22 de outubro de 2023

Seis hipóteses sobre o crescimento da direita autoritária

A situação turbulenta e mutável que atravessamos não durará para sempre: em algum momento tenderá a se estabilizar. Se o faz adtando traços conservadores e autoritários ou progressistas e democráticos, depende da audácia e da perseverança com que as diferentes forças políticas e sociais chegam ao encontro com a História.

Álvaro García Linera

Javier Milei e o líder do Vox Santiago Abascal na feira internacional de extrema direita Viva22, realizada em Madrid em outubro de 2022. (foto via Wikimedia Commons)

Tradução / Nos últimos anos, o mundo inteiro tem presenciado o fortalecimento de forças políticas de direita. Estas organizações se lançaram não só a combater toda proposta progressista ou de esquerda que pretenda ampliar a proteção estatal da sociedade, mas também em atacar as próprias organizações tradicionais da direita por não promoverem vigorosamente as leis do mercado, ter cedido terreno ao progressismo cultural e permitido o que consideram uma degradação moral da ordem social.

As direitas autoritárias assumem-se como porta-estandarte de uma “sagrada cruzada econômica” para salvar o mercado e a “liberdade” contra qualquer indício de estatismo ou coletivismo, e como parte de uma regeneração espiritual para restabelecer a própria ordem moral do mundo, começando pelo pater familias na casa, o patrão na empresa, a pele branca na história nacional e Deus no controle das almas.

Em alguns casos, paradoxalmente, misturam o apego aos preceitos neoliberais com a ideia de uma pátria de proprietários, como faz Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil ou Abascal na Espanha. Em outros casos, promovem receitas primitivas de livre mercado, como Kast no Chile, Milei na Argentina ou Meloni na Itália. Consideram que existe uma ordem natural da humanidade que emerge unicamente das regras do mercado e que qualquer desvio desta não é apenas ineficiente, mas prejudicial e ofensivo. Coletivamente odeiam o Estado, propõem a redução dos impostos sobre os ricos e juram que os direitos coletivos são um roubo e que qualquer bem público deve ser privatizado.

Abaixo, seguem seis hipóteses que buscam explicar o crescimento e a configuração dessas direitas autoritárias.

Primeira hipótese: A extrema direita é autoritária e não democrática

Ainda que todas as direitas emergentes participem das eleições para ganhar seguidores e, em algumas ocasiões, tenham chegado ao governo por meio do voto, não são, na realidade, democráticas. Se necessário, estão dispostas a empregar a violência para alcançar suas metas.

Quando Trump perdeu as eleições em 2021, por exemplo, não teve escrúpulos em enviar paramilitares para tomar o Congresso e impedir a proclamação do presidente Biden. Da mesma forma, Bolsonaro perdeu as eleições, nunca reconheceu a derrota e incentivou seus seguidores a rezar às portas dos quartéis para que os militares dessem um golpe de Estado e, depois, tomassem e saqueassem os edifícios ministeriais. Na Bolívia, Mesa e Camacho convocaram seus seguidores a queimar urnas eleitorais e aplaudiram quando as tropas militares saíram a assassinar indígenas que respaldavam o governo democraticamente eleito. Kast e Abascal, por sua vez, são grandes defensores dos ex-ditadores Pinochet e Franco e consideram que suas ações sanguinárias foram necessárias para “frear o comunismo”. Não perdem a esperança de que, no futuro, serão necessárias ações similares.

Para essa extrema direita, a democracia não é um princípio inegociável, senão um meio provisório e meramente instrumental para alcançar suas metas de promover o mercado e as sacrossantas hierarquias racializadas dos vencedores. Porém, diferentemente de antes, quando acreditavam que a autoridade do mercado era fruto do convencimento e de sua superioridade histórica, agora creem que é preciso impor ela… a pauladas, se necessário. Acreditam que a democracia premiou uma maioria incompetente e ignorante e que, por razões de “saúde pública”, é necessário enfiá-la à força nas virtudes do individualismo, do mercado e da lei do mais forte.

A democracia lhes parece um excesso; os direitos um exagero e um insulto à igualdade. É por isso que não se envergonham em defender assaltos a parlamentos: estão dispostos a massacres e golpes de Estado e consideram que as ditaduras salvaram a sociedade do caos. Não são democratas por convicção, mas sim por utilidade tática.

