27 de janeiro de 2023

Haddad promete reforma com carga tributária mantida e marco fiscal

Mudanças vão "sem dúvida" reduzir pressão inflacionária e facilitar controle dos juros, diz ministro

Por Fabio Murakawa, Estevão Taiar, Matheus Schuch e Fernando Exman


O ministro Fernando Haddad: "A primeira etapa [da reforma tributária] é adotar o IVA sem aumentar a carga" — Foto: Wenderson Araujo/Trilux

A reforma tributária manterá a carga de impostos no nível atual, o que ajudará a colocar o Brasil em uma trajetória fiscal sustentável. Combinada com a aprovação conjunta do novo arcabouço fiscal ainda no primeiro semestre, as mudanças "sem dúvida" diminuirão pressões inflacionárias e, consequentemente, facilitarão a condução da taxa básica de juros pelo Banco Central (BC). As afirmações foram feitas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista exclusiva concedida ao Valor. Para ele, os últimos atos do governo Bolsonaro e as invasões realizadas no começo do mês em Brasília abrem espaço para a atual gestão ampliar a sua base de apoio no Congresso Nacional.

Em junho, o Conselho Monetário Nacional (CMN), do qual Haddad faz parte, se reunirá para decidir a meta de inflação de 2026. Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou os atuais patamares das metas de inflação, que estão em 3,25% para este ano e em 3% tanto para 2024 quanto para 2025. Mas economistas como o ex-presidente do BC Affonso Celso Pastore afirmam que elevar a meta em meio à piora das expectativas "equivale a tentar apagar o fogo com gasolina".

Segundo o ministro da Fazenda, é importante observar o que acontece no exterior para decidir o nível de inflação a ser perseguido. Mas ele destacou que o comportamento das expectativas também será essencial para a decisão da meta de 2026.

Sobre o arcabouço fiscal, Haddad disse que estão sendo levadas em conta propostas apresentadas ainda no ano passado por técnicos das secretarias do Tesouro Nacional e de Política Econômica e que debaterá o texto com economistas não alinhados ao governo.

Já a política de preços da Petrobras, segundo ele, viveu o seu melhor momento nos dois primeiros mandatos de Lula, indicando que esse pode ser um caminho a ser perseguido pela companhia.

Ainda sobre o BC, Haddad defendeu que seja escolhido um nome de perfil "técnico" e com conhecimento da mesa de operações para a diretoria de política monetária, que ficará vaga no próximo mês. Por fim, afirmou que o formato do Desenrola, programa de renegociação de dívidas, está alinhado com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Os "parâmetros" do texto serão discutidos com Lula na semana que vem.

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Qual é a agenda que o senhor está trabalhando para a reforma tributária?

Acredito que seja possível votar até abril, pelo menos na Câmara dos Deputados. [Será possível aprovar] se houver uma boa negociação entre Câmara e Senado e o entendimento dos líderes de que a discussão está madura e que de fato temos alguns nós para desatar, mas que há maturidade sobre o cenário traçado e as direções políticas que têm que ser tomadas. Há um período de transição que pode calibrar temores de alguns setores. Eu acredito que estamos muito aptos a votar no primeiro semestre. Sendo otimista, acredito que seria possível até abril nós votarmos na Câmara. Pelo menos no primeiro semestre, acredito que seja possível. Eu vou lutar para que a gente vote rapidamente isso.

Há duas propostas tramitando no Congresso...

Eu vejo méritos nas duas propostas. O governo anterior implodiu a reforma tributária. Esse é o depoimento de todos os parlamentares com quem eu converse. Até a ministra Simone Tebet (Planejamento) me relatou que, como senadora, testemunhou a implosão da votação na CCJ.

A reforma, como estava, é um bom caminho?

Primeiro, mudou o governo. E o Congresso. Segundo, nós temos a felicidade de contar com o Bernard Appy, que é uma liderança importante nos debates sobre esse assunto na equipe da Fazenda. E que trouxe pessoas que estão há anos ruminando e oferecendo soluções para os entraves, que são de natureza técnica e política e que podem ser superados. E outra questão é o seguinte: se nós tivermos a dimensão do que seria aprovar reforma tributária e o arcabouço fiscal agora, em termos de impacto no PIB potencial desse país, nós não podemos contornar essa agenda. Essa é a agenda que vai, efetivamente, representar uma melhoria substancial do ambiente econômico no Brasil.

