31 de dezembro de 2024

Um ano na cultura alemã

Gaza e censura.

Thomas Meaney



22 de janeiro

Caminhando de volta de Wolf Kino com L. pelas ruas de Neukölln. Na Reuterplatz, paramos em uma pequena vigília por Gaza. O número oficial de mortos é de cerca de 23.000. Algumas fotos de crianças, algumas velas. Quinze pessoas ou mais paradas no frio. Acelerando pela Reuterstrasse, há uma dúzia de vans brancas da polícia, com suas luzes de sirene girando. Os policiais cercam a vigília. Eles olham para o grupo como se estivessem montando uma bomba.

17 de fevereiro

Participo da Conferência de Segurança de Munique, que funciona também este ano como um memorial para os reféns israelenses em Gaza. Israel Katz, ministro das Relações Exteriores de Israel, alerta o público que se as forças da IDF não tiverem permissão para terminar o trabalho em Gaza, haverá "Faixas de Gaza em Londres, Faixas de Gaza em Paris, Faixas de Gaza em Berlim".

Na Amerika-Haus local, onde uma grande escultura de um elefante fica no átrio, há um painel sobre antissemitismo na Alemanha. Hillary Clinton repreende os manifestantes contra a guerra em Gaza por serem suspeitamente bem organizados. "Em poucos dias, houve esforços organizados em muitas cidades, campi universitários, em todos os Estados Unidos e Europa e em outros lugares - tão distantes quanto a Austrália - que estavam em alerta para isso", diz ela, "se eles sabiam exatamente que seria 7 de outubro ou se eles estavam apenas preparados e vieram equipados com instruções que estavam sendo divulgadas". A data do ataque liderado pelo Hamas, que havia — pelo menos aparentemente — escapado ao Mossad e ao Shin Bet, era de conhecimento comum em Canberra e Morningside Heights? Uma vasta conspiração anticolonial? O painel ignora em silêncio que um terço dos detidos por crimes antissemitas pela polícia alemã desde 7 de outubro eram judeus.

26 de fevereiro

Os diretores palestinos Basel Adra e Hamdan Ballal, e seus codiretores israelenses Yuval Abraham e Rachel Szor, ganham o prêmio de documentário da Berlinale por seu filme No Other Land. Abraham usa a cerimônia de premiação como uma ocasião para declamar contra as políticas israelenses. Seu discurso é rotulado como antissemita pelos legisladores alemães e justiceiros israelenses o procuram em sua casa em Jerusalém. Quando é descoberto que Claudia Roth, ministra da cultura de Berlim, estava aplaudindo durante o discurso de Abraham, ela esclarece que estava apenas aplaudindo pelo lado israelense do coletivo.

16 de abril

Um congresso palestino se reúne em Wedding, organizado pelo The Left Berlin. A polícia desligou a eletricidade bem a tempo de salvar o país de uma transmissão ao vivo do historiador Salman Abu Sitta, de 85 anos. Isso lembra Netanyahu se recusando a ficar na mesma sala que Edward Said, dizendo que temia que Said pudesse matá-lo. Um momento indelével: o rápido aceno do comandante para seu colega um minuto após a transmissão de Abu Sitta, para desligar o aparelho. Seu filho, Ghassan, reitor da Universidade de Glasgow, que estava realizando operações médicas em Gaza, foi mandado de volta para o aeroporto BER. Yanis Varoufakis relatou que também foi banido do país. No próprio congresso, mais 200 são presos pelos 2.500 policiais enviados para reprimir os procedimentos. O Ministério Público declara que o congresso não pode se reunir em nenhum outro local em Berlim. Uma bandeira israelense tremula sobre a Rotes Rathaus. Foi derrubado por ativistas no ano passado — uma ofensa "antissemita" — e depois levantado novamente.

5 de maio

O FDP e a CDU pedem monitoramento policial de professores de Berlim ou o que o Bild Zeitung chama — onde está Victor Klemperer? — "Universitäter" (perpetradores acadêmicos). O Bild publica fotos dos professores "que apoiam a multidão que odeia judeus", ou seja, estudantes protestando contra a guerra em Gaza. O método é o mesmo que eles usaram quando a imprensa Springer incitou o assassinato de Benno Ohnesorg (1967) e o tiroteio de Rudi Dutschke (1968) por justiceiros. O impulso anti-Springer na sociedade alemã quase desapareceu. Muitos antigos 1968ers encontraram posições confortáveis ​​nos veículos mais respeitáveis ​​do conglomerado, Die Welt, etc. Às vezes, você pode ouvi-los elogiando os avanços de Israel sob o retrato de Dutschke em um dos bares nominalmente de esquerda da cidade, uma tigela de fósforos da União Europeia na mesa.

3 de junho

As imagens de Gaza não são reais. Então, em poucas palavras, diz Herta Müller no FAZ. Uma especialista em totalitarismo, tendo crescido na Romênia comunista, ela sabe quando o vê. "O Hamas controla a seleção de imagens e orquestra nossas emoções", ela escreve. "Nossos sentimentos são sua arma mais forte contra Israel". Para neutralizar essa manipulação em massa de sentimentos, ela aconselha manter a fé nas forças militares israelenses e um ceticismo renovado em relação às imagens de pessoas queimando, prédios pulverizados, crianças famintas, sejam elas encenadas ou não pela divisão de Hollywood do Hamas. Mas o Hamas também está adulterando as imagens que as tropas israelenses circulam de si mesmas se exibindo de cueca e brincando com os brinquedos dos assassinados? Eles deram a esse especialista em estudos de mídia o Prêmio Nobel.

11 de junho

O Bundestag aprova a resolução não vinculativa "Nunca mais é agora: proteger, preservar e fortalecer a vida judaica na Alemanha" com votos de todos os partidos - CDU, SPD, FDP, Verdes, AfD - exceto Die Linke, que se abstém, e a aliança de Sahra Wagenknecht que vota contra. A resolução adota a definição de antissemitismo da IHRA, que em sua redação original afirma que nem toda crítica a Israel é antissemita. No entanto, o governo federal remove essa ressalva do texto que eles usam para a resolução, o que efetivamente abole a diferença entre crítica a Israel e antissemitismo. Agora, qualquer entidade considerada crítica às políticas israelenses pode ser despojada de financiamento público. Os estudiosos do direito observam que a resolução contradiz as garantias de liberdade de expressão da Lei Básica. Mas esse é precisamente o ponto: os legisladores nomeados da Alemanha aprovaram uma resolução porque queriam aumentar a pressão para se conformar, encorajar a autocensura e, mais criticamente, endossar a piedade competitiva e egoísta como a ordem do dia. Eles sabiam que não precisavam da lei para isso. Uma resolução disfarçada de lei resolveria o problema.

18 de junho

"Você é antissemita?": a pergunta de abertura preferida da imprensa Springer quando confrontada com dissidentes do consenso alemão. O número oficial de mortos em Gaza é de cerca de 40.000.

27 de junho

A "Lei de Modernização da Lei da Nacionalidade" entrou em vigor. A lei é uma maneira do estado alemão se aproximar do apetitoso sistema canadense de imigração seletiva, aumentando a força de trabalho qualificada, mas eliminando migrantes indesejáveis ​​para os quais os testes de "antissemitismo" podem ser usados ​​como um apanhado geral.

2 de julho

O professor Stefan Liebig da Freie Universität, membro do conselho executivo do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica, circula uma carta contra o antissemitismo em resposta aos professores que apoiaram os alunos durante os protestos da guerra de Gaza. Os alunos observam que Liebig cortou e colou o texto da carta de um blogueiro de direita. Os signatários da carta, que incluem especialistas autoproclamados em liberdade acadêmica e normas liberais, mantêm seus nomes na carta após a fonte de sua linguagem ser revelada. Em uma mensagem para seus colegas de Freie, Liebig sugere que a distância da direita pode ser menos importante do que a distância do antissemitismo. Liebig publica uma fotografia da bandeira israelense se estendendo sobre todos os territórios ocupados, incluindo Gaza. Liebig remove a postagem quando os alunos apontam que ele a cortou e colou de uma conta de extrema direita, mas apenas porque "aparentemente veio de uma conta X que foi usada para espalhar conteúdo fascista", não por causa das coordenadas territoriais da imagem.

17 de setembro

Volker Beck, ex-chefe do Partido Verde Alemão, presidente da Sociedade Alemã-Israelense e incansável militante contra água e suprimentos médicos para a Palestina, escolhe seus "favoritos" entre as centenas de ataques de pagers israelenses no Líbano. Parece mais claro a cada dia que o exército israelense absorve o que resta do fandom escolar reprimido pela corajosa Wehrmacht, fandom que, falando indiretamente, não tem para onde ir.

30 de setembro

A polícia de Berlim, 125 deles, realiza batidas em Friedrichshain, Gropiusstadt, Tegel, Britz e Schöneberg. Eles estão em busca de cinco homens suspeitos de antissemitismo. Nenhuma prisão é feita.

23 de outubro

A Verso Books faz uma consulta casual à editora alemã dos ensaios de Alfred Sohn-Rethel.

A resposta da editora, ça ira-Verlag, uma instituição clássica anti-Deutsch:

Por um lado, estamos felizes que a Sohn-Rethel esteja atraindo atenção internacional e não somos completamente avessos a fazer negócios com a Verso. Por outro lado, e nas palavras de Marx e Engels: "Os comunistas desdenham esconder suas visões e objetivos". Então, para sermos francos: enquanto a Verso estiver envolvida na campanha antissemita global com suas publicações, não temos interesse em fazer um acordo de licença. Até que os "Palestine Pamphlets" sejam removidos do site e slogans ilusórios como "Somos todos palestinos" não sejam mais lidos lá, pedimos que você se abstenha de mais consultas.

4 de novembro

O editor de notícias perfeitamente ariano do Bild declara Judith Butler uma "fervorosa antissemita". Como o editor de opinião do Bild vai superar isso agora?

22 de novembro

Nan Goldin aparece na Neue National Galerie para a recepção de abertura de sua retrospectiva de vida, "This Will Not End Well". Ela faz um discurso desafiador. "Por que estou falando com você, Alemanha? Porque as línguas foram amarradas, amordaçadas pelo governo, pela polícia e pela cultura repressiva." Não termina bem. A ministra da Cultura Roth afirma estar "horrorizada". O presidente da Prussian Cultural Heritage Foundation, Hermann Parzinger, declara que a performance de Goldin "não corresponde à nossa compreensão da liberdade de expressão". O senador da Cultura de Berlim, Joe Chialo, condena a "inconsciência histórica" ​​de Goldin.

