António Guterres
António Guterres é o secretário-geral das Nações Unidas.
Famílias palestinas caminhando pelas ruas da cidade, a maioria carregando sacolas com pertences. Créditos: Mahmud Hams/Agence France-Presse — Getty Images |
A ordem dada na noite de quinta-feira pelas Forças de Defesa de Israel aos palestinianos em Gaza para evacuarem as suas casas dentro de 24 horas foi perigosa e profundamente preocupante. Qualquer exigência de evacuação em massa num prazo extremamente curto poderá ter consequências humanitárias devastadoras.
A ordem de evacuação aplica-se a aproximadamente 1,1 milhão de pessoas. Aplica-se a um território já sitiado, sob bombardeamentos aéreos e sem combustível, eletricidade, água e alimentos. Aplica-se a um território que sofreu danos críticos em estradas e infraestruturas na semana passada, tornando o ato de evacuação quase impossível. Aplica-se a funcionários das Nações Unidas e a mais de 200 mil pessoas que estão abrigadas em instalações da ONU, incluindo escolas, centros de saúde e clínicas. Aplica-se a centenas de milhares de crianças: quase metade da população de Gaza tem menos de 18 anos.
Enquanto secretário-geral das Nações Unidas, apelo às autoridades israelitas para que reconsiderem.
Aproximamo-nos de um momento de escalada calamitosa e encontramo-nos numa encruzilhada crítica. É imperativo que todas as partes — e aqueles que têm influência sobre elas — façam todo o possível para evitar mais violência ou a disseminação do conflito à Cisjordânia e a toda a região.
Precisamos urgentemente de encontrar uma saída para este desastroso beco, antes que se percam mais vidas.
Existem várias prioridades nas quais nos concentrarmos neste momento, para tirar o mundo deste abismo. As Nações Unidas e os nossos parceiros precisam, neste momento, de acesso humanitário rápido e desimpedido em toda a Faixa de Gaza. A ajuda humanitária, incluindo combustível, alimentos e água, deve ser autorizada a entrar.
Todos os reféns em Gaza devem ser libertados. Os civis não devem ser usados como escudos humanos.
O direito humanitário internacional — incluindo as Convenções de Genebra — deve ser respeitado e defendido. Os civis de ambos os lados devem ser sempre protegidos. Hospitais, escolas, clínicas e instalações das Nações Unidas não podem ser alvos. Lamento profundamente a morte dos meus colegas em Gaza na última semana. E ainda assim, o pessoal das Nações Unidas trabalha sem parar para apoiar o povo de Gaza. Continuaremos a fazê-lo.
Tenho estado em contato constante com os líderes da região. É claro que a agitação em curso no Médio Oriente está a polarizar comunidades em todo o mundo, a alargar as divisões e a espalhar e amplificar o ódio. Se a verdade é a primeira vítima da guerra, a razão não fica muito atrás.
Estou horrorizado por ouvir a linguagem do genocídio a entrar no discurso público. As pessoas estão a perder de vista a humanidade umas das outras. Não se pode permitir que a brutalidade e a violência obscureçam uma verdade fundamental: somos todos produto das nossas realidades vividas e da nossa história coletiva.
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset defenia-o desta forma: "Yo soy yo y mi circunstancia" – "Eu sou eu mesmo e as minhas circunstâncias" e, por vezes, essas circunstâncias são insuportáveis.
Quando me ponho no lugar de um judeu israelita, sinto os horrores recentes no contexto de dois milénios de discriminação, expulsão, exílio e extermínio, que conduziram ao Holocausto. Durante o século XV, o meu próprio país, Portugal, expulsou ou converteu à força a sua comunidade judaica e, após um período de discriminação, eles foram forçados a partir. Como judeu israelita, estou dolorosamente consciente de que alguns na nossa vizinhança não reconhecem o direito de Israel existir.
E se hoje, como judeu israelita, vejo jovens massacrados num concerto, avós baleadas a sangue-frio nas suas casas e dezenas de civis, incluindo crianças, brutalmente raptados e mantidos sob a mira de uma arma, é natural que sinta uma enorme dor, insegurança e, sim, fúria cega.
