Para o líder uruguaio, ícone de longa data da esquerda latino-americana, a justiça econômica era inseparável da decência humana.
Jon Lee Anderson
José Mujica — o ex-guerrilheiro, prisioneiro político, filósofo e presidente uruguaio, conhecido carinhosamente em toda a América Latina como Pepe — morreu na terça-feira, aos 89 anos. Mujica era muitas coisas, mas acima de tudo era um homem de bom coração que dedicou a vida à luta para garantir um futuro mais justo para seu país, primeiro como combatente armado e, mais tarde, como o mais antigo estadista do Uruguai. Uma figura baixa e corpulenta, com bigode e cabelos despenteados, vestia-se com roupas amarrotadas e desgastadas, mas seus olhos brilhavam com um humor irônico. Em aparições públicas, frequentemente falava de forma comovente sobre o poder transformador da ação política, mas também deixava espaço para a franqueza, tendo certa vez descrito um colega chefe de Estado como "louco como uma cabra". Como muitos uruguaios, ele adorava erva-mate e nunca estava sem seu cantil e sua bombilla, o canudo de prata usado para beber chá. Era também um fumante incorrigível e, com o passar dos anos, sua voz se transformou em um rosnado gutural.
Mujica recebeu o diagnóstico de câncer de esôfago na primavera de 2024, e os últimos meses de sua vida foram uma longa despedida, com velhos amigos, repórteres e chefes de Estado vindo visitá-lo pela última vez. Mujica recebeu seus convidados ao lado de sua esposa de muitos anos — Lucía Topolansky, uma ex-guerrilheira que mais tarde serviu como vice-presidente — em sua casa de fazenda em ruínas, uma estrutura térrea com telhado de zinco, perto de uma estrada de terra nos arredores de Montevidéu. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, estava entre os visitantes. "Ele sabia que não lhe restava muito tempo", Lula me disse recentemente. "Mas isso não era um problema. Ele já havia feito história."
Conheci Mujica pela primeira vez em Havana, em meados dos anos 1990, na casa de um velho revolucionário no bairro de Miramar. Eu estava pesquisando para uma biografia de Che Guevara, e Mujica o conhecia — eles eram companheiros de partido na efervescência revolucionária dos anos 1960. Quando jovem, Mujica se juntou a um grupo guerrilheiro urbano marxista conhecido como Tupamaros, cujas campanhas foram recebidas com cruel repressão pela ditadura militar uruguaia.
Mujica me contou sobre a ocasião em que participou de um encontro noturno entre Guevara e o líder Tupamaro, Raúl Sendic, em um local seguro nos arredores de Montevidéu. Guevara viajava disfarçado, a caminho de Cuba para a Bolívia. Segundo Mujica, ele estava lá para pedir ajuda aos guerrilheiros de Sendic. Além de um passaporte uruguaio falso e outro apoio logístico, Guevara queria que os Tupamaros se comprometessem com uma guerrilha continental que ele se propunha a desencadear — a única maneira, sugeriu ele, de superar seus inimigos de classe. "Ele não estava enganado", disse Mujica. "Estávamos muito conscientes, devido às dimensões do Uruguai e ao contexto da época, de que precisávamos fazer parte de algo maior."
Um ano depois, Guevara morreu liderando uma guerrilha na Bolívia. Embora não tenha conseguido forjar a unidade latino-americana, Mujica manteve o objetivo. "Sabe, a noção de 'continentalidade' vai muito além de simplesmente desencadear guerrilhas por toda a América Latina", disse-me ele. "Nós, latino-americanos, chegamos tarde ao advento do capitalismo moderno e continuamos distantes dele. Se não encontrarmos uma maneira de nos integrarmos, como países pobres da região, estamos condenados a ser dependentes" dos países ricos e industrializados do Norte.
