16 de outubro de 2023

Genocídio iminente

Podemos parar a máquina de guerra israelense?

Sai Englert

Sidecar


Tradução / Em Gaza, Israel está se preparando para cometer um genocídio. Mas não está se preparando em silêncio. Reitera a sua intenção todos os dias, anunciando-a ao mundo, tanto através de palavras como por ações. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, descreveu os habitantes de Gaza como "animais humanos", ao mesmo tempo que declarou que Israel estava cortando o fornecimento de água, combustível, eletricidade e alimentos de toda a faixa cercada pelo bloqueio. Autoridades do Likud [partido de Benjamin Netanyahu] apelaram a ataques nucleares e a uma segunda Nakba. O presidente israelense, Isaac Herzog, rejeitou a distinção entre civis e combatentes, afirmando que "a responsabilidade é de toda uma nação". Os oficiais militares israelenses deixaram claro que o seu objetivo é "causar danos, não precisão". Durante todo este tempo, Israel submeteu a área de 365 quilômetros quadrados a um bombardeio implacável, lançando sobre os seus 2,3 milhões de habitantes o mesmo número de bombas que os Estados Unidos lançaram sobre o Afeganistão num ano inteiro, no auge da sua invasão assassina. Hospitais, mesquitas, escolas e casas – todos foram considerados alvos militares adequados. Até o momento, morreram pelo menos 2.750 pessoas [atualmente mais de 10 mil], mais de um milhão foram deslocadas e quase dez mil ficaram feridas [30 mil agora].

Metade dos habitantes de Gaza foram instruídos a se deslocarem para o sul da faixa através de "rotas seguras" aprovadas pelos militares. Israel bombardeou essas rotas enquanto as pessoas faziam exatamente o que lhes foi dito. Muitos outros palestinos recusaram-se a cumprir a ordem. Eles sabem melhor do que ninguém que esta é uma tentativa direta de limpeza étnica. Cerca de 80% dos palestinos em Gaza são refugiados, expulsos das suas terras em 1948 e que tiveram seu direito ao retorno recusado pelos governantes coloniais. No sul, a situação também é terrível, graças aos contínuos bombardeios aéreos, à escassez de água, alimentos, eletricidade e ao fluxo de recém-chegados. Israel continua bloqueando a entrada de ajuda humanitária através da passagem de Rafah, que tem sido repetidamente atingida por ataques aéreos [após duas semanas de guerra, a passagem de Rafah foi aberta para a entrada de ajuda humanitária]. 

Os responsáveis israelenses, incluindo o próprio Netanyahu, anunciaram que isto é "apenas o início". Mais de trezentos mil soldados foram mobilizados e aguardam ordens para lançar uma ofensiva terrestre que, segundo nos dizem, poderá durar meses. A morte e a destruição que daí resultariam seriam inimagináveis. É muito provável que todo o norte da Faixa de Gaza seja destruído e que os habitantes do enclave sejam encurralados numa área ainda mais pequena – obrigando-os a escolher entre a morte, um cativeiro insuportável ou o exílio. Israel justifica este derramamento de sangue indiscriminado como uma resposta ao assassinato de 1300 israelenses nos dias que se seguiram à rebelião palestina de 7 de outubro e à necessidade de impedir o Hamas de realizar novas operações. O seu atual ataque deve ser entendido, antes de mais nada, como uma resposta à humilhação política que Israel sofreu pelas mãos do setor mais isolado da população palestina.

Após dezoito anos de bloqueio por terra, ar e água, durante os quais a política declarada de Israel era "pôr os palestinos em uma dieta, mas não fazê-los morrer de fome", restringindo severamente o acesso aos alimentos, enquanto "cortava a grama" regularmente – ou seja, levava a cabo campanhas de assassinatos e mortes em massa – os palestinos em Gaza conseguiram finalmente derrubar o arame farpado que os mantinha em cativeiro. Só com esse ato, puseram em risco o futuro político de Netanyahu e da sua coalizão, bem como o processo de normalização entre Israel e os regimes mais autocráticos e repressivos da região. Além disso, apunhalaram a ilusão de onipotência de Israel, expondo a sua vulnerabilidade para que o mundo inteiro – e, mais importante, para que todos os palestinos – vissem. A retaliação será agora conduzida por todos os meios disponíveis – incluindo o deslocamento forçado ou a aniquilação pura e simples.

A questão que recai sobre todos nós, no Ocidente, é a de saber como impedir o genocídio iminente. Os nossos governantes deixaram claro que permitirão que Israel leve a cabo os seus planos – invocando o "direito à defesa" do país ao bombardear uma população civil. Os EUA e o Reino Unido enviaram navios de guerra para demonstrar o seu apoio inabalável. Ursula von der Leyen deslocou-se a Tel Aviv para dar a Netanyahu o apoio da União Europeia. Keir Starmer insistiu que Israel tinha o direito de cortar os abastecimentos vitais a toda a população bloqueada. Simultaneamente, os nossos governos fizeram o seu melhor para reprimir os movimentos de solidariedade com a Palestina a nível interno: a França proibiu totalmente as manifestações pró-Palestina, Berlim seguiu o exemplo e o Reino Unido ponderou juntar-se aos anteriores. É claro que isto vem na sequência de uma tentativa de criminalizar a causa palestina e de acabar com o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), sob o pretexto de "combater o terrorismo" ou "combater o antissemitismo". Porque é que a nossa classe política está tão empenhada em suprimir as críticas ao regime do apartheid? A resposta é óbvia. Os Estados ocidentais apoiam Israel para manterem o seu poder numa encruzilhada crucial do comércio mundial. Desafiar esse poder é inadmissível, porque qualquer tentativa de responsabilizar Israel pelos seus crimes é – por definição – uma tentativa de responsabilizar os nossos próprios Estados pelo seu envolvimento neles. Os nossos governantes não só estão dispostos a deixar Israel destruir Gaza, como até lhe darão cobertura diplomática e  suprimentos militares.