Depois tento considerar as circunstâncias do outro lado: se eu fosse um palestiniano a viver em Gaza. A minha comunidade foi marginalizada e esquecida durante gerações. Os meus avós podem ter sido forçados a abandonar as suas aldeias e casas. Se eu tiver sorte, os meus filhos já sobreviveram a várias guerras que arrasaram os seus bairros e mataram os seus amigos.
Enquanto palestiniano, não tenho para onde ir e não tenho nenhuma solução política à vista. Vejo o processo de paz essencialmente ignorado pela comunidade internacional, com cada vez mais colonatos, cada vez mais despejos e ocupações intermináveis. É natural que eu sinta uma enorme sensação de dor, insegurança e, novamente, uma fúria cega.
É evidente que as queixas sentidas pelo povo palestiniano não justificam o terror que foi desencadeado contra os civis em Israel. Mais uma vez condeno veementemente os ataques repugnantes do Hamas e de outros que aterrorizaram Israel.
E é evidente que os atos horríveis do Hamas não justificam uma resposta baseada numa punição coletiva do povo palestiniano.
Mas qualquer solução para esta trágica provação de morte e de destruição que dura há décadas exige o pleno reconhecimento das circunstâncias tanto dos israelitas como dos palestinianos, tanto das suas realidades como das suas perspetivas.
Não podemos ignorar o poder e a atração da memória coletiva; as circunstâncias que moldam e definem a nossa identidade e a nossa própria essência.
Israel deve ver as suas necessidades legítimas de segurança materializadas, e os palestinianos devem ver uma perspetiva clara para o estabelecimento do seu próprio Estado, em conformidade com as resoluções das Nações Unidas, o direito internacional e acordos anteriores. Se a comunidade internacional acredita verdadeiramente nestes dois objectivos, precisamos de encontrar uma forma de trabalhar em conjunto para encontrar soluções reais e duradouras – soluções que se baseiem na nossa humanidade comum e que reconheçam a necessidade de as pessoas viverem juntas, apesar das histórias e das circunstâncias. que os separam.
A citação de Ortega y Gasset conclui: "Y si no la salva a ella, no me salvo yo". ("Se eu não salvar minhas circunstâncias, não posso me salvar.")
Este ciclo horrível de violência e de derramamento de sangue cada vez maiores tem de acabar. É claro que as duas partes neste conflito não podem alcançar uma solução sem uma ação concertada e um forte apoio da nossa parte, a comunidade internacional. Essa é a única forma de garantir qualquer hipótese de segurança e de oportunidades tanto para israelitas como para palestinianos.
António Guterres é o secretário-geral das Nações Unidas.
A ordem de evacuação aplica-se a aproximadamente 1,1 milhão de pessoas. Aplica-se a um território já sitiado, sob bombardeamentos aéreos e sem combustível, eletricidade, água e alimentos. Aplica-se a um território que sofreu danos críticos em estradas e infraestruturas na semana passada, tornando o ato de evacuação quase impossível. Aplica-se a funcionários das Nações Unidas e a mais de 200 mil pessoas que estão abrigadas em instalações da ONU, incluindo escolas, centros de saúde e clínicas. Aplica-se a centenas de milhares de crianças: quase metade da população de Gaza tem menos de 18 anos.
Enquanto secretário-geral das Nações Unidas, apelo às autoridades israelitas para que reconsiderem.
Aproximamo-nos de um momento de escalada calamitosa e encontramo-nos numa encruzilhada crítica. É imperativo que todas as partes — e aqueles que têm influência sobre elas — façam todo o possível para evitar mais violência ou a disseminação do conflito à Cisjordânia e a toda a região.
Precisamos urgentemente de encontrar uma saída para este desastroso beco, antes que se percam mais vidas.
Existem várias prioridades nas quais nos concentrarmos neste momento, para tirar o mundo deste abismo. As Nações Unidas e os nossos parceiros precisam, neste momento, de acesso humanitário rápido e desimpedido em toda a Faixa de Gaza. A ajuda humanitária, incluindo combustível, alimentos e água, deve ser autorizada a entrar.
Todos os reféns em Gaza devem ser libertados. Os civis não devem ser usados como escudos humanos.
O direito humanitário internacional — incluindo as Convenções de Genebra — deve ser respeitado e defendido. Os civis de ambos os lados devem ser sempre protegidos. Hospitais, escolas, clínicas e instalações das Nações Unidas não podem ser alvos. Lamento profundamente a morte dos meus colegas em Gaza na última semana. E ainda assim, o pessoal das Nações Unidas trabalha sem parar para apoiar o povo de Gaza. Continuaremos a fazê-lo.