Por trás do seu grito de defesa da “liberdade individual” se esconde a violência purificadora contra o público, o coletivo, o comum, o associado. Não há tentativa de convencimento de suas virtudes, só uma fúria desatada para se impor contra o “esquerdista”, que consideram uma calamidade mental. E por isso não dissimulam o desejo pelo seu extermínio físico.

Segunda hipótese: A direita autoritária cresce nos tempos de crise econômica e política

Ainda que as direitas autoritárias tenham uma longa existência, o certo é que os momentos de crises econômicas e turbulências políticas constituem terrenos particularmente férteis para seu crescimento e sua capacidade de disputa no terreno político.

Nos momentos de estabilidade e crescimento econômico – ainda mais quando se dão sob o guarda-chuva do neoliberalismo -, as direitas autoritárias são pequenas e marginais. Deixam testemunho de que estão ali, como guardiães da estabilidade, mas não se esforçam para se tornarem força dirigente. Claro, há uma ordem econômica que “funciona”, há regras que se cumprem e os lucros empresariais se expandem sem que o mal-estar social dos necessitados coloque em xeque o regime. São momentos de hegemonia das direitas, de consensos amplos e tolerâncias passivas das classes subalternas perante as classes dominantes. Para as grandes elites proprietárias, o mundo funciona civilizadamente e os apelos furiosos à ordem não são necessários para que as hierarquias se respeitem. Podem se dar inclusive ao luxo de cooptar a esquerdistas arrependidos, que agora suplicam por um espaço sob o guarda-chuva da legitimidade cultural neoliberal.

Mas, as coisas mudam quando a economia estanca, o crescimento se reduz, os mercados se retraem, os lucros se comprimem e os excedentes a redistribuir a conta-gotas se secam. A frustração cresce entre as classes populares; o mal-estar se expande e todos começam a buscar saídas para a angústia por meio de opções diferentes das predominantes. Assim, a hegemonia inicia seu declínio.

Entre as elites dominantes se fragmenta a confiança na velha ordem; elas também discordam sobre como retomar o curso do enriquecimento e da passividade da sociedade. Estes são momentos de divergência entre as elites sobre o melhor caminho a seguir. Uns lutam por manter as coisas como estão, outros consideram que é preciso ceder parte dos benefícios para aplacar as classes mais pobres, enquanto outros consideram que é preciso cerrar os punhos e defender a velha ordem com renovadas doses de autoridade.

Vendo como o modelo dos antigos consensos políticos se dissolve e cresce o descontentamento social contra as instituições, as direitas autoritárias, até então uma força minoritária, agora consideram-se chamadas a preservar a “civilização” que começa a desmoronar. Não buscarão defender o governo existente nesse momento – seja de direita ou progressista -, mas recuperar uma ordem imaginada do passado em que o mercado funcionava, as hierarquias eram respeitadas e os pobres não reclamavam. Só que para isso, ao invés da sedução defendem a sanção, o castigo e a vingança contra aqueles que consideram como responsáveis dessa desordem, tanto econômica como moral: sindicatos “gananciosos”, imigrantes que “roubam” empregos, mulheres que “exageram” em seus direitos, indígenas “igualados”, comunistas que envenenam almas etc.

Sem compreender que o debilitamento do projeto neoliberal é resultado de seus próprios limites, confiam que o disciplinamento feroz dos rebeldes será a chave para que a sociedade possa retornar à conformidade dos velhos valores morais. A incerteza e a desesperança são terreno fértil para sua intervenção. Desprezam a solidariedade e a ação em comum para remontar às adversidades, que lhes parecem uma heresia contra os valores do indivíduo e da propriedade. As direitas autoritárias fomentam a salvação individual porque consideram que no mercado aqueles que são capazes triunfam e os ineficientes perdem, e também porque sabem que a frustração individual na solidão é a melhor garantia para a recepção do messianismo político do grande pastor que conduzirá seu rebanho à redenção.

Essas são direitas autoritárias que buscam canalizar o medo social à incerteza e a ausência de futuro ao ódio, à vingança e ao castigo. Anseiam pela velha estabilidade do mercado, odeiam os direitos cristalizados no Estado; lhes indignam a igualdade porque consideram que isso destrói as hierarquias sagradas da empresa, da família e da servidão individual. São melancólicos de um idílico passado mercantil onde os capazes tinham o seu e os fracassados o merecido desprezo da marginalidade. A imposição e a força como método generalizado, embora os distinga e lhes dê segurança para perseguirem seus objetivos, constitui também o sintoma revelador da fase decantadora do próprio neoliberalismo que defendem.