28 de novembro

Documentos internos vazados para a imprensa revelam que o plano do chefe do FDP, Christian Lindner, para desmantelar a coalizão Ampel foi intitulado "Dia D". Ele continua a mostrar sua cara em público.

29 de novembro

Para não ficar para trás, a CDU, cuja cor política é o preto, escolheu "Black is Beautiful" como slogan de campanha. Os melhores e mais brilhantes da Konrad Adenauer Stiftung adotaram "Black is Beautiful" pela primeira vez em 1972 como uma medida desesperada contra o fator cool de Willy Brandt, incapazes de calcular que pareciam estar realizando uma operação psicológica em si mesmos, revelando o slogan enquanto Angela Davis se encontrava com Honecker em Berlim Oriental. Eles o têm apresentado periodicamente desde então. Este é o partido de Friedrich Merz, o antigo membro do conselho da BlackRock e filisteu orgulhoso, que finalmente arrancou o partido de sua antiga antagonista, Angela Merkel.

18 de dezembro

Um homem de Gaza cuja esposa e filha foram mortas em ataques aéreos israelenses perde seu processo quixotesco em um tribunal de Frankfurt para impedir transferências alemãs de carregamentos de armas e caixas de engrenagens para tanques Merkava para Israel. Em sua decisão em nome das transferências aceleradas de armas, o tribunal cita a resolução não vinculativa "Never Again is Now". Então a resolução está fazendo seu trabalho. O número oficial de mortos em Gaza passou de 45.000, embora relatórios confiáveis ​​coloquem o número de mortos palestinos resultantes da invasão israelense mais perto de 180.000.

O desalinhamento de classes devastou a esquerda italiana

Na Itália, os trabalhadores industriais de colarinho azul estão abandonando a esquerda. Como em outros países, eles não representam toda a classe trabalhadora, mas sua perda de apoio ainda deve perturbar profundamente a esquerda italiana.

Jacopo Custodi


Um trabalhador da construção civil em Milão, Itália, em 2 de outubro de 2023. (Emanuele Cremaschi / Getty Images)

“Defendemos os trabalhadores melhor do que a esquerda caviar!” Em campanha para as eleições regionais de novembro em Emilia-Romagna e Umbria, a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni fez questão de enfatizar a conexão de seu partido com as pessoas comuns. Ela argumentou que sua coalizão está “enraizada no coração da sociedade, longe dos salões VIP e dos lobbies da esquerda radical-chique”. Embora os programas de TV possam fazer parecer que a chamada “esquerda de salão” é influente — Meloni disse a seus apoiadores — qualquer político que visite um mercado de rua verá como “o povo” apoia seu governo.

Essa retórica não é nova: os políticos de extrema direita da Itália a usam frequentemente em sua guerra cultural contra a esquerda. Eles se retratam como defensores de um suposto povo trabalhador tradicionalista que se opõe a uma elite em suas torres de marfim progressistas. Essa elite, em sua narrativa, varia do moderado Partido Democrata de centro-esquerda a ativistas de extrema esquerda e centros sociais ocupados. Dessa forma, a direita italiana desenvolveu sua própria linguagem de política de classe, definindo-a em termos de preferências culturais em vez de relacionamento com a produção. Termos como "esquerda caviar", "esquerda salão", "esquerda ZTL" (referindo-se aos caros centros históricos da cidade onde zonas de tráfego restrito, ou ZTL, são aplicadas), "comunistas Rolex" e "esquerda radical-chic" são amplamente popularizados pela retórica de extrema direita, de Meloni ao líder da Lega, Matteo Salvini. Essas expressões estavam tão arraigadas em sua ascensão ao poder que agora são familiares na linguagem cotidiana dos italianos.

Isso é, sem dúvida, propaganda. É uma narrativa calculada e eficaz criada pela extrema direita para se apresentar como nova e atraente, adotando os costumes, a linguagem e a cultura dos italianos comuns, para parecer que são "um deles". Esta imagem, no entanto, contrasta fortemente com a realidade: primeiro, o governo atual desfruta de excelentes relações com a elite capitalista da Itália (e também com seus equivalentes estrangeiros, como indicam os laços amigáveis ​​de Meloni com Elon Musk). Em segundo lugar, sob o governo de Meloni, as condições materiais da classe trabalhadora da Itália continuaram a declinar, junto com a qualidade dos serviços públicos que os beneficiam principalmente, como o transporte público e o sistema de saúde.

No entanto, como costuma ser o caso com narrativas políticas, não importa o quanto elas explorem, distorçam ou alterem fatos, elas ainda estão enraizadas neles. Tirar toda a hipocrisia e enquadramento enganoso revela uma questão real e urgente: desalinhamento de classe. Simplificando, isso descreve a tendência crescente de indivíduos da classe trabalhadora de se afastarem de um alinhamento político com a esquerda, apesar de seu papel histórico como a voz política desta mesma classe. Se a direita conseguiu desenvolver uma narrativa de classe baseada na cultura, isso se deve precisamente ao recuo da política de classe de esquerda.

Esta questão tem despertado cada vez mais atenção e debate entre a esquerda em vários países, da França aos Estados Unidos. Ela ganhou destaque renovado durante as recentes eleições nos EUA, onde Donald Trump expandiu ainda mais seu apoio entre os eleitores de baixa renda. Como Jared Abbott observou apropriadamente, o desalinhamento de classe para a esquerda representa "o desafio político definidor do nosso tempo". Na Itália, também, este é um grande desafio: a esquerda tem se distanciado cada vez mais de sua base eleitoral histórica da classe trabalhadora nas últimas décadas, deixando um eleitorado desorientado que a direita tem sido parcialmente capaz de conquistar. Termos como "comunistas Rolex" e "esquerda radical-chique" são amplamente popularizados pela retórica de extrema direita, da primeira-ministra Giorgia Meloni ao líder da Lega, Matteo Salvini.

No entanto, esta questão tende a receber pouca atenção dentro dos círculos ativistas de esquerda da Itália. Alguns são rápidos em negar essa realidade ao focar em segmentos menores da classe trabalhadora que permanecem de esquerda — como trabalhadores precários do conhecimento, como veremos em breve — ou enfatizando instâncias específicas de sinergia entre a esquerda militante e trabalhadores de fábrica radicalizados. Embora esses exemplos, como o caso da antiga fábrica GKN, sejam significativos e louváveis, eles dificilmente refletem o quadro nacional mais amplo.

Outros podem não negar o desalinhamento de classe diretamente, mas ainda assim evitam consciente ou inconscientemente se envolver com ele. Isso provavelmente ocorre porque a desconexão da esquerda com a classe trabalhadora se tornou um ponto de encontro para a direita que a apreendeu e enquadrou com sucesso. Não é coincidência que, embora o termo "desalinhamento de classe" em si não tenha um equivalente estabelecido na língua italiana, expressões de direita que descrevem esse fenômeno não sejam escassas, como vimos. Isso pode ter criado uma relutância crescente na esquerda em se envolver com o tópico, pois agora evoca uma narrativa dominada por pontos de discussão e valores de direita.
Não é de surpreender que algumas figuras com um histórico esquerdista tenham gradualmente se deslocado para a direita precisamente por internalizar essa narrativa difundida de direita. Um exemplo primordial é Marco Rizzo, o ex-líder de um pequeno Partido Comunista (um dos vários concorrentes para esse nome), que agora está aliado a grupos menores de extrema direita e figuras católicas ultraconservadoras, em nome de uma suposta hostilidade popular em relação à elite progressista.

A esquerda está certa em não comprar a narrativa distorcida da direita sobre o desalinhamento de classes e se distanciar daqueles que compraram, como Rizzo. No entanto, isso não deve levar à confortável negligência do desalinhamento de classes, simplesmente porque foi popularizado de uma forma que soa de direita. Pior ainda, não deve resultar em negação autoconsoladora com base em contraexemplos louváveis, mas não representativos.

Em outras palavras, embora seja sensato evitar ser aprisionado pelo enquadramento da direita, a esquerda italiana não pode se dar ao luxo de negar ou ignorar o problema completamente. O desalinhamento de classes é uma questão real e urgente que exige reflexão estratégica daqueles na esquerda que visam construir amplo apoio da classe trabalhadora.

O voto invisível

Um elemento-chave dessa história que a direita esquece conscientemente é que os votos da classe trabalhadora perdidos pela esquerda não necessariamente mudam para a direita; mais frequentemente, eles resultam em abstenção. Por exemplo, nas eleições gerais italianas de 2022, 49,4% dos indivíduos com status econômico "baixo" (1 em uma escala de 1 a 5) não votaram ou se recusaram a fazer uma escolha (enviaram um voto em branco), em comparação com apenas 27,5% entre aqueles com status econômico "alto" (5 na mesma escala). Nas eleições europeias de 2024 na Itália, essa não votação por aqueles com baixo status econômico atingiu surpreendentes 75,7%. Em vez de abandonar a “esquerda consciente e centrada na elite” para se unir à “direita concreta e centrada nas pessoas”, como sua narrativa sugere, os trabalhadores de baixa renda simplesmente — e dramaticamente — abandonaram a política por completo.
Um dos grandes pontos fortes da política de classe de esquerda era sua capacidade de empoderar os trabalhadores, promovendo um senso de poder de classe voltado para o futuro. Isso estava enraizado em seu sucesso em alcançar reformas coletivas que melhoraram a vida dos trabalhadores e em sua capacidade de construir associações e organizações moldadas pela vida da classe trabalhadora e sua visão de mundo. Embora a esquerda tenha perdido em grande parte essa capacidade, não é algo que a direita tenha conseguido replicar, nem parece disposta a buscar. Um dos grandes pontos fortes da política de classe de esquerda era sua capacidade de empoderar os trabalhadores, promovendo um senso de poder de classe voltado para o futuro — algo que a direita não conseguiu replicar.

Conforme mencionado anteriormente, em novembro de 2024, eleições regionais foram realizadas em Emilia-Romagna, uma região historicamente de esquerda, e Umbria, que havia sido governada pela direita. Em ambos os casos, os candidatos de Meloni foram derrotados, desafiando suas alegações de campanha de apoio popular cada vez maior. No entanto, o que é particularmente impressionante é a participação eleitoral: 46,4% na Emília-Romanha e 52,3% na Úmbria. Isso representa um declínio de 21,3% no primeiro caso e 12,4% no último em comparação com as respectivas eleições anteriores. Isso aconteceu mesmo apesar de uma mudança para permitir que as pessoas votassem em dois dias — uma janela mais longa que normalmente favorece uma participação maior. Embora dados específicos sobre a demografia dos eleitores não estejam disponíveis, não é difícil imaginar qual parte da população ficou em casa.