Dá pra fazer as duas coisas em paralelo, o arcabouço e a reforma até abril na Câmara?

Dá, eu acredito que a PEC da Transição prevê o encaminhamento do arcabouço fiscal até agosto e nós estamos compreendendo que devemos mandar antes. Faz todo o sentido nós aprovarmos as duas concomitantemente. Porque aí o país vai fixar a receita e despesa do Estado brasileiro num horizonte de zerar o déficit herdado da irresponsabilidade de 2022, que foi perpetrada contra este país para reverter o quadro eleitoral. Com o novo arcabouço, você vai ter, de um lado, o tamanho do Estado brasileiro definido ali, da União, sobretudo. E, do outro lado, a dinâmica de receita e despesa de maneira a dar previsibilidade e credibilidade para as finanças públicas brasileiras. Não tem o que faça o Brasil não crescer num cenário internacional que está se tornando favorável pra nós.

O Congresso vai ser chamado a pensar o novo arcabouço?

O arcabouço é menos do que se imagina. Se perguntar "teto de gastos", é uma frase. O que nós vamos propor é um substituto para o teto de gastos que faça mais sentido. É melhor, para todos os efeitos, de construção de reputação. Você se propor uma coisa que seja exigente, sim, mas confiável, do ponto de vista do atingimento da meta. E eu dizia que há outras fórmulas que respeitem a evolução pretendida das despesas públicas, das receitas públicas, que conforma o cenário de estabilidade macroeconômica mas que seja factível.

Por exemplo?

As minhas ideias podem até ser recuperadas de 2018, mas naquela situação eu estava na condição de candidato a presidente. Hoje eu sou ministro da Fazenda, não quero atropelar a equipe que está trabalhando neste momento nos cenários de regra fiscal, mas com esse compromisso de que mostrem para o Brasil uma trajetória de credibilidade, sustentabilidade. Eu também preciso apresentar para o governo [antes].

A gente segue não entendendo o que pensa o governo sobre o arcabouço, pelo menos alguns pilares, algumas questões conceituais...

Não é um debate que envolve só posição ideológica, é um debate técnico, que precisa ser apurado. E aí o governo é que vai encaminhar como um todo a regra fiscal. Nós estamos antecipando [o prazo de apresentação] justamente atendendo a esse tipo de comentário que você fez. Eu acredito que vai ser bom para o país antecipar.

Vai antecipar para abril?

Abril, se ficar pronto antes, vai antes. Mas estou dando abril pra não frustrar expectativas. Quando nós tivermos uma posição fechada no ministério, vamos encaminhar para a Presidência da República, certamente o presidente vai tomar parte nessa discussão.

As propostas que vinham sendo discutidas antes dentro do ministério serão aproveitadas?

Eu pedi justamente para que essa equipe pudesse reunir todas essas propostas, inclusive o que era público na forma de artigos de jornal. Houve vários economistas famosos que deram sua opinião sobre qual deveria ser a regra fiscal que substituísse o teto. Se você fizer um levantamento, vai verificar. Eu pedi para levar todas as contribuições em consideração, para que a equipe apresentasse os cenários e a gente pudesse estressar o debate interno de modo a encaminhar para a Presidência com bastante convicção de que aquela regra é boa para o país.

Um receio em relação à reforma é o possível aumento da carga. Ela será neutra nesse aspecto?

Nós não estamos na perspectiva de mexer com carga. Até porque os impostos sobre o consumo no Brasil já estão suficientemente altos. Se nós queremos nos aproximar das boas práticas internacionais, faz todo o sentido adotar o IVA e nenhum sentido aumentar a carga a partir do IVA. Seria um contrassenso.

A reforma tornará mais possível tributar menos o consumo e mais a renda?

Tudo ao seu tempo. A primeira etapa é adotar o IVA sem aumentar a carga. Se nós formos bem-sucedidos, na segunda etapa nós podemos até rever as alíquotas da primeira. É assim que está organizado o debate.