Tenho estado em contato constante com os líderes da região. É claro que a agitação em curso no Médio Oriente está a polarizar comunidades em todo o mundo, a alargar as divisões e a espalhar e amplificar o ódio. Se a verdade é a primeira vítima da guerra, a razão não fica muito atrás.
Estou horrorizado por ouvir a linguagem do genocídio a entrar no discurso público. As pessoas estão a perder de vista a humanidade umas das outras. Não se pode permitir que a brutalidade e a violência obscureçam uma verdade fundamental: somos todos produto das nossas realidades vividas e da nossa história coletiva.
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset defenia-o desta forma: "Yo soy yo y mi circunstancia" – "Eu sou eu mesmo e as minhas circunstâncias" e, por vezes, essas circunstâncias são insuportáveis.
Quando me ponho no lugar de um judeu israelita, sinto os horrores recentes no contexto de dois milénios de discriminação, expulsão, exílio e extermínio, que conduziram ao Holocausto. Durante o século XV, o meu próprio país, Portugal, expulsou ou converteu à força a sua comunidade judaica e, após um período de discriminação, eles foram forçados a partir. Como judeu israelita, estou dolorosamente consciente de que alguns na nossa vizinhança não reconhecem o direito de Israel existir.
E se hoje, como judeu israelita, vejo jovens massacrados num concerto, avós baleadas a sangue-frio nas suas casas e dezenas de civis, incluindo crianças, brutalmente raptados e mantidos sob a mira de uma arma, é natural que sinta uma enorme dor, insegurança e, sim, fúria cega.
Depois tento considerar as circunstâncias do outro lado: se eu fosse um palestiniano a viver em Gaza. A minha comunidade foi marginalizada e esquecida durante gerações. Os meus avós podem ter sido forçados a abandonar as suas aldeias e casas. Se eu tiver sorte, os meus filhos já sobreviveram a várias guerras que arrasaram os seus bairros e mataram os seus amigos.
Enquanto palestiniano, não tenho para onde ir e não tenho nenhuma solução política à vista. Vejo o processo de paz essencialmente ignorado pela comunidade internacional, com cada vez mais colonatos, cada vez mais despejos e ocupações intermináveis. É natural que eu sinta uma enorme sensação de dor, insegurança e, novamente, uma fúria cega.
É evidente que as queixas sentidas pelo povo palestiniano não justificam o terror que foi desencadeado contra os civis em Israel. Mais uma vez condeno veementemente os ataques repugnantes do Hamas e de outros que aterrorizaram Israel.
E é evidente que os atos horríveis do Hamas não justificam uma resposta baseada numa punição coletiva do povo palestiniano.
Mas qualquer solução para esta trágica provação de morte e de destruição que dura há décadas exige o pleno reconhecimento das circunstâncias tanto dos israelitas como dos palestinianos, tanto das suas realidades como das suas perspetivas.
Não podemos ignorar o poder e a atração da memória coletiva; as circunstâncias que moldam e definem a nossa identidade e a nossa própria essência.
Israel deve ver as suas necessidades legítimas de segurança materializadas, e os palestinianos devem ver uma perspetiva clara para o estabelecimento do seu próprio Estado, em conformidade com as resoluções das Nações Unidas, o direito internacional e acordos anteriores. Se a comunidade internacional acredita verdadeiramente nestes dois objectivos, precisamos de encontrar uma forma de trabalhar em conjunto para encontrar soluções reais e duradouras – soluções que se baseiem na nossa humanidade comum e que reconheçam a necessidade de as pessoas viverem juntas, apesar das histórias e das circunstâncias. que os separam.
A citação de Ortega y Gasset conclui: "Y si no la salva a ella, no me salvo yo". ("Se eu não salvar minhas circunstâncias, não posso me salvar.")
Este ciclo horrível de violência e de derramamento de sangue cada vez maiores tem de acabar. É claro que as duas partes neste conflito não podem alcançar uma solução sem uma ação concertada e um forte apoio da nossa parte, a comunidade internacional. Essa é a única forma de garantir qualquer hipótese de segurança e de oportunidades tanto para israelitas como para palestinianos.
António Guterres é o secretário-geral das Nações Unidas.
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