Uma esquerda para os educados?

Ao discutir o desalinhamento de classes, devemos considerar um fator adicional e crucial: o nível educacional e o capital cultural distinto que ele fornece. A educação surgiu como um preditor-chave do comportamento eleitoral, com níveis mais altos de educação cada vez mais ligados a preferências de esquerda em muitas eleições na Europa. O economista francês Thomas Piketty até cunhou o termo "Esquerda Brâmane" para descrever uma esquerda cada vez mais dependente de indivíduos altamente educados e culturalmente elitistas. Educação não é necessariamente um bom proxy para renda ou classe, e igualá-los pode resultar em conclusões enganosas. Os sistemas de estratificação contemporâneos apresentam correlações mais fracas entre hierarquias, o que significa que alto status cultural nem sempre se alinha com riqueza econômica — e vice-versa.

Isso ficou evidente no primeiro turno das eleições francesas de 2024. Entre indivíduos de baixa renda (aqueles que ganham menos de € 1.250 por mês), o Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen pontuou um pouco melhor do que o Nouveau Front Populaire (NFP) de esquerda, mas a margem foi estreita: 38% para RN versus 35% para NFP. Ambos se saíram melhor entre eleitores de baixa renda do que entre o eleitorado geral (34% para RN, 28,1% para NFP). No entanto, quando olhamos para o nível de educação, a diferença se torna impressionante: entre indivíduos sem ensino médio (bacharelado), o apoio ao RN subiu para 49%, enquanto o do NFP caiu para 17%. Em contraste, entre aqueles com bacharelado (bac+3), o NFP não só liderou com 37% dos votos, mas o fez com uma vantagem substancial de 15 pontos sobre o RN e o Ensemble de Emmanuel Macron, cada um com 22%.

Na Itália, os partidos de direita superaram coletivamente os de esquerda entre os eleitores de baixa renda nas eleições da UE de junho de 2024, mesmo que por pouco. Entre os eleitores na faixa econômica mais baixa, o amplo campo da direita garantiu 48% dos votos, em comparação com 47% de todos os partidos de esquerda. Somente na faixa econômica média-baixa a direita teve uma grande vantagem: 52% contra 42% da esquerda. No entanto, as diferenças se tornam muito maiores quando se olha para a educação. Entre aqueles sem ensino médio, a direita teve uma vantagem de 59-37%. Por outro lado, entre os indivíduos com diploma universitário, a esquerda dominou, obtendo 61% dos votos contra 34% da direita.

O que surge, então, não é apenas um declínio na capacidade da esquerda de atrair eleitores da classe trabalhadora, mas, mais significativamente, uma divisão cada vez maior nas preferências eleitorais dentro da própria classe trabalhadora, ao longo das linhas educacionais. Trabalhadores manuais e pouco qualificados estão cada vez mais se inclinando para a abstenção ou partidos de direita, enquanto os trabalhadores do conhecimento apoiam amplamente a esquerda. Hoje, as fileiras de ativistas de esquerda incluem um número desproporcionalmente grande de indivíduos bem-educados, mas em decadência, em comparação com sua representação na classe trabalhadora.

Essa questão também está intimamente relacionada ao ativismo e aos perfis dos candidatos. Hoje, as fileiras de ativistas de esquerda incluem um número desproporcionalmente grande de indivíduos bem-educados, mas em decadência, em comparação com sua representação na classe trabalhadora. A mesma tendência é evidente entre os candidatos, pois aqueles com ensino superior dominam esmagadoramente muitos partidos de esquerda contemporâneos.

Por exemplo, com base em minhas estimativas dos currículos de todos os candidatos da coalizão de esquerda italiana Alleanza Verdi e Sinistra (AVS) nas eleições da UE de 2024, 80,6% possuem mestrado ou equivalente (cinco anos de educação universitária), enquanto apenas 14% dos italianos em geral o fazem — um número que provavelmente cairia ainda mais se o foco fosse apenas na classe trabalhadora italiana. Essa disparidade destaca claramente um problema sério com a representação do eleitorado da classe trabalhadora que a esquerda pretende engajar. Sem surpresa, na eleição europeia, a AVS obteve 11% entre aqueles com diploma de bacharel, mas apenas 3% entre aqueles sem certificado de conclusão do ensino médio. No entanto, parece óbvio que os candidatos da esquerda devem representar a classe trabalhadora em toda a sua diversidade, não apenas seu segmento mais educado.

Senso comum, universalismo progressivo

A educação, portanto, complica as questões estratégicas em torno do desalinhamento de classes. O desafio não é apenas construir uma política de esquerda com apelo à classe trabalhadora, mas também garantir que ela ressoe com seus diversos membros, em todas as origens educacionais. Isso requer foco em questões compartilhadas pela população trabalhadora mais ampla — apesar das diferentes experiências de vida moldadas por diferentes níveis de educação — como insegurança no emprego, aumento dos preços dos aluguéis, declínio de serviços públicos como assistência médica e salários que não acompanham a inflação.

Embora a era do populismo de esquerda na Europa possa ter desaparecido, uma lição crucial perdura: muito de seu sucesso eleitoral veio de sua capacidade de promover uma identidade comum em torno de objetivos progressistas claros e compartilhados que transcendiam diferenças inevitáveis ​​entre as pessoas. Independentemente das políticas envolvidas — incluindo aquelas que beneficiam principalmente grupos minoritários específicos — parece crucial enquadrá-las de uma perspectiva unificadora e universalista, ou seja, como propostas que contribuem para a melhoria da sociedade como um todo. Isso significa promover um senso de identificação compartilhada que transcende diferenças específicas, mesmo sem negar sua existência.

Para elaborar uma mensagem que ressoe em toda a classe trabalhadora, independentemente do nível educacional, parece essencial usar uma linguagem e uma maneira de enquadrar as coisas que se baseiem no senso comum e sejam acessíveis a todos. Se um projeto de esquerda se apoia muito em retórica carregada de teoria, registros linguísticos complexos e etiqueta política, ele só alcançará indivíduos que tenham domínio desse vocabulário e dessas maneiras.

Isso cria barreiras para pessoas que não têm capital cultural para navegar em tais códigos e convenções culturais especializados. Claramente, isso não implica que devemos parar de produzir reflexões políticas profundas ou análises complexas. Simplesmente ressalta o óbvio: a linguagem e o registro cultural devem sempre se adaptar ao contexto coletivo e ao público. Uma conferência acadêmica não é um comício político, e vice-versa. Há exceções ao desalinhamento de classes em toda a Europa, das quais a esquerda italiana pode aprender — tanto dos principais partidos de centro-esquerda quanto dos movimentos mais radicais de esquerda.

Tal discussão sobre linguagem, estética e símbolos também destaca a importância, para a esquerda, de se basear em referências culturalmente ressonantes e nacionalmente enraizadas — o que Antonio Gramsci chamou de "nacional-popular" — de forma progressiva. Esta não é uma tarefa simples, e nos últimos anos os direitistas italianos se destacaram na apropriação da identidade e pertencimento nacionais, infundidos com seus próprios valores tradicionalistas e excludentes. No entanto, por mais desafiador que seja, este continua sendo um objetivo estratégico importante, uma vez que as classes populares, especialmente aquelas com níveis mais baixos de educação, tendem a ser mais "nacionalizadas" em seu processo de culturalização. Isso significa que eles são mais responsivos aos símbolos, códigos e referências da nação, em comparação com indivíduos com maior escolaridade, que tendem a ser mais cosmopolitas culturalmente.

O desalinhamento de classes é uma questão que precisa ser enfrentada de frente, com atenção especial ao desafio imposto por diferentes formações educacionais. Há, no entanto, motivos para esperança: também há exceções ao desalinhamento de classes em toda a Europa, das quais a esquerda italiana pode aprender — tanto dos principais partidos de centro-esquerda quanto dos movimentos mais radicais de esquerda. Por exemplo, a centro-esquerda da Espanha tem o maior apoio entre as faixas de renda mais baixa, sem que o Partido Socialista dos Trabalhadores Espanhol seja uma força "culturalmente conservadora". O mesmo vale para a estrela em ascensão da esquerda radical da Europa, o Partido dos Trabalhadores da Bélgica, cujo apoio cresce em áreas de baixa renda e cai em áreas de renda mais alta.

A esquerda precisa urgentemente de estratégias para se comunicar de forma mais eficaz com toda a classe trabalhadora e representar todos os seus segmentos dentro de suas fileiras. Isso deve ser alcançado sem sucumbir à narrativa de direita que cria uma falsa divisão entre pessoas comuns conservadoras e progressistas privilegiados. Embora não seja uma tarefa fácil, é crítica. Tais esforços podem interromper o desalinhamento de classes e abrir caminho para reconquistar os eleitores da classe trabalhadora da abstenção ou do apelo da direita.

Colaborador

Jacopo Custodi é pesquisador em ciência política na Scuola Normale Superiore na Itália e instrutor na Universidade de Stanford e na Universidade de Georgetown. Seus livros mais recentes são Un’idea di Paese: La nazione nel pensiero di sinistra e Radical Left Parties and National Identity in Spain, Italy, and Portugal: Rejecting or Reclaiming the Nation.

30 de dezembro de 2024

Nosferatu é um triunfo falho

O remake de Robert Eggers do clássico original de vampiros de 1922, Nosferatu, é uma aula magistral de terror atmosférico. Você nem vai se importar com o roteiro ocasionalmente desajeitado.

Eileen Jones

Jacobin

Foto de Lily-Rose Depp como Ellen em Nosferatu. (Universal Pictures)
 
Quando se trata de criar uma aura de ameaça oculta e atmosferas assustadoras, Nosferatu de Robert Eggers é um triunfo. Seu talento é tão raro que parece quase desnecessariamente exigente notar a irregularidade do filme, com sequências sensacionais seguidas por outras mais fracas de efeito incerto. No entanto, noto com pesar que Nosferatu não pode igualar A Bruxa (2015) ou O Farol (2019) de Eggers em termos de unidade ousada de visão.

E, claro, não pode tocar a obra-prima de F. W. Murnau de 1922, Nosferatu, que inspirou os voos imaginativos de Eggers desde a infância. Felizmente, esta nova versão não está tentando igualá-la, oferecendo, em vez disso, uma abordagem diferente para o mesmo material de origem, a apropriação não autorizada de Murnau do romance Drácula de Bram Stoker de 1897, que por sua vez foi originado do folclore do Leste Europeu. Não adianta tentar ser purista sobre vampiros como um assunto de ficção pop — todo mundo é livre para dar uma mordida neles.