Terceira hipótese: a extrema direita é a outra face da centro-direita

Já dissemos antes que as direitas autoritárias não nascem do nada. Não aparecem de repente. Sempre estiveram aí, acomodadas sob a ala das direitas centristas e moderadas. Nos tempos de estabilidade econômica são minorias ativas que, nos seus cenáculos, como monges reservados, guardam a sagrada chama do mercado e da autoridade. Mas, quando estalam as crises, abandonam seus monastérios e saem como apóstolos a recrutar seguidores. E o fazem, em primeiro lugar, entre as fileiras das direitas moderadas que se encontram desorientadas pelo mal-estar social, a divergência entre as elites e a desvalorização de suas antigas receitas econômicas.

As direitas fracassadas alimentam a extrema direita. Não há necessidade de conversão de crenças, já que se trata simplesmente de uma transição para posturas mais firmes. Ao fim e ao cabo, as direitas moderadas em seus tempos de glória também abraçaram o livre mercado, a austeridade fiscal, a redução dos impostos e o controle salarial, como demandam agora as direitas autoritárias. Só que as primeiras compreendiam que para essas políticas serem duradouras era preciso amortizar o ajuste com políticas sociais pontuais, garantir o gotejo da riqueza para alentar o consumo e tolerar um ou outro progressismo cultural.

Mas, quando a economia estala e os recursos a serem distribuídos se secam, o direitista moderado entende que perseverar no mesmo caminho pode gerar maiores riscos à sua propriedade. Logo, lhe é natural sintonizar com aqueles que falam de mudança, mas em sua mesma linguagem mercantil e proprietarista. Entre a centro-direita e a extrema direita há, pois, uma afinidade eletiva que permite simplesmente modular os graus de intensidade de suas adesões. A passagem da primeira postura para a segunda – e vice-versa – não requer uma crise existencial do militante.

Entre ambas existe um contínuo: separado por uma fronteira difusa que se escora no centro ou no extremo dependendo da gravidade da crise que se atravessa. Por isso que os energúmenos que falam em “exterminar os esquerdistas”, que aplaudem o livre uso de armas para aniquilar a delinquência, que consideram lícito vender partes do corpo ou que celebram que se deixe de proteger os pobres, são os mesmos vizinhos que anos atrás escondiam sua simpatia pelas ditaduras ou que pensavam em silêncio que a ajuda social aos mais pobres deveria ser reduzida ou mais seletiva.

São as mesmas pessoas que votavam ao centro, mas agora têm medo, inquietos e buscam se segurar em algo que lhes devolva um mínimo de certeza. E o mais próximo e imediato a suas adesões ideológicas de centro-direita é a extrema direita, que não só tem uma explicação do porquê as políticas de centro fracassaram, mas que também prometem uma solução imediata – ilusória e falaz, mas solução afinal – em meio ao caos imperante. Essa é a primeira fonte da qual se alimenta a expansão da extrema direita. E assim, ao fim e ao cabo, por trás do democrata de direita se esconde, como uma dupla personalidade adormecida, um enfurecido direitista autoritário.

Quarta hipótese: a extrema direita cresce como reação material e moral à igualdade

Geralmente, na história política das sociedades do mundo, os progressismos e as esquerdas políticas são forças minoritárias quando os programas econômicos e de legitimação de políticas conservadoras atravessam uma etapa de expansão e apogeu. São tempos em que o consenso do mercado, da meritocracia e do empreendedorismo dominam o imaginário social. Há crescimento econômico e governa a esperança de que se poderá melhorar a renda familiar pelo esforço próprio. O horizonte preditivo da sociedade se move em torno do mercado e do risco individual, como nos anos 90 do século XX.

Quando isso falha, aumenta o desemprego, a riqueza se concentra em muitas poucas mãos, caem os salários e as oportunidades de crescimento ficam truncadas. As direitas governantes ficam aturdidas ante seus fracassos e, antes que a extrema direita possa reagir, é mais provável uma expansão das forças progressistas e de esquerda. Os velhos paradigmas de organização econômica desmoronam, especialmente entre as classes populares, e as pessoas se desprendem das expectativas anteriores ancoradas ao mercado que, no fim das contas, só os trouxe empobrecimento e abandono.

