14 de maio de 2025

Herói do nosso povo

Macunaíma virou um mito. Diz algo complexo sobre o Brasil, mas também sobre o que o modernismo significou. E, por fim, me fez admirar a decisão de Mário de Andrade de olhar para trás, para sua juventude modernista, com distanciamento. Não seria hora, cem anos depois, de ver o modernismo como algo ultrapassado?

Adam Thirlwell


Vol. 47 No. 9 · 22 May 2025

por Mário de Andrade, traduzido por Katrina Dodson.
Fitzcarraldo, 318 pp., £12.99, maio 2023, 978 1 80427 026 4

Mário de Andrade disse que escreveu o primeiro rascunho de Macunaíma em seis dias. Era dezembro de 1926 e ele estava hospedado na casa de seu tio, nos arredores de São Paulo, deitado em uma rede, fumando cigarros e ouvindo as cigarras. O romance conta a história do trapaceiro pemon Macunaíma, sobre quem Andrade lera no estudo antropológico de cinco volumes de Theodor Koch-Grünberg, Vom Roraima zum Orinoco, apesar de seu alemão limitado. Ainda mais limitado era o contato de Andrade com os próprios povos indígenas. Mas Andrade estava ficando desconfortável com isso. Ele era elegante, culto; morava em São Paulo, onde escrevia ensaios sobre música e arte brasileiras. Em 1922, ele participou da Semana de Arte Moderna, que oferecia poesia e arte extravagantes à burguesia paulistana reunida em um teatro luxuoso. Naquele mesmo ano, formou o Grupo dos Cinco com as pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral e os escritores Oswald de Andrade (sem parentesco) e Paulo Menotti del Picchia, e adquiriu a agradável notoriedade da vanguarda. Mas a ideia de Mário sobre a escrita tornava-se cada vez mais incerta. Como seu grande predecessor Machado de Assis, era delicadamente mestiço, mas também burguês como seus amigos – os herdeiros da riqueza das plantações. Sentia que faltava algo. Era o seu país. O Brasil era vasto, e ele conhecia apenas uma minúscula parte dele.

Se você fosse escritor ou artista em São Paulo há um século, poderia parecer que estava na periferia, em um país que estava apenas se tornando um país. Por um tempo, a estratégia da vanguarda era copiar o que a vanguarda fazia na Europa. Tarsila estudou pintura em Paris e voltou com telas cubistas rigorosamente precisas. Andrade experimentou a poesia surrealista e escreveu um romance irônico com o título dolorosamente abstrato Amar, Verbo Intransitivo. Rapidamente ficou claro que esses métodos não funcionariam ou não eram apropriados – pareciam limitados e insinceros. Em vez disso, a vanguarda não olhava para fora do país, mas para dentro dele – não para o oceano, mas para a floresta. Para modernizar a arte, a lógica era que precisavam incluir as comunidades indígenas e negras do Brasil.

Foi Tarsila quem se moveu mais rápido. Em 1923, de volta a Paris, pintou A Negra, seu primeiro quadro com um novo método que utilizava cores chapadas e longas linhas biomórficas. Uma maneira de encarar a pintura é vê-la como um momento emocionante, quando um novo tema para representação sobrepuja uma técnica de vanguarda europeia. Outra maneira de encarar sua ênfase caricatural nos lábios, no seio único e nos membros gigantes da mulher é vê-la como racista. Para Andrade, era apenas um retrato primitivista de uma urucaca, uma mulher feia. Ele tinha outras ideias: "Abandone Paris!", escreveu a Tarsila. "Venha para a mata virgem, onde não há art nègre, onde também não há riachos mansos. Há mata virgem. Eu criei o virgin-florestismo. Eu sou um virgin-florestador. É disso que o mundo, a arte, o Brasil e minha querida Tarsila precisam."