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Mujica se recusou a morar no palácio presidencial, doou a maior parte de seu salário para instituições de caridade e dirigiu seu Fusca 1987 para o trabalho. Fotografia de Natacha Pisarenko / AP |
A luta por mudanças políticas foi feroz, pelo menos no início. Como membro dos Tupamaros, Mujica participou de batalhas e sofreu ferimentos. Foi capturado diversas vezes e, certa vez, participou de uma fuga dramática da prisão. No final, porém, ele e alguns outros foram recapturados e mantidos reféns pelos militares uruguaios, numa tentativa de conter a insurgência. Mujica ficou preso por treze anos, grande parte deles em uma cela subterrânea solitária — uma experiência que quase o levou à loucura.
Os Tupamaros se desarmaram formalmente após o fim da ditadura, em 1985. Mujica saiu da prisão e, em 1994, embarcou em uma carreira política na democracia restaurada do Uruguai. Foi deputado, senador, ministro e, finalmente, de 2010 a 2015, presidente. Mesmo assim, ele se recusou a se mudar de sua casa de fazenda para a residência presidencial e doou grande parte de seu salário para instituições de caridade. Ele ia para o trabalho em seu Fusca azul-celeste de 1987.
Mujica nunca abandonou suas visões de esquerda e expressou solidariedade aos outros presidentes de esquerda da região — veteranos como Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula, e posteriormente a recém-chegados como Gabriel Boric, do Chile, e Claudia Sheinbaum, do México. Mas ele também era um pragmático, capaz de se relacionar com adversários políticos nacionais e com líderes estrangeiros à sua direita. Às vezes, ele era comparado a Nelson Mandela, outro lendário prisioneiro político da Guerra Fria, que, de forma semelhante, passou a vida no pós-guerra trabalhando para reconciliar seus compatriotas e exaltando as virtudes da não violência. Em nosso primeiro encontro, perguntei a Mujica como ele havia conseguido sair da prisão sem querer vingança. "Tive camaradas que usaram seu poder para acertar contas", disse ele. “Mas lutei contra mim mesmo para não fazer isso, porque percebi que só criaria mais obstáculos. Eu tinha que decidir qual era a prioridade: o futuro ou o passado. Não se trata de esquecer o passado, mas, se você se concentrar nele a ponto de destruir o seu futuro, então você fracassou.”
Visitei a casa de Mujica em 2017 e o encontrei na guarita do lado de fora, uma estrutura em ruínas onde El Turco, seu leal guarda-costas, estava estacionado — e onde Mujica vinha roubar cigarros escondidos de Lucía, que o havia proibido de fumar. Enquanto conversávamos, ele enrolava seus próprios cigarros, um após o outro.
Castro havia morrido um ano antes, e Mujica relembrou seu último encontro, dizendo que, mesmo no final, Castro permaneceu “capaz de dizer coisas que precisavam ser ditas”. Ainda assim, Mujica lamentou o declínio da consciência revolucionária em Cuba, onde a sociedade socialista que Castro tentara construir estava se desintegrando. “O número de consumidores aumentou, mas não a consciência social deles”, disse ele. “Em nossa época, pensávamos que a sociedade poderia ser transformada automaticamente se transformássemos a relação entre produção e distribuição — mas, ao enfatizar isso, relegamos a importância da arte e da cultura.” Isso, disse ele, foi um erro profundo.
A esquerda fracassou, sua energia substituída pela do capitalismo global. Essa era uma realidade que precisava ser reconhecida, pois representava enormes problemas para a humanidade, disse Mujica. “A natureza mutável da sociedade, o crescimento do poder corporativo transnacional globalizado e das finanças internacionais trouxeram insegurança para as classes médias”, disse ele. “As mudanças em lugares como Detroit, devido às novas tecnologias, tornaram essas pessoas muito vulneráveis a mensagens protecionistas e racistas — ‘A culpa é dos negros, dos mexicanos’ — que geram os piores tipos de egocentrismo.” Como resultado, disse ele, “vemos a ascensão de políticas reacionárias, o hipernacionalismo: Alemanha para alemães, ou o que quer que seja”.