O que se interpõe entre Gaza e o genocídio é, pois, a pressão política – um movimento internacionalista cujo objetivo seja obrigar os governos ocidentais a recuar e a conter a máquina de matar israelense. No fim de semana dos dias 14 e 15 de outubro, assistimos aos primeiros sinais deste movimento na sua fase atual. Em todo o mundo, centenas de milhares – talvez milhões – foram às ruas para marchar. Sana'a, Bagdá, Rabat e Amã encheram-se de manifestantes até onde a vista pudesse alcançar, provocando arrepios nos governantes da região, que percebem a ligação entre as exigências de suas populações pela libertação da palestina e as demandas por sua própria libertação. Em Londres, Amsterdã, Paris e Berlim, em Nova Iorque, Bruxelas e Roma, na Cidade do Cabo, em Tunes e Nairobi, em Sidney e Santiago, as pessoas saíram à rua para exigir o fim da ofensiva, o fim do cerco e uma Palestina livre.

Essas cenas foram extraordinárias – mas só elas não serão suficientes. Nos Estados Unidos, os ativistas têm como alvo os gabinetes dos principais formuladores políticos, organizando protestos e ocupações, exigindo que deixem de apoiar os crimes de Israel e tomem medidas para pôr fim à agressão. Envergonhar os políticos desta forma será uma tática importante nos próximos dias e semanas. A história recente do movimento de solidariedade oferece outros métodos que também revelam-se eficazes. No Reino Unido, a Palestine Action passou anos mirando fábricas de armamento e impedindo a produção de armas destinadas a serem utilizadas contra os palestinos. Os estivadores na Itália, na África do Sul e nos EUA recusaram-se a manusear carga israelense durante anteriores ataques militares a Gaza, interrompendo o fluxo de bens e armas para o país. Durante o inverno de 2008-9, quando Israel lançou o seu primeiro ataque maciço à Faixa de Gaza, na sequência da imposição do bloqueio três anos antes, estudantes de todo o Reino Unido ocuparam os seus campus, apelando a que as suas universidades mostrassem uma solidariedade concreta com os palestinos e a que seu governo cortasse os laços diplomáticos com o país. Utilizaram os espaços ocupados para organizar conferências, discussões e debates. Num contexto de crescente repressão contra o movimento de solidariedade com a Palestina, estes espaços poderão voltar a desempenhar um papel crucial na organização de rua.

Cabe aos próprios ativistas decidirem quais os métodos mais adequados aos seus contextos locais e nacionais. No entanto, em termos gerais, não pode haver um regresso à normalidade. Temos a obrigação coletiva de aumentar a pressão sobre os nossos governos, e sobre o próprio Estado de Israel, para que ponham fim ao genocídio e aos deslocamentos em massa. No Reino Unido, vários sindicatos expressaram o seu apoio às manifestações, bem como a sua preocupação com a situação em Gaza. Esta preocupação poderá traduzir-se em intervenções significativas? Poderão os militantes sindicais passar de declarações de solidariedade a ações laborais de solidariedade? Se os palestrantes e os professores, os estivadores e os maquinistas de trem – para citar apenas alguns dos que compareceram ao comício em Londres – pudessem organizar paralisações nos locais de trabalho, exigindo que o governo reverta a sua posição e ponha fim ao assassinato em massa em curso, então os líderes britânicos não teriam espaço político para dar carta branca a Israel.

Hoje, os sindicatos palestinos apelam aos sindicalistas de todo o mundo para que demonstrem a sua solidariedade, recusando-se a continuar com o fornecimento de armas a Israel. Pediram aos trabalhadores das indústrias relevantes que assumissem os seguintes compromissos:

  1. Recusar a fabricação de armas destinadas a Israel.
  2. Recusarem-se a transportar armas para Israel.
  3. Que aprovem moções nos seus sindicatos para este fim.
  4. Tomar medidas contra as empresas cúmplices, envolvidas na implementação do cerco brutal e ilegal de Israel, especialmente se tiverem contratos com as suas instituições.
  5. Pressionar os governos para que ponham fim a todo o comércio militar com Israel e, no caso dos EUA, ao seu financiamento.

Estas exigências devem ser levadas agora aos locais de trabalho e aos sindicatos de todo o Ocidente, onde encontrarão aliados importantes entre as campanhas existentes contra o comércio de armas. Os pontos quatro e cinco não são específicos do setor e podem ter uma aplicação muito mais ampla em todo o movimento sindical.  

A tarefa que temos pela frente é clara. O genocídio, a limpeza étnica e uma segunda Nakba não são atos de Deus. Podem ser evitados. Até agora, os nossos governos têm-se recusado a levantar objeções. Lembremos-lhes os custos da sua cumplicidade.

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