E tem sido um ano tão difícil cinematograficamente, Nosferatu de Eggers ainda ganha um lugar na minha lista de Melhores Filmes de 2024 — a lista mais curta de todos os tempos — porque há seções de Nosferatu que são tão memoráveis, tão bem-feitas, que você pode se sentir um pouco desconfortável sozinho no escuro até o ano novo.

Talvez a sequência mais brilhantemente assustadora do filme envolva a jornada de Thomas Hutter (Nicholas Hoult), um jovem corretor imobiliário alemão, a um castelo remoto nas Montanhas dos Cárpatos da Transilvânia, de propriedade de um misterioso cliente rico, o Conde Orlok (Bill Skarsgård). Embora ele seja avisado para ficar longe do que se acredita ser um castelo de vampiros pelo povo Romani que ele encontra, que o despreza ou reza por ele, Hutter está quebrado e desesperado para provar seu valor para seu novo empregador, Herr Knock (Simon McBurney), um homenzinho estranho e fervoroso que insistiu que ele fizesse essa viagem. Hutter está preocupado em sustentar sua nova noiva, Ellen (Lily-Rose Depp), que é sujeita a ataques de melancolia e implorou para que ele não a deixasse.

Nicholas Hoult como Thomas Hutton. (Universal Pictures)

A estadia de Hutter no castelo é aterrorizante desde o início. Ele está enfraquecido por sua desorientadora estadia noturna com os ciganos, especialmente quando acorda de manhã e descobre que todos eles se mudaram, levando seu cavalo com eles. Ele tem que caminhar pelo terreno nevado e áspero o resto do caminho, uma caminhada exaustiva, e chega à noite. É aqui que Eggers vai trabalhar nos sentidos — os de Hutter e os nossos — de uma forma que evoca a melhor escrita gótica. Muitos romances de terror do século XIX trabalham na incerteza da percepção, com escuridão, luz bruxuleante do fogo, enormes sombras projetadas, névoas e chuvas, vendavais e tempestades, tudo obscurecendo o que se pode ver e ouvir.

Doença, exaustão, alucinações, estados de sonho perturbadores e talvez perturbação mental invasiva, tudo isso questiona o que o protagonista está vivenciando. Compartilhamos o estado desordenado de Hutter quando uma carruagem fantasma para na frente dele e a porta parece abrir sozinha. Ele entra entorpecido e é transportado para a fortaleza medieval do Conde Orlok. Lá, ele passa por entradas que são de alguma forma perfeitamente construídas para causar medo em seu coração — dois arcos pontiagudos rimados que levam ao pátio do castelo, e através deles na escuridão está uma figura arrepiante, parada e esperando.

Hutter se move lenta e automaticamente em direção ao que parece uma destruição certa, e nós o acompanhamos para dentro do edifício de pedra iluminado apenas pelo fogo na enorme lareira. O Conde é alto e imponente, mas vestido com uma capa e chapéu — quaisquer características particulares são perdidas nas sombras profundas da sala e na névoa amarronzada criada pela fumaça do fogo. Apenas uma vez os olhos do Conde Orlok se iluminam e se tornam visíveis, como duas faíscas, talvez refletindo a luz do fogo ou alguma luz interior mais diabólica. Sua estranha voz gutural, soando como se tivesse sido arrancada, ecoando, do túmulo, bate em Hutter para fazê-lo co-assinar o elaborado documento colocado diante dele.

As noites de Hutter no castelo são febris, enquanto ele sonha que é visitado pelo Conde em uma série de ataques horríveis, mas eróticos, que deixam grandes marcas de presas em seu peito. E seus dias são cada vez mais desesperadores, enquanto ele tenta encontrar uma maneira de sair do castelo estranhamente vazio, onde cada porta está trancada como uma prisão. Seus apelos para que ele volte para casa imediatamente são rejeitados quando o Conde Orlok insiste que ele fique até que esteja bem e descansado.


Still de Nosferatu. (Universal Pictures)

Tudo é magnificamente feito, até sua fuga de arrepiar os cabelos.

Skarsgård e Hoult estão dando as duas grandes atuações do filme, que aumentam o efeito soberbo dessas primeiras cenas no castelo. Skarsgård está irreconhecível como o Conde, que é repentinamente revelado em um momento chocante, levantando-se escarpado e nu de seu caixão, com uma cúpula de crânio, olhos ardentes, bico predador de nariz e um bigode enorme saído daquele famoso retrato de Vlad, o Empalador, também conhecido como Vlad Drácula, a figura histórica mais frequentemente citada como inspiradora do romance original de Stoker. Com a famosa mania de Eggers por pesquisa histórica e precisão, ele deixa claro em entrevistas seus planos ambiciosos de representar o Conde Orlok como "um nobre morto da Transilvânia", preciso até mesmo nos "sapatos que ele teria usado".

E Hoult tem um trabalho ainda mais difícil: o de transmitir o estado estranho e entorpecido de personagens em filmes de terror que, mesmo em seu terror, se sentem compelidos a perseverar em cada desenvolvimento insano, sobrenatural ou não. Ele é perfeito como o trabalhador infeliz nesta fábula de consciência de classe, oferecido por seu chefe puxa-saco como um lanche leve para o aristocrata endinheirado, que é retratado como um monstro sugador de sangue tentando forjar uma vida moderna na cidade alemã de Wisborg. Afinal, há mais presas humanas nas cidades.

Essa linha narrativa é obscurecida pela mudança de ênfase do filme em direção a Ellen, definhando em Londres esperando o retorno de Thomas. Enquanto ele está fora, ela sofre cada vez mais de ataques e estados de fuga que lembram epilepsia ou, talvez, possessão demoníaca. "Muito sangue" é o diagnóstico de seu médico, divertidamente repetido pelo substituto do Dr. Van Helsing, chamado Professor Von Franz nesta versão. Ele é o especialista em ocultismo interpretado por Willem Dafoe, que está maravilhoso com roupas dos anos 1830 e pelos faciais abundantes, e tem uma performance cada vez mais selvagem no filme.

"Sangue demais" é uma fala inteligente que representa bem a visão paternalista densa das mulheres do século XIX, cuja suposta tendência ao excesso — de emoção turbulenta, de desejo sexual, de tormento mental — era opressivamente policiada. O roteiro se inclina fortemente para a opressão de Ellen, desde a cena de abertura em que ela é mostrada como uma garota solitária orando arduamente por afeição e compreensão na forma de "um anjo da guarda, um espírito de conforto — qualquer coisa".

Como sua oração é respondida na forma de um "amante demônio", manifestando-se como Conde Orlok, é o resultado de seu próprio poder "excessivo" na forma de seus dons paranormais. Ela pode até certo ponto prever o futuro e, finalmente, apesar de todos os esforços frenéticos de Thomas, seu amigo Friedrich Harding (Aaron Taylor-Johnson) e o Professor Von Franz, a tarefa de salvar a civilização do Conde Orlok e sua praga acompanhante cairá sobre ela.

"Ele está vindo", geme Ellen repetidamente em horror sexualizado enquanto ela anseia pelo retorno de seu marido e intui psiquicamente a chegada iminente do Conde Orlok no navio.

Willem Dafoe como Professor Von Franz. (Universal Pictures)

Como Ellen, Lily-Rose Depp está recebendo ótimas críticas, e de fato ela se joga no papel, supostamente retratando as convulsões violentas e contorcidas do corpo de sua personagem, sem dublê. Ela também parece ideal para o papel, com seus enormes olhos escuros e feições fortes e sérias que podem carregar o cabelo severo e engessado e as roupas confinantes da época.

Mas dramaticamente, ela vacila em algumas cenas importantes, especialmente seu confronto com o Conde Orlok, no qual ela o desafia, recusando-se a ser uma participante voluntária em um derramamento de sangue, o que é aparentemente necessário para sua união profana. De repente, ela o trata como um antigo namorado após um término ruim. A escrita também fica um pouco boba quando eles discutem sobre essas "regras", como as três noites que ele concederá a ela para chamá-lo enquanto ele causa estragos na vida de todos ao seu redor.

E quem realmente quer mais regras ou explicações de qualquer maneira, no gênero vampiro, que já está abarrotado de regras e explicações? Eggers descartou muitas das mais familiares que cresceram em torno da lenda do vampiro em histórias e filmes, então não há brandir cruzes ou pendurar alho em Nosferatu. Eggers queria desenterrar a tradição vampírica do folclore mais antigo e severo:

Vampiros do folclore nem sempre bebiam sangue. ... Às vezes, eles estrangulavam suas vítimas. Às vezes, eles fornicavam com suas vítimas noite após noite até que morressem. E embora faça todo o sentido anatômico, os vampiros literários anglo bebiam da garganta. Mas por causa dos pesadelos acordados e da síndrome da velha bruxa e da pressão desse sentimento no seu peito, muitos tipos de vampiros populares bebiam do peito, que é o que eu faço no filme.

Em geral, essa reversão ao folclórico serve bem a Eggers. E embora haja aspectos mais fracos de Nosferatu, concentrados principalmente na segunda metade do filme, quando o Conde Orlok está em Wisborg, as cenas mais fortes são as que ficam com você. Há um ótimo interlúdio a bordo, por exemplo, quando um marinheiro trêmulo, um dos últimos vivos, está desesperado o suficiente para descer até o porão e confrontar o que quer que esteja na misteriosa caixa do tamanho de um caixão. Está escuro no porão e o movimento mutável da luz da lanterna revela flashes do fundo que parecem, em nossa imaginação febril, estar repletos de vida ímpia.

Eggers também carrega a trilha sonora em certas sequências com murmúrios vagos, risadas e farfalhares que são uma maneira brilhante de retratar o mundo vivo além da humanidade. Sério, ele é tão talentoso no horror gótico que ficarei grato se ele passar o resto de sua carreira aprimorando suas habilidades em desconforto atmosférico — uma sensação do mundo como fundamentalmente estranho e ingovernável. Seríamos mais cuidadosos com o mundo se tomássemos essa atitude.

Colaborador

Eileen Jones é crítica de cinema na Jacobin, apresentadora do podcast Filmsuck e autora de Filmsuck, USA.

29 de dezembro de 2024

Como Jimmy Carter se tornou um falcão da Guerra Fria

No imaginário popular, Jimmy Carter é associado a uma “agenda de direitos humanos” idealista para a política externa dos EUA. Na realidade, no final de seu mandato, ele estava abrindo caminho para o anticomunismo agressivo de Ronald Reagan.