Essa segunda etapa pode travar no Congresso?

Eu não sei, porque nós estamos começando a elaborar a proposta da segunda etapa. E não queremos que elas se encavalem. Porque senão a gente não vai conseguir aprovar a primeira. Agora o debate volta para o Congresso. Vamos nos reunir com os presidentes eleitos da Câmara e do Senado, sentar com os relatores, estabelecer um calendário. E aí uma equipe vai discutir com o Congresso os detalhes dessa reforma, enquanto outra trabalha a segunda etapa, que só virá a público depois de aprovada a primeira etapa.

O senhor falava em uma reestimativa de arrecadação de R$ 36 bilhões...

Isso já está contratado, R$ 36 bilhões é um cálculo do próprio Tesouro. Acredito, inclusive, que [a receita] será maior. Acredito piamente. Tem que ver a reação da economia à política monetária. Eu cuido da parte fiscal. E a política monetária afeta produto.

Quão maior?

Eu não quero me antecipar. Nós estamos divulgando números à medida que eles se consolidam, para não ter que depois reverter. Esses R$ 36 bilhões já estão contratados. Está vindo aí a receita de janeiro. Vem bem, mas vamos ver como fecha o mês.

A MP da desoneração dos combustíveis tem 60 dias de validade. Dá tempo para achar uma solução e voltar a cobrar os impostos?

O petróleo está em um patamar de US$ 85 o barril, mas o dólar vem caindo no Brasil. O dólar chegou a quase R$ 5,80. Quando nós assumimos, estava a R$ 5,29. Hoje, está em R$ 5,07. E tem as boas notícias surgindo, a possibilidade de os emergentes terem um ano interessante está se consolidando.

O senhor está dizendo que, com esse cenário melhor, com dólar em queda, preço razoável do petróleo, o impacto da volta desses impostos não seria tão grande?

O que eu estou querendo dizer é que melhoram as condições de gestão da empresa [Petrobras]. Uma coisa é uma empresa que trabalha com produto importado sujeito a choques externos, como o preço do petróleo a US$ 140, como já vimos. Agora, você tem um petróleo mais barato, com um real eventualmente em um patamar com menos expectativa de uma desvalorização, ou até com uma expectativa de uma pequena valorização, como tem acontecido recentemente com algumas moedas recentemente, da América Latina, inclusive.

O governo pode, a partir de março, continuar abrindo mão dessa receita?

Eu não vou me antecipar a uma decisão que cabe ao governo tomar. A Fazenda sempre se manifesta, mas a palavra final é do governo como um todo.

Dá para dizer, a partir do que o senhor, o Jean Paul Prates [que vai assumir como presidente da estatal] e o presidente pensam, que a política de preços da Petrobras será alterada no governo Lula?

Vamos aguardar o Jean Paul assumir. O papel do ministério é levar subsídios para a melhor decisão possível. Eu concordo que a política de preços da Petrobras durante o governo Lula foi melhor do que a política de preços da Petrobras depois do governo Lula. Eu participei daquele governo e concordo com a maneira como o governo Lula procedeu. Não só do ponto da política de preços, mas na política de investimentos.

O Banco Central deveria repensar a trajetória da Selic?

É muito difícil eu dizer o que o BC tem de fazer. O que tenho que fazer por dever é, primeiro, constatar os fatos. Herdamos problema fiscal criado pelo governo anterior para reverter quadro eleitoral desfavorável. Quando falo isso, não faço crítica ou elogio, estou constatando que a taxa de juros foi de 2% para 13,75%.

O senhor acha que está exagerada a Selic diante da realidade macroeconômica?

Quando você me pergunta isso, quer que eu faça um juízo de valor que eu não quero fazer. Quero que a sociedade tenha acesso aos dados. Qual é a situação? O governo anterior desarrumou o Orçamento federal em uma ordem de grandeza que tornou a gestão macroeconômica muito mais complexa. E isso teve um rebatimento na taxa de juros, é um fato. O que me cabe é tomar medidas para resolver o problema fiscal herdado e concorrer para harmonização da política fiscal com a política monetária, que se divorciaram de dois anos para cá. O fiscal foi para um lado, monetário para o outro e a conta chegou.