É claro que não existia mata virgem. A Amazônia havia sido cultivada e habitada por comunidades indígenas durante séculos. A ideia era tão artificial quanto a art nègre. No entanto, Andrade e seus amigos desejavam um confronto com a alteridade, e esse desejo de dispersão identitária continua sedutor. Em abril de 1924, Andrade, Tarsila, Oswald de Andrade, o historiador Paulo Prado e o poeta francês Blaise Cendrars – acompanhados e financiados por sua mecenas Olívia Guedes Penteado – realizaram uma viagem de três semanas pelas cidades e paisagens coloniais de Minas Gerais, o grande estado do interior ao norte de São Paulo.

Quando retornaram, as pinturas de Tarsila começaram a apresentar criaturas do folclore indígena, como o saci, uma figura negra com uma fileira de dentes e braços com dois dedos, que se apoia em uma única perna afilada com três dedos. E Andrade, em 1926, escreveu a primeira frase de Macunaíma: "Nas profundezas da mata virgem nasceu Macunaíma, herói do nosso povo". Em um prefácio que Andrade escreveu logo após concluir o primeiro rascunho, ele explicou que "o que me interessou por Macunaíma foi, sem dúvida, minha constante preocupação em me aprofundar e aprender o máximo possível sobre a entidade nacional do povo brasileiro. Bem, depois de uma árdua luta, confirmei uma coisa que parece certa: o brasileiro não tem caráter". O romance era sobre o Brasil, era uma alegoria, e seus métodos eram uma dupla contaminação: uma linguagem plural mestiça e uma indefinição mestiça de lugar. "Um dos meus objetivos era desrespeitar a geografia e a flora e fauna geográficas à maneira das lendas. Dessa forma, desregionalizei a criação o máximo possível, ao mesmo tempo em que alcancei o mérito de conceber literariamente o Brasil como uma entidade homogênea – uma concepção étnica, nacional e geográfica".

Isso era em parte verdade e em parte uma maneira de definir seu projeto estranhamente artificial, já que Andrade nunca havia estado na Amazônia. Poucos meses depois, em maio de 1927, ele teve sua oportunidade, quando se juntou a Penteado em um cruzeiro de três meses em um barco a vapor. Ele imaginou que seria uma repetição da viagem de 1924 a Minas Gerais, uma festa modernista barulhenta. Em vez disso, eram apenas ele, Penteado, sua sobrinha e uma das amigas dela. Decepção e ironia tornaram-se os motivos da viagem. Ele escreveu um diário da viagem, que retomou em 1943 (ele planejava revisá-lo e publicá-lo, mas morreu de ataque cardíaco em 1945, aos 51 anos). "A coisa toda exala modernismo e envelheceu bastante", escreveu com pesar. Àquela altura, Andrade já havia se tornado etnólogo profissional. De 1935 a 1938, foi diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore, que financiou grande parte das primeiras pesquisas de Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. O eu que ele habitava em 1927 o envergonhava, mas o diário é ao mesmo tempo encantador e exigente precisamente por ser um registro de suas inibições e reticências, de sua falta da capacidade multitudinária que almejava:

Partida de São Paulo. Comprei uma enorme cana de bambu para a viagem, que bobagem! Deve ter sido algum vago medo de índios... Sei muito bem que não há nada de aventureiro ou perigoso na viagem que estamos prestes a fazer, mas, além de nossas faculdades lógicas, cada um de nós também possui uma mente poética. Leituras meio esquecidas me instigaram mais do que a verdade – tribos selvagens, jacarés, formigas-bala.