Uma entrevista com
Aaron Donaghy

Jacobin


O presidente Jimmy Carter sentado no Salão Oval da Casa Branca, 1980. (Bettmann / Getty Images)

Entrevista por
Seth Ackerman

Tradução / Quando se fala da trajetória de Jimmy Carter na esfera internacional, a primeira coisa que vem à lembrança de muitas pessoas é a sua defesa de uma “agenda de direitos humanos” para a política externa dos Estados Unidos.

Mas Carter foi também, em grande medida, um presidente da Guerra Fria. O grande tema da primeira metade do seu mandato foi o seu esforço para reduzir as tensões com os soviéticos através de uma política de desanuviamento e de negociação, enquanto o grande tema da segunda metade foi o desmantelamento dessa posição e a rápida reviravolta de Carter para uma posição muito mais agressiva.

No seu muito elogiado livro The Second Cold War: Carter, Reagan, and the Politics of Foreign Policy, o historiador Aaron Donaghy conta a história desse período, argumentando que, tanto no caso da viragem de Carter para uma linha dura anti-soviética como no caso do recuo parcial de Ronald Reagan em relação a essa política, após um período inicial de intensa beligerância, a força motriz foi sempre a preocupação com a política interna.

Donaghy falou com Seth Ackerman, da Jacobin, sobre as disputas ideológicas internas da administração Carter, o papel do movimento neoconservador emergente na formação do clima político do final da década de 1970 e a tendência persistente entre políticos e responsáveis ao longo da era da Guerra Fria para sobrestimar a vulnerabilidade dos Estados Unidos e o poder dos seus adversários.

Seth Ackerman

É menosprezado o facto de a política externa anti-soviética de Ronald Reagan ter sido, na realidade, uma continuação da viragem para a “segunda Guerra Fria” que começou nos últimos dois anos da presidência de Jimmy Carter. Mas é provavelmente ainda mais subestimado o facto de o próprio Carter ter chegado ao cargo como um forte defensor do desanuviamento e da cooperação com Moscovo.

Aaron Donaghy

Sim. Carter era um político muito anti-establishment; era visto como um outsider e isso refletia-se no tipo de pessoas que trazia para a sua administração. Mas tem razão, ele apoiava em grande medida a abordagem da détente. E se olharmos para a sua retórica inicial, antes e depois das eleições, ele fala de uma postura militar mais contida no estrangeiro. Falava em estabelecer contactos com os soviéticos, em reduzir as despesas com a defesa e em reduzir as armas nucleares estratégicas.

E faz um discurso em maio de 1977 que ilustra bem estes pontos. Ele disse que está na hora de adotar uma nova abordagem. A ideia antiquada de contenção está desatualizada. Nem tudo pode ser definido pela rivalidade entre os EUA e a União Soviética. Por isso, está na altura de diminuir a obsessão com o anticomunismo e de procurar o desanuviamento com os soviéticos.

O único senão, o único problema, é que Carter, ao mesmo tempo, está a promover a sua agenda de direitos humanos. Isso vai contra o processo de desanuviamento com os soviéticos, como ele descobre logo no início da sua presidência.

Seth Ackerman

Durante a primeira metade da década de 1970, assistiu-se a uma polarização ideológica pós-Vietname sem precedentes no seio do establishment da política externa. Olhando para a presidência de Carter, quase parece que essa polarização se reproduziu no seio da própria administração, com as constantes disputas entre Cyrus Vance, o seu secretário de Estado mais "pomba", e Zbigniew Brzezinski, o seu conselheiro de segurança nacional mais "falcão".

Aaron Donaghy

Bem, isto tem a ver com o contexto da época, particularmente à luz do fracasso dos EUA no Vietname. Muitos analistas estratégicos consideravam que os soviéticos estavam essencialmente a tirar partido do desanuviamento. Tinham estado a negociar com [Richard] Nixon, mas também estavam a desenvolver-se militarmente. Assim, na década de 1970, quando a Guerra do Vietname está a chegar ao fim, o establishment da segurança nacional está muito dividido entre aqueles que, por exemplo, pensam que a América deveria diminuir a obsessão com novos sistemas nucleares estratégicos e aqueles que acham que os EUA precisam de levar a cabo uma nova acumulação militar para enfrentar os soviéticos e negociar a partir de uma posição de força.

Brzezinski defendia muito esta última abordagem, ao passo que Vance estava mais interessado em encontrar pontos de acordo com os soviéticos, áreas de terreno comum. Assim, o establishment da segurança nacional estava dividido e, em muitos aspetos, Carter sentiu-se encurralado entre estas duas escolas de pensamento, entre os liberais e os conservadores.

E este não é apenas um debate entre partidos. É também um debate intrapartidário, porque há democratas 'falcões' como [Henry M.] “Scoop” Jackson, que estão a incitar Carter a aumentar a despesa militar e a opor-se à ideia do desanuviamento. E, claro, Carter precisa desses conservadores para ratificar qualquer acordo que possa vir a celebrar com os soviéticos. Trata-se, portanto, de um ato de equilíbrio delicado com que Carter terá de lidar quando tomar posse.

Seth Ackerman

Esta é obviamente a época em que o neoconservadorismo está a nascer como doutrina de política externa. Brzezinski não é habitualmente incluído na lista de nomes que surgem quando se fala dos neoconservadores de meados da década de 1970. Mas, em muitos aspetos, parece ter pontos de sobreposição com eles.

Aaron Donaghy

Sim. A postura de Brzezinski é motivada sobretudo pelas suas convicções ideológicas. Ele é muito antissoviético. Naturalmente, é de origem polaca; a Polónia foi invadida pela União Soviética quando ele era criança e ele manteve essa postura muito antissoviética e anticomunista, que se manifestaria até à presidência de Carter. Portanto, para ele, não se trata tanto de um movimento conservador, mas sim de uma aversão pura e simples à União Soviética e ao comunismo.

Mas havia áreas comuns entre ele e os neoconservadores, no sentido em que ele queria que Carter abandonasse a abordagem mais conciliatória. Parte da razão para isso era o pragmatismo político. Brzezinski sabe que se Carter quer realmente ver o tratado de controlo de armamento SALT II ratificado e um segundo mandato, vai ter de endurecer a sua postura negocial porque vai precisar de dois terços do Senado a seu favor. Portanto, no caso de Brzezinski, é uma mistura de ideologia e pragmatismo político que está a conduzir a agenda.

Seth Ackerman

Há uma dinâmica interessante que transparece no seu livro, em que Carter continua a tentar lidar com as consequências internas das medidas de flexibilização de Moscovo, falando duramente sobre a ameaça soviética. Mas isso só parece piorar o problema político.

Aaron Donaghy

Quanto mais Brzezinski incitava Carter a adotar um tom mais duro - quer devido às operações soviéticas em África, quer devido à badalada brigada soviética em Cuba, ou o que quer que seja - mais levava Carter a aumentar a parada retórica com os soviéticos. Por um lado, suponho que, na perspetiva deles, isso teve o efeito de tranquilizar os conservadores no Capitólio de que ele estava a levar o assunto a sério. Mas, ao mesmo tempo, minou o apoio público às suas políticas. “Se os soviéticos estão a ser tão maus, porque é que está a negociar um tratado com eles?” Portanto, sim, isso era uma contradição nas políticas que ele estava a seguir.

Seth Ackerman

No momento em que Carter entrou em funções, parecia haver um sentimento omnipresente de que - parafraseando o título de um livro sobre o KGB dessa época - o mundo estava a ir na direção dos soviéticos. Que significado teve isso para a política externa de Carter?

Aaron Donaghy

Sem dúvida que o equilíbrio estratégico-militar foi empolado. E, de facto, muito disso foi mais tarde desmascarado, esta ideia de que os soviéticos estavam em vantagem. De facto, Reagan chega ao poder e o chefe cessante da CIA de Carter diz-lhe que não há absolutamente nenhuma superioridade soviética em termos de armas nucleares. Portanto, muito disto foi cuidadosamente cultivado por grupos conservadores como o Committee on the Present Danger, um grupo de lóbi de enorme sucesso que incluía democratas e republicanos.

Ora, havia um elemento de verdade nisto, no sentido em que os soviéticos estavam, em muitos pontos, a tirar partido do desanuviamento. Estavam a construir o seu exército, estavam a violar os Acordos de Helsínquia, etc. Não é que os soviéticos fossem atores benignos. Mas a ameaça real em termos de equilíbrio militar - sabemos agora que foi muito sobrestimada.

Mas penso que isso é um reflexo da Guerra Fria americana em geral. As pessoas no poder tendiam de facto a exagerar a ameaça. Podemos recuar até ao NSC-68 em 1950 [um documento secreto da Casa Branca que apelava a um vasto reforço militar] ou à primeira encarnação do Committee on the Present Danger. Vemos um padrão comum ao longo da Guerra Fria em que os presidentes tendem a inclinar-se para o lado do cenário do apocalipse.

Seth Ackerman

No que toca à análise da política externa americana no século XX por parte da esquerda, esta tem tendido a ver as políticas americanas da Guerra Fria como sendo conduzidas por imperativos estruturais profundos que a tornaram especialmente determinada a intervir no Terceiro Mundo contra movimentos nacionalistas de esquerda. Mas Carter chegou ao cargo parecendo indicar, pelo menos retoricamente, que achava que os EUA deviam ser menos paranóicos em relação a esses movimentos. E havia mesmo uma espécie de argumento estratégico para isto que era por vezes articulado por Vance, segundo o qual se pudéssemos deixar de fazer inimigos preventivos com estes movimentos, eles teriam menos razões para se voltarem para Moscovo e tornar-se-iam assim menos uma ameaça para nós. Bom, é óbvio que sabemos como as coisas acabaram por se passar nesta matéria. Mas quando se olha para o registo histórico da presidência Carter, o que acha que as provas mostram relativamente à forma como os EUA eram, pelo menos potencialmente, capazes de mudar fundamentalmente a sua atitude em relação aos movimentos de esquerda ou nacionalistas no Terceiro Mundo?

Aaron Donaghy

É uma questão que não abordei no livro, mas é um excelente argumento. Penso que as realidades da situação política nos Estados Unidos e o escrutínio a que essas políticas supostamente novas ou radicais teriam sido sujeitas teriam colocado Carter sob muita pressão. A reação às políticas de Carter nessa frente vem de pessoas como Jeane Kirkpatrick, que argumentam que os autocratas de direita, por oposição aos autocratas de esquerda, são mais compatíveis com os interesses americanos. Isso torna-se uma espécie de grito de guerra para os conservadores de ambos os partidos e, de facto, Reagan cooptou Kirkpatrick pouco depois, tornando-a sua conselheira para a política externa na campanha de 1980. Penso que teria sido difícil para Carter fazê-lo, dadas as suas fraquezas políticas.