É quando as pessoas se encontram disponíveis a revogar antigas crenças e aderir a outras novas. E se nesse momento existe um progressismo audaz que persegue de maneira crível o fortalecimento dos bens comuns do Estado para ampliar os direitos sociais dos necessitados, é previsível que essa aposta sintonize diretamente com a própria memória histórica das classes subalternas sobre os momentos de bem-estar conquistados mediante um Estado redistributivo e benfeitor. São tempos de ondas progressistas, como ocorreu no início do século XXI no continente latino-americano.

É provável que, na crise, uma parte das classes populares e médias se incline para projetos de direita. Mas, também se inclinam para o progressismo, permitindo-o eventualmente a vencer eleições. Já no governo, se o progressismo toma medidas imediatas de reforma econômica para ampliar os bens comuns, distribuir a riqueza e proteger os mais fracos, a pobreza começará a ser revertida, aumentará o consumo interno e se favorecerá o crescimento econômico. Quanto mais audazes sejam essas mudanças de ressignificação da riqueza, maior será a mobilidade social ascendente das classes populares.

Junto com a ampliação do consumo dos setores empobrecidos crescerá o mercado interno e se expandirá a base das classes médias de origem popular. Assim, da clássica figura do triângulo achatado, com uma gigantesca base de pobres, uma classe média esquálida, e um vértice de ricos – imagem típica das políticas neoliberais -, se passará a uma figura mais parecida a um losango, com um amplo espaço no centro, composto pelas classes médias, tanto tradicionais quanto emergentes, e um decrescente setor pobre. Essa é a imagem que mostra o êxito das políticas de igualdade que caracterizaram alguns dos governos progressistas na América Latina.

A missão do progressismo e da esquerda é precisamente aumentar a igualdade, e isso se faz gerando riqueza, distribuindo-a melhor e reduzindo as diferenças entre os que têm mais e menos, tudo isso por meio de políticas estatais de justiça econômica, tributação progressiva e nacionalização de bens estratégicos.

Mas, junto ao crescimento das novas classes médias de origem popular se produz, inevitavelmente, uma desvalorização do status e dos privilégios das classes médias tradicionais, que veem a perda da exclusividade de seus colégios privados, de seus locais de lazer, de seus destinos de férias ou de postos de trabalho anteriormente reservados para suas redes familiares. E se as classes populares favorecidas pelas políticas progressistas são ainda de origem indígena ou afrodescendente, não são só o status e as distinções de consumo das tradicionais classes médias que se veem afetados, mas também sua hierarquia, seu capital étnico, que seja pela cor de pele, pelo sobrenome ou pela localização geográfica, lhes garantiam anteriormente o acesso a determinados privilégios.

Em todos os casos, a igualdade econômica – que em termos de rendimentos monetários, amplia a classe média – gera desvalorizações classistas e, com isso, ressentimento dos igualados. Os setores médios tradicionais afetados não perdem renda, nem propriedade. De fato, essas aumentam. Mas, em conjunto, também aumentam (e a uma velocidade maior, se as coisas são bem feitas) a renda dos setores populares, que graças às políticas estatais agora podem poupar, comprar uma pequena moradia, mandar o filho para a universidade, melhorar seu consumo, etcétera.

Essa é a igualdade em ação, e ainda que inevitavelmente provoque aversões e resistências (inclusive ressentimentos viscerais, caso as diferenças classistas estiverem acompanhadas de distinções étnicas), o progressismo não pode permitir-se retroceder ou mudar de direção. Esta democratização da renda e dos consumos não só desmontará a velha ordem hierárquica da sociedade, mas também a ordem moral do mundo inscrito na cor da pele.

Em todo caso, a igualdade será assumida como uma injustiça que se buscará ser revertida de qualquer maneira, de preferência violentamente para restabelecer as velhas hierarquias étnicas. A extrema direita racializada será então o melhor refúgio para os segmentos das classes médias que verão com espanto como as cores e a estirpe do poder se “enegreceram”. Conter o índio, se é que não se possa eliminá-lo, ou expulsar o imigrante pobre, se é que não se possa detê-lo na fronteira, serão as novas linguagens profiláticas com que a extrema direita buscará dar coesão a seus novos seguidores recrutados entre as classes médias tradicionais.

Quinta hipótese: A extrema direita cresce pelas decepções dos progressismos

Aextrema direita cresce em oposição à efetividade das políticas de igualdade que podem impulsionar as esquerdas e os progressismos governamentais. Nesses casos, sem embargo, é possível isolar ou fragmentar esses impulsos anti-igualitários criando continuadamente maiorias sociais e políticas com o êxito da igualdade.