As tribos selvagens, os jacarés e as formigas-bala não são apenas leituras meio esquecidas: elas também aparecem em Macunaíma, que ele estava revisando durante a viagem. Ele deu aos diários o título de O Turista Aprendiz, mas era um turista muito nato. O que ele estava realmente tentando aprender era como ser um habitante. Em 23 de maio: "Comprei uma rede, um Braque em sua combinação de cores." Mais tarde, esta frase o perturbou: ""Um Braque!", exclamei, e comprei a rede. Na verdade, tenho viajado principalmente em torno de mim mesmo, aplicando egoisticamente minhas experiências em vez de me enriquecer com novas." Ele gostava da maneira como a paisagem "destrói o europeu cinzento e elegante que ainda tenho em mim", mas mesmo na Amazônia sentia que o Brasil, como ele, ainda era muito europeu, "sem uma cultura e uma civilização próprias". (Sua própria aparência parece ter sido uma fonte de confusão: "Em Tefé, o português da loja jurou que eu era português de nascimento e criação, em Tonantins passei por italiano, e agora, aqui em São Paulo de Olivença, o Irmão Fidélis me pergunta hesitantemente se sou inglês ou alemão!") A única antropologia que Andrade se sentiu capaz de produzir foi a cômica: "Acredito que, com base nos índios que conheci, cuja moralidade é diferente da nossa, eu poderia escrever uma monografia humorística, uma sátira de expedições e etnografias científicas e sociais. Seria a tribo dos índios Do-Mi-So."

Então, ele retornou a São Paulo, terminou seu romance e o publicou em 1928 — para a habitual mistura modernista de perplexidade, indiferença, descrença e glória.


Um efeito do modernismo foi tornar a descrição do enredo apenas intermitentemente útil, uma vez que um resumo dos eventos é irrelevante para a experiência de leitura, que reside na textura das frases. Isso é parcialmente verdade em Macunaíma, mas grande parte da energia de Andrade foi destinada ao enredo fantástico e acelerado. O livro começa com o nascimento, na floresta amazônica, de Macunaíma, um membro da tribo fictícia Tapanhumas. Ele tem dois irmãos mais velhos, Maanape e Jiguê. Ele dorme com a esposa de seu irmão Jiguê e continuará a dormir com o máximo de mulheres possível. A fome atinge a aldeia, então os campos são inundados porque "o sapo cunauaru chamado Maraguigana, Pai do Golfinho, ficou furioso" depois que Maanape, em desespero, mata um boto para comer. Macunaíma acidentalmente mata sua mãe, a quem um espírito Anhanga havia disfarçado de corça, e então, em luto, os três irmãos partem para a floresta. Lá eles encontram Ci, a mãe da floresta. Ela e Macunaíma se apaixonam e ele se torna imperador da floresta. Eles têm um filho, mas ele logo morre; em sua tristeza, Ci ascende ao céu e se torna Beta Centauri. A única lembrança que Macunaíma tem dela é um muiraquitã, um amuleto protetor indígena. Mas ele o perde em uma batalha com uma cobra d'água e pensa que ele se foi para sempre, até que um pássaro lhe conta que ele foi parar nas mãos de um comerciante chamado Venceslau Pietro Pietra, que na verdade é um demônio gigante, "Piaimã, o Gigante, Devorador de Homens", e mora em São Paulo.

Os irmãos saem da floresta e seguem para São Paulo. Há cenas de trapaça e violência, sexo pastelão, dois momentos em que Macunaíma é declarado morto, longas histórias sinuosas e perseguições em alta velocidade, até que finalmente Piaimã é morto:

O gigante caiu no macarrão fervente e um cheiro tão forte de couro cozido pairou no ar que todos os pardais da cidade caíram mortos e o herói tombou. Piaimã lutou bravamente e agora estava por um fio. Com um esforço gigantesco, levantou-se do fundo do tanque. Espanou o macarrão que escorria pelo rosto, revirou os olhos e lambeu o bigode eriçado:

"PRECISA DE QUEIJO!", gritou...

E deu seu último suspiro.

Macunaíma retorna à floresta em triunfo para reivindicar seu império. Lá, sua libido continua a dominá-lo e várias coisas tentam comê-lo. Em certo momento, parece que ele morrerá ao ser enganado e comer a sombra leprosa de seu irmão, mas ele sobrevive. A essa altura, todos ao seu redor estão mortos. Até os papagaios desapareceram, exceto um ‘aruaí tagarela’. Macunaíma ‘passava os dias chafurdando no tédio e se divertia fazendo o pássaro repetir na língua de sua tribo todas as aventuras do herói, desde a infância’. (Este detalhe parece fantástico, mas vem de "Visões da Natureza", de Alexander von Humboldt, em que ele descreve o encontro com um papagaio que falava a língua extinta do povo Atures.) Uma luta final com Vei, o sol, deixa Macunaíma desmembrado, "sem os dedões dos pés e os cocos-baianos, sem as orelhas, o nariz e todos os seus tesouros". Ele tenta se recompor:

Macunaíma foi procurar, procurar. Encontrou seus dois brincos, encontrou os dedos dos pés, encontrou as orelhas, os nuqiiris, o nariz, todos aqueles tesouros, e os colocou de volta em seus lugares com sapé e cola de peixe. Mas nem a perna nem o muiraquitã apareceram, nossir. Eles haviam sido engolidos pelo Monstro Jacaré Ururau, que não pode ser morto por nenhuma clava ou timbó.

É demais para ele. E assim, como muitos dos personagens deste romance, ele se torna uma constelação. Com sua única perna, ele sobe ao céu e se transforma na Ursa Maior.

Em um epílogo, aprendemos que a tribo Tapanhumas foi extinta: "Nunca mais alguém saberia todas aquelas histórias maravilhosas ou a língua da tribo há muito desaparecida. Um imenso silêncio pairava ao longo das margens do Uraricoera." Mas então, um dia, "um homem foi até lá" e foi abordado pelo papagaio a quem Macunaíma havia ensinado o dialeto de sua tribo. "Foi aquele papagaio solitário que preservou no silêncio todos os ditos e feitos do herói":

Ele contou tudo ao homem e então alçou voo para Lisboa. E esse homem sou eu, pessoal, e fiquei para trás para contar esta história. Foi por isso que vim aqui. Agachei-me sobre estas folhas, peguei meus carrapatos, comecei a dedilhar meu violão e, nesta melodia rouca e fala impura, cantei estas preocupações para o mundo, contando todos os ditos e feitos de Macunaíma, herói do nosso povo.

E isso é tudo.

Em 1928, ano da publicação de Macunaíma, Oswald de Andrade publicou seu Manifesto Antropófago e fundou a Revista de Antropófagia. A revista promovia sua nova teoria da antropofagia, inspirada por um incidente ocorrido no século XVI, quando o povo Caeté devorou ​​Pero Fernandes Sardinha, o primeiro bispo enviado ao Brasil. Em vez de se deixar influenciar pela Europa, Oswald de Andrade acreditava que a arte brasileira deveria ser igual à sua múltipla identidade e absorver formas europeias, afro-brasileiras e indígenas: "A única coisa que me interessa é o que não é meu. Lei da humanidade." A lei da antropofagia. A "absorção do inimigo sagrado" estendeu-se a uma piada notória no manifesto, que mastigava a frase mais famosa da literatura europeia: "Tupi ou não tupi, eis a questão". (Os tupis eram um povo indígena, com uma população estimada em cerca de um milhão de habitantes quando os portugueses chegaram.) O principal problema com esse ideal de violência primitiva, no entanto, não era sua condescendência, mas sim o fato de ter sido ele próprio emprestado de Paris. Em 1920, Francis Picabia criou uma revista dadaísta chamada Cannibale, com seus próprios aforismos de pluralidade: "Je suis de plusieurs nationalités et Dada est comme moi".

Para Andrade e seu romance, é como se o indígena fosse o lugar do autenticamente surreal: ele possui o que a Europa deseja. Em outras palavras: ele queria que duas coisas se sobrepusessem em uma forma de pura resistência – seu próprio ressentimento burguês diante do esnobismo percebido dos europeus em relação à sua obra e uma recusa indígena à colonização.

Macunaíma pode ser facilmente lido como um texto canibal. Todos querem comer Macunaíma, e quase conseguem:

O herói, que havia sido cortado em vinte por trinta pedaços de torresmo, borbulhava na polenta fervente. Maanape separou os pedaços e ossos e os colocou no concreto para arejar. Depois que esfriaram, Cambgique, a formiga sarará, despejou o sangue que havia sorvido sobre eles. Então Maanape embrulhou todos os pedaços ensanguentados em folhas de bananeira, jogou o embrulho em um alforje e voltou correndo para a pensão.