Seth Ackerman

A um nível mais básico, como pensa que a história verá Carter como um presidente de política externa?

Aaron Donaghy

Carter tem sido sempre visto como um dos presidentes menos bem sucedidos, se é que se pode dizer isto nestes termos. Mas muitas pessoas argumentariam que Carter teve mais êxitos em matéria de política externa num só mandato do que muitos presidentes conseguiram em dois mandatos.

Se olharmos para as suas conquistas, temos o Tratado do Canal do Panamá, a normalização das relações com a China, os Acordos de Camp David, o Tratado SALT II (que, honestamente, considero ter sido uma conquista modesta) e também a integração dos direitos humanos como um princípio da política externa americana, apesar de, na prática, ter sido obviamente aplicado de forma desigual. Penso que os historiadores se debruçarão sobre todos estes aspetos nos próximos anos e que reavaliarão - acho que já estão a fazê-lo - o desempenho de Carter na cena internacional. E penso que o julgarão um Presidente mais bem sucedido do que tem sido talvez o caso até à data.

Seth Ackerman

É interessante pensar nessas iniciativas, porque durante a presidência de Carter havia um sentimento omnipresente de que os EUA estavam a perder poder em toda a linha. Mas quando olhamos para o assunto da perspetiva de um marciano e pensamos, como é que esta grande potência se está a sair quanto a conseguir que outros países poderosos alinhem com ela em vez de com os seus inimigos - esta foi a época em que os EUA levaram o Egito para o campo americano e para longe do campo soviético; trata-se da grande potência do Médio Oriente. Tiraram a China do campo soviético e levaram-na para uma espécie de campo pró-americano; essa é a (futura) grande potência da Ásia Oriental. Durante este período, os Estados Unidos conseguiram, de facto, levar vários países do Pacto de Varsóvia a uma maior independência em relação a Moscovo. No papel, parece que o mundo estava a seguir o caminho dos Estados Unidos, mas na altura as pessoas sentiam exatamente o contrário.


Aaron Donaghy

Absolutamente. Novamente, muito disto remonta à Guerra do Vietname. Já falámos sobre a forma como dividiu a comunidade de segurança nacional. Havia um sentimento geral de desânimo e tristeza. E, recorde-se, ainda nem sequer falámos da crise dos reféns no Irão, que se tornou uma espécie de símbolo do declínio americano que, obviamente, nunca se verificou em nenhuma fase da era pós-1945.

Daniel Bessner e Fredrik Logevall escreveram sobre isto num artigo fantástico: na era pós-1945, a América foi sempre a principal potência mundial em praticamente todos os aspetos: político, militar, económico, cultural, científico e tecnológico. Em todos os aspetos, a América era o líder. E quando se trata da inflação da ameaça soviética que estava em curso na altura, podemos agora ver através dos registos que os números foram empolados, que houve muitos exageros. Repito, o que quero dizer com isto é que tudo se resume à política interna - os políticos vão sempre capitalizar [o medo] para obter ganhos políticos.

Colaboradores

Aaron Donaghy é professor de história moderna na University of Limerick.

Seth Ackerman é editor da Jacobin.

Jimmy Carter manteve a porta aberta para o neoliberalismo

A presidência de Jimmy Carter foi profundamente limitada por crises econômicas e políticas. Sua relutância em assumir uma posição radical o forçou a responder a esses eventos impondo austeridade e fazendo pouco para fortalecer o trabalho.

Sean T. Byrnes


Jimmy Carter em sua mesa no Salão Oval, 13 de dezembro de 1977. (US National Archives and Records Administration via Wikimedia Commons)

Não importa o que se diga sobre a presidência de Jimmy Carter, estava claro que o próprio homem pretendia que ela fosse transformadora. De uma posse moderada em 1977 — Carter pulou a carreata e os bailes de gala em favor de trajes executivos e um passeio ao ar livre pela Pennsylvania Avenue — às promessas subsequentes de restaurar a independência energética americana, reformar o bem-estar social e até mesmo transcender o "medo desmedido do comunismo" que dominou a política externa dos EUA desde a década de 1940, o trigésimo nono presidente colocou muito em seu prato.

Eleito presidente após a catastrófica intervenção dos EUA no Vietnã e em meio a tensões raciais divisivas e dificuldades econômicas generalizadas, Carter esperava, como ele disse em seu discurso de posse, "trazer um compromisso ressurgente com... princípios [morais] básicos" e estabelecer um governo "competente e compassivo".

Embora Carter tenha alcançado mais do que geralmente lhe é dado crédito — e continua entre os homens mais decentes que ocuparam o cargo — sua presidência falhou em trazer a transformação fundamental que ele buscava. Em vez disso, seu mandato ajudou a estabelecer um padrão muito mais duvidoso: presidentes democratas com agendas políticas admiravelmente ambiciosas frustradas por uma incapacidade de formar uma coalizão durável ou conter a erosão do apoio de seu partido entre as classes trabalhadora e média.

Preenchendo o vazio

Nascido em Plains, Geórgia, em outubro de 1924, Carter a princípio parecia destinado a uma vida na Marinha, graduando-se na Academia Naval em 1946 e servindo a bordo de submarinos até 1953. Ele foi chamado de volta para Plains naquele ano por uma crise familiar — seu pai morreu deixando a fazenda da família em apuros — forçando um Jimmy relutante (e sua esposa ainda mais relutante, Rosalynn) a retornar para administrá-la.

A atração pelo serviço público nunca esteve longe, no entanto, e, com a prosperidade restaurada no final da década de 1950, Carter se voltou para a política, servindo no Senado Estadual da Geórgia antes de uma candidatura fracassada para governador em 1966 (ele foi finalmente derrotado pelo arqui-segregacionista Lester Maddox). Embora o próprio Carter tenha demonstrado uma oposição pessoal ao racismo que era rara entre os brancos da Geórgia de sua origem, ele provou ser político o suficiente para cortejar supremacistas brancos em sua segunda candidatura para governador em 1970, um movimento que pode muito bem ter sido decisivo em sua eventual vitória.

Como governador, Carter retornou às suas raízes mais antirracistas, denunciando a segregação, trabalhando para melhorar a participação negra no governo da Geórgia e garantindo financiamento igual para distritos escolares minoritários. Sua reforma da burocracia estadual é considerada por muitos como sua principal conquista em Atlanta, demonstrando interesse na "eficiência" governamental e corte de custos que ele levaria consigo para a presidência. Ele foi, de muitas maneiras, uma ressurreição pós-movimento pelos direitos civis do tipo de "bom governo" dos democratas progressistas representados por figuras como Woodrow Wilson.

Apesar de servir apenas um mandato como governador, Carter buscou a nomeação democrata para a presidência em 1976. Embora não estivesse mais disposto a cortejar segregacionistas, Carter provou mais uma vez estar ansioso para parecer tudo para todas as pessoas. O New York Times naquele ano relatou que os eleitores da direita tendiam a ver Carter como um dos seus, assim como os eleitores da esquerda — algo que fontes anônimas na campanha admitiram ser uma estratégia deliberada.

Embora muito distante do engano de campanha praticado por alguns de seus antecessores imediatos no cargo, ele se mostrou eficaz em permitir que Carter navegasse em um ambiente político desafiador. Em essência, o debate nacional sobre a Guerra do Vietnã, direitos civis e igualdade racial fragmentou as coalizões políticas formadas nas décadas de 1930 e 1940, deixando os partidos Democrata e Republicano profundamente divididos entre suas alas conservadora e liberal.

O consenso grosseiro que se formou em torno das políticas econômicas de centro-esquerda do New Deal e da busca agressiva pela Guerra Fria no exterior estava começando a ruir, deixando pouco claro que tipo de nova política se seguiria. Carter conseguiu passar na ponta dos pés por esse campo minado, agradando o suficiente da esquerda e da direita de seu partido para obter a nomeação com bastante tempo para assistir seus oponentes se despedaçarem durante uma primária do Partido Republicano muito mais prolongada em 1976. A quase derrubada de Ronald Reagan do presidente em exercício, Gerald Ford, como o candidato republicano certamente tornou a vida mais fácil para Carter na eleição geral. No entanto, dada toda a bagagem que Ford levou às urnas, a vitória apertada de Carter (ele mal conquistou o voto popular) ofereceu um bom motivo para uma pausa.

Acabando com a Guerra Fria

Carter seguiu em frente. Profundamente comprometido com sua fé batista e confiante em sua visão de mundo, ele se moveu corajosamente uma vez no cargo para transcender o que ele via como a política de poder amoral que os Estados Unidos haviam praticado nas últimas décadas. O desastre da Guerra do Vietnã, as revelações espetaculares sobre os delitos da CIA que vieram à tona por meio de investigações do Congresso em 1975 e o perigo sempre presente de uma guerra nuclear significavam que era hora de retornar ao que Carter acreditava serem as raízes morais da nação: um profundo respeito pelos "direitos humanos". "O compromisso da América com os direitos humanos", como ele disse em um discurso de 1977 na Universidade de Notre Dame, seria "um princípio fundamental de nossa política externa". Carter tinha um talento especial para gastar seu capital político sem um plano para ganhar mais.

Embora um foco retórico, os direitos humanos eram apenas uma maneira conveniente de resumir uma tentativa mais ampla e difícil de explicar de reorientar a política externa americana. Influenciado por pensadores — como seu conselheiro de segurança nacional Zbigniew Brzezinski — que temiam que o mundo em meados da década de 1970 estivesse se afastando dos Estados Unidos, Carter trabalhou para polir a reputação recentemente manchada dos Estados Unidos no exterior, abordando questões globais supostamente negligenciadas por administrações anteriores.

Primeiro, ele repreendeu diretamente as políticas de linha dura da Guerra Fria que levaram à intervenção dos EUA no Vietnã — anunciando que os Estados Unidos continuariam a buscar acomodação e controle de armas com a União Soviética. Ele também adotou uma abordagem relativamente mais acomodatícia às demandas do Sul Global nas Nações Unidas por maior igualdade econômica internacional, nomeando, em um golpe brilhante, o herói dos direitos civis Andrew Young como embaixador dos EUA na ONU. Sua administração também fez esforços importantes (embora incompletos) para confrontar a supremacia branca no sul da África, ajudando a acabar com o governo da minoria branca na Rodésia (hoje Zimbábue). Além disso, Carter negociou pessoalmente o que, por um tempo, pareceu um passo definitivo em direção à paz entre Israel e Palestina: os Acordos de Camp David de 1978.