Ele sentia, com a mesma intensidade de sempre, que o capitalismo não conseguia alimentar inteiramente a alma. “A humanidade foi subjugada por um tipo de civilização cujo epicentro é o mercado”, disse ele. “Tudo agora depende do sucesso do mercado, desde os meios de produção até os riscos ao equilíbrio ecológico.” A sociedade contemporânea estava à deriva, prosseguiu. “Ela precisa de uma administração política que não pode ter, porque o mercado, e não uma consciência social, é sua força motriz.”
Em setembro passado, fui ver Mujica pela última vez, na sala de estar desorganizada e forrada de livros de sua casa de fazenda. Ele estava sentado em uma poltrona e usava um cardigã preto enorme para se proteger do frio do inverno. O ambiente era aquecido por um antigo aquecedor a lenha. Ele, Lucía e eu conversamos sobre tudo, desde o "narcisismo" da sociedade moderna obcecada por selfies até o fenômeno da imigração e, como sempre, o aparente colapso da esquerda política e a ascensão da extrema direita.
Mujica raramente criticava seus colegas de esquerda em público, mas criticava em particular aqueles que se tornaram cada vez mais ditatoriais nos últimos anos, como Daniel Ortega e Nicolás Maduro, e expressou preocupação com políticas autocráticas e abusos de direitos humanos em Cuba e outros países. "Muitas vezes, aqueles que lideram governos se apaixonam pelo poder", disse ele. “Eles não querem deixá-lo e não se preparam para uma sucessão. Transformam o amor ao poder em razão de Estado, o que é uma loucura.”
Ele ressaltou que tinha quase noventa anos e não estava longe da morte. “Biologia não é algo que se possa apelar. Não se pode ir contra a natureza”, disse-me. “Tenho plena consciência de que uma sucessão política deve ser criada e cultivada intelectualmente, e não deixada como um trauma para as gerações futuras.” Ele havia se preocupado em cultivar líderes mais jovens em seu próprio partido no Uruguai e estava feliz por este ter encontrado um lugar duradouro em uma coalizão politicamente diversa. “Agora, o que acontecerá depois que eu partir, quem sabe?”, disse ele. “Mas pelo menos eles estão preparados para continuar.” Uma das últimas aparições públicas de Mujica foi em 1º de março, na posse do novo presidente do país, Yamandú Orsi, cuja candidatura ele havia apoiado.
Líderes latino-americanos com quem conversei me disseram que Mujica deixou um legado duradouro. “Sua vida continuará pairando no ar”, disse Lula. “E espero que muitos jovens encontrem em Pepe Mujica a inspiração para fazer política.” Um de seus protegidos mais bem-sucedidos é Boric, o jovem presidente do Chile. “Pepe foi uma luz que me guiou”, escreveu-me ele, voltando de uma visita de Estado ao Japão. “Com seu próprio exemplo, ele mostrou que não se conquista nada com voluntarismo superficial, arrogância vazia e ódio por aqueles que pensam diferente. Ele demonstrou que caminhos futuros podem ser encontrados forjando a unidade entre as forças progressistas e que mudanças permanentes na sociedade também podem ser alcançadas com medidas moderadas. Eu o senti como um irmão e um camarada. Ele também me repetiu que a felicidade só é real quando compartilhada. Isso não é algo que se esquece.”
É uma filosofia que sustentou Mujica até o fim. Na minha última visita, ele me disse: “Como humanos, nos amamos demais, e às vezes isso nos domina. Acredito que precisamos analisar com atenção tudo o que fizemos e onde estamos hoje, e precisamos ter a coragem intelectual de reconhecer as contradições impostas pelo mundo ao nosso redor. Mas não podemos desistir e decidir que o que um dia buscamos não é mais possível. Não! Acredito que a humanidade pode construir um mundo melhor do que o que já construiu e fazê-lo deliberadamente, mesmo que alcançar o impossível sempre exija um pouco mais de esforço. Porque, se perdermos a capacidade de ter fé, qual o sentido da vida?” ♦
Jon Lee Anderson, redator da equipe, começou a colaborar com a The New Yorker em 1998. Seus livros incluem “Che Guevara: Uma Vida Revolucionária”.
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