O senhor vai participar do debate sobre meta de inflação. O que o senhor pensa para a reunião de junho do CMN?

Uma meta de inflação tem que ser demandante, exigente. Senão, qual o sentido de uma meta? Ela tem que ser exigente. E factível, alcançável. Se é uma meta muito exigente e não alcançável, não é uma meta boa. Se ela é uma meta não exigente, não cumpre a função que é controlar a inflação.

O senhor considera 3% uma meta muito exigente?

Nós tivemos dois anos de não cumprimento das metas. Vamos verificar no fim do ano o que vai se passar. Agora, a gente não pode só ver o que está acontecendo hoje, se vamos para um terceiro ano de não cumprimento das metas. Temos que verificar como os agentes estão percebendo esta convergência antes de tomar qualquer decisão. Pode ser que a gente verifique que esteja havendo uma convergência salutar para a economia brasileiro, temos que dar tempo para, no momento adequado, o calendário estabelecido, nós definirmos a meta dos próximos anos.

A reunião do CMN em junho e a apresentação do novo arcabouço fiscal em abril, com a aprovação da reforma tributária, criaria um ambiente...

Não tenho dúvida de que podemos organizar a bagunça herdada, com bom senso no Congresso. É evidente que as decisões tomadas machucaram a economia brasileira. A taxa de juros, o déficit público no patamar que está, ninguém gosta disso. Por isso estamos tentando fazer uma política para harmonizar estes instrumentos. A agenda que está dada, de novo arcabouço fiscal, reforma tributária, a volta do CMN da maneira como estava organizado, temos toda a condição, se a agenda política permitir, de este ano arrumar a casa para muitos anos.

O governo vai ter trabalho para construir esta agenda com o Congresso que foi eleito?

Eu acredito que tem espaço para o governo ampliar a sua base de apoio, sobretudo pelo comportamento do governo derrotado. O abandono do país, o abandono de populações vulneráveis, o descaso com as contas públicas e a transparência, o descaso com o patrimônio público nas invasões de correligionários. Isso tudo, que é muito lamentável, dá ao governo a possibilidade de ampliar sua base e se mostrar como um governo amplo, que tem lado, mas de angariar apoio para essas camadas da população que foram muito prejudicadas pelo projeto que se encerrou. Agora temos um presidente de verdade e uma pessoa desclassificada que deixou a Presidência de forma ruidosa.

O presidente Lula gostaria de anunciar um aumento do salário mínimo em 1º de maio...

Temos trabalhado intensamente nisso. Tive reunião hoje [ontem] na Casa Civil. Estamos mapeando todas as pressões. O anúncio pode ser feito em um [único] dia, [mas] precisa caber dentro das decisões todas que serão tomadas em relação a outras rubricas.

Entre essas rubricas, está a questão do Imposto de Renda?

Nós não trabalhamos caso a caso. Temos um todo para organizar. Preciso partir do mapeamento para organizar o ano. Chegar em dezembro com tudo nos conformes. Estamos terminando o mapeamento para apresentar uma solução global.

O Desenrola vai ser lançado agora?

Nós vamos apresentar o desenho para o presidente na semana que vem. Mas a arquitetura do programa está pronta, está fechada com Caixa, Banco do Brasil, e a Febraban também participou.

O senhor acredita que os bancos privados vão aderir?

Um banco pode aderir ao Desenrola na condição de dono de um crédito que ele quer negociar com o programa. Ou não. A outra coisa é ele refinanciar o programa com fundo garantidor. Porque ele pode estar renegociando um crédito que não é dele, que foi comprado pelo programa.

O fato de ser citado como possível candidato a sucessor de Lula pode prejudicar o seu trabalho na interlocução com o Congresso?

Eu realmente acho de uma precipitação total tratar deste assunto em janeiro de 2023. Nós temos muitos problemas para resolver. Vamos criar mais um? Este não é um problema. Vamos tratar dos problemas que a gente tem, depois a gente inventa outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...