Sua realização mais duradoura e hoje pouco apreciada foi garantir a ratificação pelo Senado de tratados que restauravam o controle da Zona do Canal do Panamá e do próprio canal para o Panamá. Em meados da década de 1970, o controle dos EUA sobre o canal havia perdido muito de seu valor estratégico, mas era um constrangimento significativo em grande parte do mundo e um ponto crítico para a violência no Panamá. Embora todas as três administrações anteriores tenham feito esforços para alienar a propriedade, a forte oposição à "doação" do canal em casa havia paralisado os procedimentos (a oposição às negociações era, de fato, uma peça central do esforço de Reagan para destituir Ford). Carter concluiu o trabalho, garantindo a ratificação por um único voto, ao custo de considerável capital político.

De fato, Carter tinha um talento especial para gastar seu capital político sem um plano para ganhar mais. Tanto seu foco vacilante em problemas políticos quanto sua recusa baseada em princípios, mas muitas vezes abrasiva, de se envolver na negociação tradicional em que o Congresso prosperava, prejudicaram sua capacidade de promover a agenda de sua administração à medida que seu mandato avançava.

Mais criticamente, ele ofereceu pouco em casa para garantir a lealdade dos eleitores que lutavam para sobreviver em meio ao clima econômico incerto de meados da década de 1970. É verdade que era um ambiente difícil para os formuladores de políticas navegarem também, mas a tendência de Carter de favorecer a eficiência e o corte de custos o puxava cada vez mais para soluções de "governo pequeno". A virada neoliberal dos elementos mais social-democratas do New Deal — e em direção ao fundamentalismo de mercado do presente — começou sob a supervisão de Carter e sob sua direção.

Os primeiros sinais promissores de que a administração trabalharia para fortalecer a mão dos trabalhadores e dos pobres desapareceram à medida que a atenção do presidente foi atraída para outro lugar e sua preferência por soluções mais conservadoras ficou clara. Funcionários do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar, por exemplo, pressionaram Carter a ressuscitar um programa para uma renda nacional garantida que quase foi aprovado pelo Congresso durante a administração de Richard Nixon. Carter, no entanto, pressionou por propostas mais modestas, e até mesmo o diluído "Programa para Melhores Empregos e Renda" de bem-estar de 1977 nunca se tornou realmente uma prioridade (e estava tão focado em cortar custos quanto em aumentar benefícios). Quando a Revolução Iraniana de 1979 derrubou o mercado global de petróleo — levando a preços altos — Carter tinha pouco a oferecer para conter a miséria.

Um destino semelhante aguardava a legislação exigindo que o governo garantisse um emprego para todos os americanos, independentemente das condições de mercado — um foco da esquerda pró-laboral desde a década de 1940. Proposto em 1974 pelo senador Hubert Humphrey e pelo representante Augustus Hawkins, o projeto de lei inicialmente exigia que o governo fornecesse um emprego se o mercado não pudesse. Carter se mostrou cético e pressionou por uma proposta mais diluída em 1977. A versão final do projeto de lei, aprovada em 1978 como a Lei de Emprego Pleno e Crescimento Equilibrado, apenas exigia que o governo perseguisse a meta de pleno emprego e, na prática, fez pouco além de aumentar o número de relatórios que o governo federal fornecia sobre a economia a cada ano.

As áreas em que Carter concentrou sua atenção também pouco ajudaram imediatamente os eleitores. Sua Lei de Segurança Energética e a desregulamentação dos preços dos combustíveis fósseis provavelmente reduziram os custos de energia (e, portanto, a inflação) a longo prazo, mas, como outras políticas — incluindo a desregulamentação das indústrias de companhias aéreas, caminhões e ferrovias — o grau em que isso beneficiou os americanos de classe média e trabalhadora é discutível.

Na ausência de um esforço mais amplo para realinhar ainda mais a estrutura desigualitária da economia dos EUA, tais medidas foram para muitos americanos pouco mais do que uma reorganização das cadeiras de convés em um navio afundando. Mais ameaçadoramente em 1978, Carter invocou disposições de emergência do Ato Taft-Hartley de 1947 para acabar com uma greve dos Trabalhadores Mineiros Unidos. Temeroso de que a greve, de apenas três meses de duração, levasse a um aumento nos custos de energia, Carter efetivamente ficou do lado da gerência, desferindo um dos primeiros golpes de uma série no poder do trabalho organizado nas décadas subsequentes.

Assim, quando a Revolução Iraniana de 1979 derrubou o mercado global de petróleo — levando a preços altos, linhas de gás e inflação ressurgente — Carter tinha pouco a oferecer para conter a miséria. De fato, uma de suas soluções, nomear Paul Volcker como presidente do Federal Reserve, ofereceu mais sofrimento imediato em vez de menos. Com poderes para enfrentar a inflação diretamente, Volcker aumentou drasticamente as taxas de juros ao longo de 1979 e 1980, gerando uma recessão cruel. Quando Volcker terminou (depois que Carter deixou o cargo), a inflação teria diminuído, mas o mesmo aconteceria com o crescimento salarial, uma realidade que, de fato, persiste até o presente.

A revolução no Irã e a subsequente crise de reféns — estudantes radicais invadiram a embaixada dos EUA em Teerã, fazendo 66 cidadãos americanos reféns e mantendo a maioria por mais de um ano — minaram fatalmente qualquer reputação que Carter havia desenvolvido por competência em política externa. Sua tentativa sensata de negociar uma solução pacífica pareceu a muitos americanos oferecer nada além de humilhação, um sentimento apenas agravado por uma missão de resgate fracassada que deixou duas aeronaves dos EUA caídas no deserto iraniano. Seus esforços para reduzir as tensões da Guerra Fria foram ainda mais prejudicados pela invasão soviética do Afeganistão em dezembro de 1979.

No total, quando a temporada eleitoral de 1980 chegou, Carter tinha pouco a enfrentar Ronald Reagan e sua pergunta politicamente devastadora aos eleitores: "Você está melhor do que há quatro anos?" A resposta muito clara e dolorosamente foi não. Carter perdeu decisivamente.

Reagan, é claro, continuaria a reduzir enormemente o poder das classes trabalhadora e média, garantindo um caminho para quatro décadas de rendas estagnadas, sindicatos em colapso e a vasta desigualdade do presente. No entanto, dado o quão pouco o próprio Carter fez para deter essa tendência, não é surpresa que os eleitores, particularmente os "democratas Reagan" da classe trabalhadora, estivessem dispostos a dar uma chance ao republicano. Como Stuart Hall escreveu sobre o Partido Conservador de Margaret Thatcher, o sucesso de Reagan não estava apenas em sua "capacidade de enganar pessoas desavisadas, mas na maneira" como ele "abordou problemas reais, experiências reais e vividas... dentro da lógica de um discurso que os coloca sistematicamente em linha com as políticas e estratégias de classe da direita". A política orientada para soluções de Carter — carente, como faltava, de tentativas substantivas de melhorar imediatamente a vida econômica dos eleitores por meio da redistribuição de renda — simplesmente não conseguia competir.

Todos os seus sucessores democratas no Salão Oval caíram na mesma armadilha. A presidência de Carter provou ser, portanto, transformadora, mas não da maneira que ele pretendia. Aqueles na esquerda que buscam escapar do padrão estabelecido por Carter devem olhar menos para sua presidência e mais para sua pós-presidência: um esforço admirável, longo e dedicado para melhorar e elevar imediatamente as vidas daqueles que sofrem de privação, doença e carência. Um presidente que busca tal abordagem no cargo pode ser transformador de fato.

Colaborador

Sean T. Byrnes é um escritor, professor e historiador que vive no centro do Tennessee. Ele é o autor de Disunited Nations: US Foreign Policy, Anti-Americanism, and the Rise of the New Right, da LSU Press.

28 de dezembro de 2024

Reencontrando James Baldwin

Geralmente associamos o escritor à terra de seu nascimento — América — e à terra de sua expatriação, a França. Mas uma nova exposição fascinante foca nos anos de Baldwin na Turquia, o país que, em suas palavras, salvou sua vida.

Doreen St. Félix


Baldwin na Ponte Galata de Istambul. Fotografias de Sedat Pakay / © Sedat Pakay / Cortesia da Biblioteca Pública do Brooklyn

A fama após a morte pode matar novamente. O historiador sabe disso; o biógrafo sabe disso. Não estando mais aqui para moldar sua própria imagem, figuras familiares se tornam desconhecidas para nós. Tantas privacidades agora desprotegidas. O falecido James Baldwin, que morreu no dia primeiro de dezembro de 1987, fornece infinitamente. Você pensa, ao ler suas cartas, que está conhecendo-o melhor — o amante descoberto, etc. — quando a pessoa que está conhecendo melhor é você mesmo.

Retrato de James Baldwin, 1964.

Seus sentimentos de orfanato, digamos. A imagem moderna de Baldwin é dominada pela inclinação de veneração retrospectiva. Ele se tornou um cruzamento entre o pregador e o papai, compondo um retrato do mundo segregado por meio do dom de seu vidente para a clareza glacial — uma representação que ocorre às custas de outros aspectos de seu caráter. Tenho dificuldade com, por exemplo, “I Am Not Your Negro” — o documentário de Raoul Peck de 2016, construído a partir de imagens de arquivo e filme — que eu sei ser uma excelente exumação de Baldwin, no final da vida, lutando com seu manuscrito inacabado, “Remember This House”, uma obra memorialista criada a partir de sua dor após os assassinatos de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. O que me irrita é a excisão do filme da queerness de Baldwin, o que significa a excisão do amor pleno. Baldwin é o escritor de fato do filme; seus escritos fornecem a narração. Mas a voz que os lê é a de Samuel L. Jackson, fenomenal e eclipsante — e direta. Ele consegue cancelar a forte memória auditiva que temos de Baldwin, o orador, para funcionalmente desmistificá-lo. O que resta é a voz do profeta desambiguado. Baldwin se torna o orador imortal, sempre a serviço. Ele faz um sermão sobre o terror do seu mundo e do nosso, enquanto o arquivo dá lugar a imagens contemporâneas de comícios do Black Lives Matter.

Baldwin e marinheiros da Marinha dos EUA, perto da Mesquita Azul, em Istambul.