Não se pode acreditar que é o aumento do consumo dos setores populares emergentes que os podem levar a posições de direita: é a incapacidade que por vezes o progressismo e as esquerdas mostram para compreender as novas expectativas, aspirações e formas organizativas que adquirem estes setores populares emergentes que os levam, eventualmente, a abraçar posições conservadoras. Mas, o que realmente provoca um dano demolidor na articulação entre progressismo político e importantes setores populares é a frustração que pode provocar um governo progressista ao tomar decisões que não detenham (ou mesmo aumentam) a deterioração da economia popular.

As pessoas apoiam as esquerdas e os progressismos porque experimentaram na própria carne o abuso e o empobrecimento neoliberal. Mas, se o progressismo que chega ao governo prometendo bem-estar e proteção não cumpre o que prometeu ou piora as condições de vida das classes populares, o que se produz inicialmente é um colapso cognitivo de adesões e esperanças. O estupor se apodera de tudo; as crenças se diluem, o desânimo e o descontentamento inundam tudo. Os humildes se sentirão traídos e, então, buscarão agarrar-se a qualquer nova solução que lhes devolva a certeza imaginária de um futuro e que permita punir aqueles que os defraudaram.

O apoio dos setores populares a soluções autoritárias de direita será a via para exteriorizar essa raiva coletiva. Não é que o povo tenha se tornado neoliberal, nem que tenha abraçado a crença de que todos podem ser empreendedores exitosos, ou que os direitos e os bens comuns resguardados pelo Estado tenham que ser destruídos. O que ocorre é que as classes populares não podem suportar mais a incerteza de um futuro que não aparece e, por isso, precisam agarrar-se a algo que os devolvam um mínimo de crença em dias melhores. Qualquer coisa, desde que diferente do que estão suportando agora. E é melhor que o possam fazer distanciando-se daqueles que os desiludiram, rejeitando o que representam: a proteção do Estado.

A extrema direita se alimenta por sua vez da passividade dos progressismos, de sua moderação ante os graves problemas, de sua falta de compromisso com os sofrimentos mais intensos que dilaceram o corpo popular. Não se pode pedir às pessoas que atuem com consciência quando a pobreza interminável dilacera os estômagos de seus filhos. É o progressismo que precisa tomar consciência dessa pobreza e atuar imediatamente em conformidade, como soube fazer em outras ocasiões.

Se esse refluxo social vem ainda acompanhado de uma inflação que o progressismo não pode conter ou a agravou, a disponibilidade social para políticas de shock e antiestatais será inevitável. E a inflação dissolve, como o ar nas mãos, o artefato coletivo mais importante e estável para medir, salvaguardar e alterar o esforço de trabalho das pessoas: o dinheiro. Com isto, desaparece qualquer antiga lealdade para com os governantes e para com o Estado que permitiu este colapso. Se a tudo isso somarmos também a proximidade na memória popular de um Estado que durante a pandemia trancou a sociedade além do que era economicamente e fisicamente tolerável, então não há dúvidas de que os sedimentos libertários e antiestatais, que habitam fragmentos do senso comum, serão convocados e reforçados.

Mas, a essa altura vale a pena se perguntar por que essa frustração popular não se canaliza para saídas mais de extrema-esquerda ou revolucionárias. A razão é que a experiência popular como corpo mobilizado, como conquista de direitos coletivos e cotas de poder transcorreu no interior das bandeiras do progressismo durante décadas. A menos que uma explosão social seja a base da memória histórica, a evocação de qualquer forma do popular e de suas conquistas coletivas tomam corpo no progressismo, mesmo contra sua própria vontade.

Essa é a lógica das profundas e duradouras lealdades populares forjadas nos momentos ígneos da história social. Isso é o que mantém a lembrança dos grandes líderes e grandes conquistas históricas com cujas bandeiras uma vez ou outra os progressismos chamam a mudar o mundo. Mas, ao mesmo tempo, essa é também a fronteira à qual as pessoas associam, se necessário, o fracasso da capacidade de transformação progressista e de esquerda, e a razão pela qual decidem abraçar soluções autoritárias e de direita. Quando o progressismo tem raízes profundas e históricas na íntima experiência popular, o fracasso do progressismo é o fracasso de qualquer esquerda possível.