Dentro das próprias frases, a estratégia de Andrade é absorver uma enorme variedade de línguas e registros. A flora e a fauna recebem seus nomes indígenas: "Nos galhos dos ingás, as aningas, as mamoranas, as embaúbas, os catauaris que crescem à beira do rio, o macaco-prego, o macaco-de-cheiro, o bugio-guariba, o bugio-de-bugio, o macaco-aranha, o macaco-barrigudo, o cuxiú-barbudo, o cairara-de-topete, todos os quarenta macacos do Brasil, todos eles, babavam de inveja."

Andrade descreveu seu romance como uma "rapsódia". Era uma espécie de improvisação, ele queria que os leitores pensassem, como se tivesse sido criada por um dos cantores viajantes no extremo nordeste do país, num tom de "amenidade despreocupada". Nesse estilo, emprestado da narrativa indígena, tudo pode acontecer, inclusive a ressurreição: "Maanape era um feiticeiro". Imediatamente, pediu emprestados dois cocos-baianos à dona da casa, amarrou-os com um nó duplo no lugar onde antes estavam os toaliquiçus amassados ​​e soprou a fumaça de um cachimbo sobre o herói falecido. Macunaíma começou a se sentar, o mais fraco possível.

Ele canibaliza a linguagem, canibaliza as histórias indígenas e, acima de tudo, este romance devora lembranças de uma história nacional. Em suas jornadas errantes pelo Brasil, Macunaíma encontra pequenas lembranças de invasão e resistência. Ele "deixa sua consciência na Ilha de Marapatá", assim como se dizia que os caçadores de borracha na Amazônia faziam. Em outro momento, "ele saltou da jangada num piscar de olhos, foi saudar a estátua de Santo Antônio, que era capitão do regimento, e começou a dar em cima das moças por toda a cidade". (A estátua de Santo Antônio de Pádua, creditada por salvar o Rio de Janeiro da invasão francesa em 1710, recebeu um salário e foi nomeada capitã de infantaria.) Durante sua batalha com Piaimã, Macunaíma decide usar a macumba, a religião mágica africana que chegou ao Brasil com a população negra escravizada. Este episódio, escreveu Andrade em nota inédita, foi emblemático de seu método:

Basta ver como a cerimônia da macumba carioca foi deliberadamente desregionalizada, combinada com elementos do candomblé baiano e da pajelança paraense. Construí aquele capítulo com elementos de estudos publicados, elementos que coletei de um ogã carioca, "um fadista de profissão com marcas de varíola", e de um especialista em pajelança, aos quais adicionei elementos de pura fantasia.

Após terminar o romance, Andrade começou outro prefácio que jamais publicaria. Um ano antes, ele havia escrito que seu interesse por Macunaíma advinha do desejo de compreender "o brasileiro", mas agora voltava atrás: "Não quero que imaginem que me propus a transformar este livro em uma expressão da cultura nacional brasileira. Deus me livre. Só agora, depois de tê-lo feito, parece que encontro nele um sintoma da nossa cultura." Afinal, "nem se pode dizer [de Macunaíma] do Brasil", já que o território pemon abrange as fronteiras coloniais do Brasil, Venezuela e Guiana. No mito pemon, Macunaíma é uma força cósmica que causou o Dilúvio. A versão de Andrade é muito menos grandiosa, mais cômica. Se Macunaíma personificava o caráter brasileiro, pensava Andrade, era porque ele não tinha nenhum caráter fixo, "no duplo sentido de um indivíduo sem caráter moral e sem características definidas". Assim como Andrade, ele rejeita veementemente a ideia de Europa: "Sou americano e a América é onde eu pertenço. A civilização europeia, sem dúvida, macula a integridade do nosso caráter." Mas o único texto que Macunaíma produz é escrito em uma forma irremediavelmente datada de português literário.

