13 de outubro de 2023

Esquerda perde monopólio das ruas, vê direita sair do armário e vive paradoxo da ordem

Disputa com bolsonarismo empurrou campo progressista para papel de defesa do sistema

Uirá Machado 


A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foi dividida ao meio no dia 17 de abril de 2016. De um lado ficou quem pedia o impeachment de Dilma Rousseff (PT); do outro cerraram fileiras os defensores da presidente.

Seria uma cena impensável poucos anos antes. Desde as lutas pela redemocratização, na década de 1980, as ruas do Brasil conheciam apenas um protagonista nas manifestações políticas e sociais: a esquerda.

Manifestantes a favor e contra o impeachment de Dilma se dividem na Esplanada dos Ministérios durante votação na Câmara - Diego Padgurschi-17.abr.16/Folhapress

"A direita estava dentro do armário, por conta da associação com o período autoritário da ditadura", diz a cientista política Lilian Sendretti, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

A esquerda, por sua vez, ocupava o espaço público na campanha das Diretas Já, nos protestos contra Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e em inúmeras manifestações por direitos sociais.

Mas as Jornadas de Junho de 2013 e o "fora, Dilma" mostraram que as ruas não tinham dono. Diversos grupos de direita entraram na disputa pelo espaço; alguns o fizeram num marco democrático, enquanto outros, extremistas, ergueram a bandeira da intervenção militar.

Muitos pareciam ter perdido a vergonha da memória da ditadura, em uma inversão do sentido histórico que ganhou impulso com Jair Bolsonaro (PL). Para Sendretti, esses momentos consolidaram um processo que começou antes.

"Desde o primeiro governo Lula, grupos antiesquerdistas, digamos assim, começaram a ocupar as ruas, mesmo que de maneira tímida", afirma a pesquisadora, referindo-se sobretudo a atos na esteira do mensalão.

Embora essas mobilizações tivessem densidade inferior às da esquerda, elas indicavam certa efervescência no campo da direita. De acordo com a pesquisa de Sendretti, o ponto de ebulição chegou depois da reeleição de Dilma.

"A partir de 2015, a dinâmica da mobilização de rua se alterou, e o campo progressista passou a ter o seu protagonismo mais ameaçado", afirma a cientista política. "A direita, pela primeira vez desde a redemocratização, tem um protagonismo nas ruas."

A imagem da Esplanada dos Ministérios dividida ilustra o ponto de Sendretti de duas formas: por mostrar a direita de igual para igual na disputa do espaço público e por lembrar que a esquerda pode ter perdido o monopólio das ruas, mas não as abandonou.

Tanto que, pelos registros da pesquisadora, só em 2022 a direita (extremista) volta a mobilizar mais protestos que a esquerda. Nos demais anos, há lavadas progressistas –como em 2018, com mais de 4 manifestações para cada 1 conservadora— e vitórias apertadas, com em 2019 a 2021.

Para o cientista político João Feres Júnior, que é professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), alguns fatores explicam esse quadro dos últimos dez anos, caracterizado pela retração da esquerda e expansão da direita. A começar pelos recursos.

"A esquerda perdeu muitos recursos de mobilização com o enfraquecimento dos sindicatos devido ao fim do imposto sindical obrigatório", diz ele. Antes disso, os sindicatos já se debilitavam com a precarização do mundo do trabalho.

"Não podemos esquecer que os sindicatos foram a espinha dorsal dos movimentos sociais que empurraram a pauta da democracia nas ruas do final da década de 1970 até o malfadado junho de 2013", afirma.

Além disso, tendo vencido eleições em sequência, o PT, principal partido da esquerda brasileira, carregou parte da militância para a máquina administrativa, tirando vigor dos movimentos.

A direita, por sua vez, aproveitou a janela de oportunidade e atraiu um conjunto de forças sociais e políticas que tinham em comum o sentimento antipetista: elites empresariais, religiosas e do sistema de Justiça, grupos ultraliberais, parte dos políticos e da imprensa.