Recapitulando, a extrema direita cresce no calor das crises econômicas devorando as direitas moderadas. Se solidificam em setores médios ante o avanço das políticas exitosas de igualdade e adquirem apoio popular nos momentos de decepção com o progressismo moderado. Para onde se olhe, são e serão atores de primeira linha enquanto se mantenha a crise geral.

Sexta hipótese: A extrema direita será derrotada saindo da crise econômica com maior igualdade material, redistribuição da riqueza e bem-estar popular

Oque fazer quando o neoliberalismo paleolítico ganha força e quer colonizar os ímpetos de mudança e bem-estar? Não é por acaso que o inimigo público dessa onda regressiva e repressiva nas mãos de um tipo de neoliberalismo das cavernas sejam os direitos sociais inscritos no Estado.

O Estado é o receptáculo do comum de uma sociedade. Sob a forma de monopólios e burocracias, o Estado é o depositário de uma parte de toda a história comum produzida pelo povo; é a condensação das lutas em comum, o comum de suas vitórias e derrotas; sintetiza suas conquistas coletivas, sua épica e seus bens acumulados ao longo de décadas e séculos. O Estado é a cristalização dos direitos das pessoas conquistados em mil batalhas – inclusive contra o próprio Estado – que, para se manter ao longo do tempo e ser herdado pelas novas gerações, se institui como lei, como norma, como orçamento e como instituição no próprio Estado.

O Estado não é a lei, nem produz a lei do povo. Os direitos são conquistados pelo povo mediante greves, paralisações, marchas e insurreições. Para consagrá-los e mantê-los após o tempo das grandes batalhas, o próprio povo procura o registro e a institucionalização dessas lutas no Estado na forma de direitos, com força legal e efeito vinculante. É certo que também no Estado gravitam predominantemente as influências e a força dos poderosos. Mas, para se legitimarem, precisam tolerar, aceitar ou suportar a história e as vitórias – tanto as pequenas como as medianas – do povo.

Essa é a dimensão paradoxal dos Estados: são estruturas de dominação, mas também de inclusão, de congregação e de defesa do povo. Trata-se de uma fluída e mutável tensão, que é inerente à sua existência.

Por isso, quando os neoliberais autoritários se propõem a “dinamitar” o Estado, o que querem fazer é dinamitar antes de tudo a história de lutas e direitos que o povo conquistou com sangue e sacrifícios. O que pretendem é apagar o pouco (ou o muito) de direitos comuns que as sociedades lavraram ao longo da história: a educação pública e gratuita, a saúde pública, os bens públicos, os recursos comuns (a água, os minerais, o lítio), ou os serviços públicos, que após o grande colapso induzido, como sempre aconteceu em todas as afrontas liberais, será leiloado a um bando de ricos que procuram expandir a sua riqueza privada com a riqueza pública.

A substituição do público pelo privado, pelo mercado, é a extinção do que o povo tem em comum, dos laços e do destino que o une como comunidade histórica. A propriedade privada que se oferece como o bezerro de ouro dos egoísmos individuais é o oposto do comum em uma sociedade. É a conversão de uma nação em um conglomerado de zumbis atomizados submetidos despoticamente à grande propriedade de uns poucos endinheirados. Pois é privada, ou seja, propriedade de uns poucos que excluem, roubam e submetem outros tantos. E quanto maior é, mais exclusiva e excludente se torna.

Por isso as oligarquias não têm pátria. Nunca a tiveram, nem querem ter. Porque não têm nada em comum com o resto do povo. Mais do que isso, lhes têm desprezo e vergonha. Mas, ao mesmo tempo, precisam do povo, porque sua riqueza privada nasce do roubo da riqueza comum produzida pelo resto. As oligarquias precisam do povo para sugar seus esforços, para expropriar seus bens comuns.

É a isso que se referem quando falam em “dinamitar” o Estado. Mas, o paradoxo é que seu antiestatismo é, na verdade, um estatismo envergonhado e falaz, pois precisam do Estado para esvaziar e privatizar o próprio Estado em benefício de diminutas oligarquias. Os “antiestatistas” necessitam do Estado também para coagir e impor a força contra os rebeldes. O mercado não consegue fazer isso. Só o Estado tem a força coercitiva legal, quer dizer, comum e reconhecida por todos, para garantir e defender o direito à grande propriedade e a riqueza de poucas pessoas.