Não é de se admirar que Macunaíma não tenha sido totalmente bem recebido pelo círculo de Andrade. Um ataque sob o título "Senhorita Macunaíma" apareceu na Revista de Antropófagia em 1929, como se a inconstância do romance, não apenas com a linguagem ou a cultura, mas também com o gênero, fosse perturbadora demais. Em um episódio, Macunaíma se veste de "dama francesa":

Então, Macunaíma pegou emprestado da dona da pensão alguns pares de froufrou, uma máquina de rouge, uma máquina de meias de seda, uma máquina de combinações perfumadas com casca de sacaca, uma máquina de cintas perfumadas com capim-limão, uma máquina de decotes borrifada com patchuli, máquinas de luvas rendadas sem dedos, todas essas coisas froufrou, então ele balançou duas flores de bananeira pontudas no peito e se vestiu assim.

O próprio Mário operava fora das convenções do machismo. Sua identidade sexual, assim como sua identidade racial, era complicada. Ele queria saber onde estava situado e não conseguia encontrar uma maneira de descrevê-la. Os primeiros leitores também tiveram dificuldade em situar o romance, alguns deles acusando-o simplesmente de plagiar Koch-Grünberg.

O romance muitas vezes parece alegre, mas termina em vazio e fracasso – e talvez tenha sido o caso de Mário também. Sua ambição utópica era um encontro com o outro que também o situasse em um lugar e uma cultura, mas parece que ele concluiu que um romance não poderia fazer isso. Ser verdadeiramente moderno significaria deixar de ser modernista. Macunaíma foi sua última obra literária publicada. Em vez disso, dedicou-se à etnologia: a verdadeira forma, pensava ele, de figurar a multiplicidade.


A teoria da tradução teve seus próprios ciclos de vanguarda. Um ideal de naturalização plena, em que o hóspede se converte em anfitrião, foi substituído por um ideal do estrangeiro, em que o anfitrião se deixa alterar pelo hóspede. Macunaíma foi traduzido pela primeira vez na década de 1980 por E.A. Goodland, um engenheiro britânico aposentado que vivia no nordeste do Brasil. Sua versão seguiu a lógica antiquada da naturalização plena. Quase todo o vocabulário deliberadamente indígena de Andrade, aqueles pequenos pontos de obscuridade ou mesmo incompreensibilidade para os leitores de São Paulo, foi simplificado em frases comuns, enquanto a sintaxe nunca se desviou do convencional. A tradução de Goodland dedicou-se mais a alguma noção do legível do que a qualquer recriação dos efeitos de Andrade. A nova tradução de Katrina Dodson, em vez disso, tenta ser tão tensa e versátil quanto o original. Ela tomou duas decisões estilísticas importantes: reproduzir os distanciamentos de Andrade no vocabulário e narrar o romance em uma versão da fala americana tradicional, como forma de sinalizar sua ruptura com o português literário. Ela também adiciona cerca de cinquenta páginas de notas de rodapé, desembaraçando muitas das alusões culturais e históricas, e um glossário seletivo.

Ler esta tradução de um romance que foi, em si, um grande esforço de tradução torna-se uma forma de pensar sobre o estrangeiro. É um romance que questiona como seria possível falar sobre um povo e se um povo poderia deixar de se reconhecer, precisamente porque muitos de seus membros não conseguem se ver como pessoas. A exibição linguística excêntrica de Macunaíma pode não ser considerada uma forma verdadeira de representação racial. Há momentos racistas descartáveis, como o do guajiru "que tem cheiro de axila de mulher negra". Mais centralmente, há um episódio em que Macunaíma e seus irmãos se lavam em uma piscina formada por uma "pegada gigantesca de Sumé [São Tomé], de muito tempo atrás, quando ele andava por aí pregando o evangelho de Jesus aos índios brasileiros". Macunaíma sai "branco, loiro, com os olhos mais azuis, a água lavou toda a sua negritude". Jiguê percebe isso e se joga também, mas a água está tão suja devido à "escuridão" de Macunaíma que ele só adquire "a cor de bronze novo". Quando Maanape entra, resta tão pouca água que ele só consegue "molhar as solas dos pés e as palmas das mãos. É por isso que ele permaneceu um filho negro da tribo Tapanhumas de corpo e alma". A história é uma releitura, observa Dodson, de "um conto popular afro-brasileiro... sobre a transformação divina de três irmãos negros nas 'três raças do Brasil'". Mas, ao branquear Macunaíma e afirmar um mito de fraternidade sobre os fatos históricos reais da invasão e da escravidão, o romance começa a se alinhar ao ideal nacionalista brasileiro de "democracia racial".