Daí partiram, segundo Feres Júnior, os recursos necessários às passeatas pelo impeachment de Dilma e às mobilizações subsequentes até a eleição de Bolsonaro.

"Uma vez eleito, Bolsonaro inaugurou uma fase 2.0 da mobilização da extrema direita, pois pôde usar os recursos estatais para promovê-la, ao passo que continuou a contar com boa parte dos apoiadores da coalizão que se juntou para retirar o PT do poder", afirma.

De acordo com o professor da Uerj, a correlação de forças muda novamente no terceiro governo Lula, mas não é fácil antecipar a resultante.

De um lado, a direita perdeu recursos estatais e se retraiu depois da intentona golpista de 8 de janeiro; de outro, os canais de comunicação do bolsonarismo –objeto de pesquisa contínua de Feres Júnior— não deixaram de disseminar desinformação.

Quanto à esquerda, o problema de recursos dos sindicatos não se resolveu, ao passo que o PT no poder voltou a representar um fator de desmobilização relativa.

O cientista político Rudá Ricci acrescenta camadas ao problema da esquerda. Não se trata apenas de perder espaço nas ruas; para ele, existem também derrotas no campo dos valores.

"A esquerda tinha a hegemonia cultural do país, mesmo durante a ditadura. Valores religiosos, teatro, música, artes plásticas, cinema, mundo acadêmico, enfim, a produção cultural mais valorizada apresentava fortes traços de esquerda", diz Ricci, presidente do Instituto Cultiva.

Ele considera que mudanças como a dispersão da força de trabalho em aplicativos e outras modalidades de empreendedorismo atingiram em cheio as bases teóricas e sociais que fundamentavam a ação da esquerda.

O trabalho assalariado não atrai mais o jovem; valores como esforço próprio, a defesa da família e da ordem, associados ao liberalismo e ao individualismo, tornaram-se mais relevantes na periferia, fechando as portas para um discurso voltado ao coletivo.

Além disso, houve uma espécie de inversão de papéis entre esquerda e direita nos últimos anos.

"A ampla coalizão lulista aproxima o PT de algo como um ‘partido da ordem’, fiador do equilíbrio de forças. O PT, em certa medida, se tornou o principal garantidor do pacto estabelecido com a Nova República", diz Ricci.

Isso num dos países mais desiguais do mundo, em que frustrações continuam se acumulando.

"O que resta? O esforço pessoal e a revolta. Quem canaliza a revolta nos últimos tempos é a extrema direita", afirma o cientista político, para quem "a esquerda precisa se reinventar".

Ou, na visão de Jonas Medeiros, pesquisador do Cebrap, a esquerda precisa resgatar certas atitudes que a caracterizavam até um passado recente e que, na disputa com o bolsonarismo, caíram no colo da extrema direita. A situação, contudo, envolve paradoxos e contrassensos.

Seguindo os ensinamentos de Olavo de Carvalho (1947-2022), a candidatura Bolsonaro se apresentou como antissistêmica: "Mas seu objetivo era legitimar posições sociais bastante dominantes nas relações de gênero e sexualidade, étnico-raciais e até geracionais", diz Medeiros.

De acordo com o pesquisador, a extrema direita empurrou a esquerda para a posição de defensora da ordem ao atacar a democracia e o sistema desenhado na Constituição de 1988, que institucionalizou direitos inéditos para grupos historicamente excluídos.

Ao longo de 35 anos, governos do PT, entre outros, aprofundaram essas conquistas, então faz sentido defender o sistema. Limitar-se a isso, contudo, imobiliza a esquerda diante de transformações que, para Medeiros, ela deveria promover.

"Enquanto as ações e reações da esquerda apenas reproduzirem essa configuração do debate público no qual a esquerda defende a ordem e a direita é subversiva, transgressiva e insurgente, me parece que estaremos todos presos a esta estrutura paradoxal", diz ele.

"Não vejo como a esquerda possa contribuir para pensar um futuro pós-neoliberal que esteja à altura dos desafios das crescentes desigualdades sociais, da crise da democracia e da emergência climática se ela permanecer presa a essa posição de 'esquerda da ordem'", afirma Medeiros.

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