente, "está descobrindo que guerras não terminam por decreto presidencial". A dissolução da Iugoslávia, a última série de guerras em solo europeu, levou quase uma década e incluiu o mais longo cerco da história militar moderna. Podemos muito bem ver uma situação similarmente prolongada na Ucrânia, sem que nenhum dos lados consiga vencer de imediato nem esteja disposto a pôr fim ao derramamento de sangue. Um cenário alternativo seria uma partição ao estilo da Coreia, com uma zona desmilitarizada pesada, que se pareceria mais com um conflito congelado do que com a paz. De qualquer forma, as potências ocidentais que anseiam por uma solução simples – seja um acordo estável ou uma vitória decisiva – provavelmente ficarão decepcionadas.

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