Quanto às frases de Andrade, o perigo, tanto no original quanto na tradução, é que o estrangeiro se torna exótico. Este romance adora listas, e nelas a confusão da incompreensibilidade é contida pelo contexto. Então, Macunaíma, pescando:

No entanto, ele não conseguiu pegar nada, nem com flechas nem com plantas venenosas, nem com timbó, nem com jotica, nem com cunambi, nem com tingui, nem com armadilhas de macerá ou pari, nem com linha, nem com arpão, nem com juquiaí, nem com sararaca, nem com bóia, nem com chumbada, nem com cacuá, nem com itapuá, nem com jiqui, nem com trote, nem com jererê, guê, nem com arrasto, nem com isca de arrasto, nem com snagger, nem com rede de emalhar, nem com rede de contenção, nem com anzol, nem com vara de pescar, nem com todos esses implementos, armadilhas e venenos, visto que ele não tinha nenhum.

Isso é delicioso por se estender além dos limites habituais. Mas quando o Currupira, uma figura da mitologia tupi-guarani, diz ao jovem Macunaíma "vá por aqui, homem-criança, vá por ali, corte em frente àquela árvore, vire à esquerda, vire e volte direto para debaixo dos meus uaiariquinizês", por que ele diz uaiariquinizês e não testículos? Segundo Dodson, a palavra vem da "língua do povo Nambiquara da Amazônia e do centro-oeste do Brasil". O uso que Andrade faz dela parece menos uma afirmação de multiplicidade do que um prazer fonêmico pessoal.

Andrade queria um espaço para o que quer que fosse o verdadeiro Brasil, e o imaginou como um estilo. Esse estilo seria capaz de transitar entre línguas e registros, frase por frase, como nesta sequência: "Ele gesticulou ferozmente para o Sol, gritando: 'Eropita boiamorebo!' De repente, o céu escureceu e uma nuvem avermelhada surgiu no horizonte, escurecendo a calma do dia." O avermelhamento se aproximava e era aquele bando de araras vermelhas e periquitos jandaya, todos eles tagarelas.

"Quando comecei a escrever um português errado", escreveu Andrade, "não anunciei imediatamente que estava fazendo uma gramática brasileira, com o que pretendia simplesmente mostrar que não estava improvisando, mas fazendo algo pensado e sistemático?" Criar um estilo a partir de um erro sistemático é o projeto modernista puro, e a tradução de Dodson é admiravelmente modernista em seu esforço para alcançar isso, mas comecei a vivenciar suas anotações, tão ricas e absorventes, como um sinal de ansiedade. Em parte, era uma ansiedade quanto ao tipo de conhecimento que Andrade poderia esperar que o público original do romance possuísse, mas, na verdade, era uma ansiedade quanto ao estilo. Macunaíma não é escrito a partir de um lugar de fluência, mas com muitos dicionários e obras de antropologia. E, portanto, seu estilo está sempre em perigo de ser revelado como pastiche.

Macunaíma se tornou um mito. Diz algo complexo sobre o Brasil, mas também sobre o que o modernismo significou. E, por fim, me fez admirar a decisão de Andrade de olhar para trás, para sua juventude modernista, com distanciamento. Não é hora, cem anos depois, de ver o modernismo como algo ultrapassado? Mesmo que seja difícil abandonar seu campo de força – a ideia de que o estilo fará mágica, que a manipulação de frases salvará você. Parece tão grandioso! Mas pode ser que fundar um estilo não seja uma maneira útil de resolver o problema da identidade. Fundar um povo também pode não ser a solução.

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