Outros tratamentos tentam fazer biografias por meio da exibição de cartas. O centenário do nascimento de Baldwin, no ano passado, não viu escassez de hinos, modulando a tonalidade para menor e tornando os arranjos ligeiramente discordantes. A Biblioteca Pública de Nova York seguiu o caminho da projeção institucional. Selecionadas de uma aquisição de parte do arquivo pessoal de Baldwin, duas exibições — uma no edifício histórico da biblioteca, na Quinta Avenida, e a outra no Schomburg Center for Research in Black Culture, na Malcolm X Boulevard — enfatizam como Baldwin se apaixonou pela leitura e pelo pensamento nas bibliotecas da cidade. Em um artigo, um rascunho de “Letter from a Region in My Mind”, Baldwin escreve sobre “atravessar a Quinta Avenida a caminho da biblioteca da rua Forty-second, e o policial no meio da avenida murmurou, quando passei por ele, Por que vocês, negros, não ficam na parte alta da cidade, onde vocês pertencem?” Mais uma vez, Baldwin está falando conosco dos mortos. Na parte alta da cidade, no Schomburg, um abrigo para os arquivos de intelectuais negros do século XX, o show — chamado “JIMMY! God’s Black Revolutionary Mouth”, em referência ao elogio fúnebre do escritor Amiri Baraka a Baldwin — fazia mais sentido intuitivamente. O Harlem tinha sido o local de origem de Baldwin, a exibição de cartas para seus confidentes era o material do retorno ao lar. E, no entanto, os papéis sob a vitrine tornam-se estéreis. A transformação, muito menos a compreensão transformadora, não pode ocorrer.

Vendedor de sorvete, clientes e Baldwin na Yeni Cami (Nova Mesquita), em Istambul.

Então, como chegamos a Baldwin por meio de algo além da coleção de artefatos, uma prática antiinterpretação que está assolando as práticas curatoriais de algumas instituições americanas nobremente definidas em proteger a história negra? Observe que as exibições nunca deixam o domínio da adoração afro-americana-cristã: Deus e a profecia não saem da sala. A cantora, compositora e baixista Meshell Ndegeocello, em sua homenagem à linguagem e mensagem de Baldwin, faz mais do que venerar; ela alcança a transformação ativa. O próprio Baldwin acreditava que é apenas na música, que "os americanos são capazes de admirar porque o sentimentalismo protetor limita sua compreensão dela, que o negro na América foi capaz de contar sua história". A suíte de Ndegeocello "No More Water: The Gospel of James Baldwin" faz com a música o que Baldwin fez com a escrita, usando sua linguagem na construção de sua obra. O efeito é “devolver o corpo a Baldwin”, parafraseando meu colega Hilton Als, cuja exposição de 2019 “God Made My Face: A Collective Portrait of James Baldwin” é um cognato de Ndegeocello. Reunindo retratos contemporâneos de Baldwin com obras concebidas e feitas após sua morte, Als captou ambas as entidades: Baldwin como ele viveu, e Baldwin como ele nos afeta.

Baldwin dentro da Mesquita Azul.

A nova exposição de fotos de Baldwin na filial Grand Army Plaza da Biblioteca Pública do Brooklyn não está chamando atenção, montada como está no movimentado saguão e no segundo andar. Você pode até não vê-la. Em exposição está um conjunto de fotos que não foram vistas pelo público em geral — o que é o atrativo óbvio. Mas mesmo o que é conhecido parece novo. Uma foto famosa na coleção mostra um Baldwin sentado em uma máquina de escrever em uma sala fechada, cigarro na mão, alguma luz emanando de uma janela. Ele está olhando para sua máquina. Todos no mundo estão olhando para ele. A maioria reconhece a foto deste autor, mas não conhece seu cenário ou suas circunstâncias: é um ícone, um talismã. Baldwin é o autor arquetípico na sala arquetípica, sozinho para que ele possa olhar para fora. Foi Sedat Pakay, um jovem fotógrafo e cineasta turco e amigo de Baldwin, que compôs a fotografia e o quarto, o próprio Baldwin em Istambul, a residência intermitente que ele ocupou de 1961 a 1971, precipitada por um bloqueio psíquico que tornava a escrita árdua.

Baldwin trabalhando em seu romance “Tell Me How Long the Train’s Been Gone”.

O texto que pesava sobre ele na época de sua chegada à Turquia era seu romance “Another Country”, então inacabado. A turbulência da América dos direitos civis também. Dizem que Baldwin chegou à residência de Engin Cezzar, um ator turco que interpretou Giovanni em uma oficina de uma produção teatral de “Giovanni’s Room” em Nova York, completamente esgotado. Baldwin em fuga. Nós o associamos a dois países. A terra de seu nascimento, os Estados Unidos — nos quais ele, um homem negro que amava os homens — não podia estar física ou psiquicamente seguro. A terra de sua expatriação, a França, onde ele experimentou, primeiro, uma relativa liberdade sexual e racial e, à medida que envelhecia, um confronto crítico com sua própria americanidade. Um tipo de frustração com Baldwin é sua alienação dos intelectuais africanos, como ele mesmo descreve em seu ensaio “Princes and Powers”, uma análise do Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, realizado em Paris, em 1956. E assim seu tempo na Turquia — em Istambul, a cidade portuária que antecedeu a criação do “Mundo Ocidental” e a pilhagem concomitante do “Continente Negro” — figura na narrativa de Baldwin como um espaço liminar. Este é o espaço explorado na exposição da Biblioteca Pública do Brooklyn, intitulada “A Turquia salvou minha vida: Baldwin em Istambul, 1961-1971”, com fotografias feitas por Pakay.

Baldwin nos degraus de Yeni Cami.

É um pouco surreal ver Baldwin olhando para o estreito de Bósforo. É um pouco surreal ver sua forma, de perfil, combinando com o horizonte do Chifre de Ouro. (Pakay era jovem quando se tornou amigo de Baldwin, e suas fotos podem transmitir uma qualidade encenada e admirada; Baldwin, sempre o sonho do fotógrafo, joga junto.) É especialmente surreal ver Baldwin perto da Mesquita Azul. Por quê? Ele é tirado do contexto ocidental-cristão. Uma visita recente a Israel o desiludiu da propaganda que representa aquele país como um oásis intercontinental de harmonia racial. Baldwin ostenta sua diferença na cidade oriental, conhecendo bebês, flertando com todos, portanto, fazendo a cidade se ajustar em torno de sua diferença. Certas composições diminuem sua americanidade, colocam em primeiro plano sua africanidade. Ele se senta entre homens turcos fumantes, bebendo chá turco, como meu colega Elif Batuman observa em um texto para a exposição, descrevendo “a percepção óbvia, mas de alguma forma emocionante, de que, enquanto estava na Turquia, Baldwin consumia comida turca”. O escritor é um sujeito que rouba a gravidade. Ele sempre quis ser desejado; ele é o objeto de amor de Pakay, capturado em multidões — um contraponto aos retratos de gravidade que temos de Baldwin de seu compatriota americano, o fotógrafo Richard Avedon.

Baldwin era uma criatura social, praticamente se afogando em amigos. Algumas das fotos de Pakay têm aquele glamour de revista de estilo de vida. Aqui está Baldwin em seu avental, preparando o jantar para os convidados. Aqui ele está sorrindo tanto que parece enlouquecido, um homem de pé ao lado dele, dando tapinhas em seu ombro. Visitantes dos Estados Unidos vêm até ele. Aqui eles estão comendo na casa de Baldwin no Bósforo. Beauford Delaney foi o mentor de Baldwin e o pintor do meu retrato favorito dele, "Dark Rapture", uma obra a óleo expressionista na qual Baldwin é um nu idealizado, posando em uma cama, ladeado por duas árvores, seu corpo girando e se fundindo com a paisagem. Cerca de vinte anos após a pintura, o protegido de Delaney está realizando um salão do outro lado do Atlântico. Delaney aparece nas fotos, assim como Bertice Reading, a atriz, e Don Cherry, o oracular trompetista e compositor de jazz.

Baldwin, Beauford Delaney, Bertice Reading e seus filhos.

Baldwin disse que a Turquia salvou sua vida; daí o nome da exposição. Lá ele completou “Another Country”, “The Fire Next Time” e “No Name in the Street”. Magdalena J. Zaborowska, em seu livro “James Baldwin’s Turkish Decade: Erotics of Exile”, relata profundamente os aspectos sexuais e sensuais da fuga de Baldwin também. É interessante que ele parecesse acumular a cidade da página — que ele protegeu Istambul do brilho implacável de sua própria caneta. Privacidade é um tema nos retratos mais fortes de Pakay. O destaque é Baldwin na cama, amassado sob seus lençóis, chegando tão perto da borda do colchão que ele pode estar tocando a parede, aquele rosto famoso totalmente obscurecido, uma espécie de contraponto a “Dark Rapture”. Não se engane, os turcos conheciam Baldwin; sua chegada a Istambul saiu nos jornais. Mas ele podia viver mais abertamente lá do que em Paris ou Nova York, onde sua lenda estava tomando conta de sua vida. No curta documentário de Pakay “James Baldwin: From Another Place”, filmado no início dos anos setenta, Baldwin está quase tão nu, dessa vez na vida. O filme começa com ele caindo da cama vestindo apenas cuecas brancas. Este é um corpo desejável e claramente desejoso. Ele se veste, ele faz seu caminho pela cidade. Ele fala da vantagem do expatriado. Ele pode ver seu país daquela distância. Ele amou e amou homens, ele diz. Ele nunca se considerou um líder, ele continua, mais uma testemunha.

Baldwin em um barco a remo no Corno de Ouro.

Em 1969, Baldwin dirigiu uma peça de teatro, "Fortune and Men's Eyes". John Herbert, um dramaturgo canadense, fez uma obra semiautobiográfica sobre sua homossexualidade e sua experiência na prisão — dois confinamentos. Baldwin encenou a peça em Istambul, recrutando Cherry para compor música para ela e persuadindo atores homens a se tornarem drag queens. Ele sublimou suas próprias experiências na prisão — Baldwin passou oito dias em uma prisão francesa, acusado de furto — em sua produção. Temos uma fotografia da performance, atores empurrados momentaneamente para fora do roteiro de gênero, o homem que os dirigiu em lugar nenhum para ser visto, bem no fundo dos bastidores. No filme de Pakay, ele se aproxima de uma estante de livros, onde encontra uma tradução turca de "Fortune and Men's Eyes". Ele pega outro livro e o levanta para a câmera — "The FBI Story" — e sorri. Baldwin viveu na América mesmo quando ele estava fora; o FBI tinha um arquivo sobre ele com quase duas mil páginas. A exposição de Baldwin da Biblioteca Pública do Brooklyn é separada do Baldwin que foi caçado. Ele flutua no tempo. É algo que temos que dizer a nós mesmos, retrospectivamente, que quando ele estava longe da América, ele sentiu um alívio total e purgativo. Que a América o estava matando. E, onde quer que ele fosse, a América estava sempre lá.

Reading e Baldwin em Kilyos, no Mar Negro.

Doreen St. Félix, redatora da The New Yorker desde 2017, é colaboradora regular da coluna semanal Critic's Notebook.

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