Na sociedade, perder a batalha dos direitos e do comum contra a grande propriedade é perder a batalha do que transforma um conglomerado de habitantes de um território em uma nação. E a única forma de defender o que foi alcançado em comum e em direitos é expandir o comum e os direitos. As pessoas não podem preservar os seus direitos sem avançar em direção a novos. Só preservar implica retroceder.

Por isso, a única maneira de derrotar a extrema direita, de impedir que cresça, é resolver a crise econômica e a crise de esperança que alimenta. É preciso resolver a crise, mas não em favor dos ricos, mas em benefício comum dos pobres, dos trabalhadores. Tomar a riqueza acumulada em poucas mãos para distribuí-la melhor entre as pessoas comuns e aumentar a produção para produzir mais riqueza a ser distribuída entre todos. Os paliativos temporários não resolvem o problema e incentivam a angústia.

Assim, o primeiro problema a ser abordado pela sociedade e por qualquer governo progressista, nesta onda ou nas que virão, são as melhorias rápidas e visíveis no rendimento econômico de uma forma duradoura e previsível ao longo do tempo. A inflação corrói a certeza diária das famílias e, com ela, as lealdades e o apoio político.

Para contrariar isto, só existem duas formas no mundo: ou o rendimento real da maioria é mutilado ou os lucros dos empresários são reduzidos. O progressismo e a esquerda só são verdadeiramente progressistas ou de esquerda se fizerem o último. Controle de preços, controle do comércio exterior, aumento dos impostos sobre a riqueza, eliminação de isenções de privilégios que estabilizam o valor da moeda e do salário real dos trabalhadores, nacionalização de empresas estratégicas que geram elevados excedentes.

Temos de por de lado o velho credo liberal de ajuste e austeridade fiscal. As economias mais avançadas têm uma dívida média entre 100% e 150% do seu PIB e, apesar disso, estão implementando planos multimilionários para empregos, modernização de obras públicas (Estados Unidos), subsídios à energia (Europa) e subsídios às indústrias estratégicas de softwares, energias limpas, inteligência artificial (Estados Unidos e Europa).

Nas nossas latitudes, é essencial proporcionar sustentabilidade ao longo do tempo às reformas sociais, para que não dependam das flutuações dos preços das matérias-primas. Isto significa promover processos seletivos de reindustrialização em grande escala e massivos em pequena escala, tanto públicos como privados. O continente necessita de um choque de industrialização de matérias-primas, alimentos, energia verde, química básica, eletrodomésticos, carros elétricos, etc. Mas também exige um choque de industrialismo nas microáreas de consumo local, no artesanato, nos pequenos negócios e nos serviços, onde está localizada a maioria da população trabalhadora.

O importante é criar uma base produtiva duradoura e ecologicamente sustentável para redistribuir a riqueza comum da sociedade e ampliar novos direitos coletivos. Ao fazê-lo, simultaneamente, será possível promover um novo horizonte de futuro mobilizador e garantir a adesão democrática da população, para que a democracia e o protagonismo social estejam associados à igualdade e à justiça econômica.

Durante quinze anos a América Latina e o mundo viveram no meio de um vórtice de transição da economia global para outro modelo mais fragmentado. É um vórtice caótico cheio de incertezas, cheio de perplexidades e complicações, de novas ondas e contraondas, tanto progressistas como conservadoras, sem que nenhuma delas ainda tenha sido capaz de se estabilizar. Esta situação poderá durar talvez mais uma década, anos que serão repletos de vitórias curtas e de derrotas também curtas.

Mas, esse fluxo e contrafluxo não pode durar indefinidamente. A situação tenderá a estabilizar-se. De que maneira se estabilizará, se adotando traços conservadores e autoritários ou progressistas e democráticos, depende do que façamos hoje. Depende da audácia e perseverança com que as distintas forças políticas e classes sociais concorram ao encontro da História. E, oxalá, nesse enorme turbilhão de forças contraditórias, as forças da justiça social, da igualdade radical e da comunidade triunfem sobre as do egoísmo, da grande propriedade e do autoritarismo.

Este artículo es una adaptación de la conferencia brindada por Álvaro García Linera en la Facultad de Periodismo y Comunicación Social de la Universidad Nacional de La Plata (Argentina) el 22 de septiembre de 2023.

Colaborador

Álvaro García Linera é ex-vice-presidente da Bolívia (2006-2019) e membro do conselho consultivo da Jacobin Latin America.

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