Anna Virginia Balloussier
Folha de S.Paulo
Lula e Bolsonaro - Antonio Molina e Pedro Ladeira/Folhapress |
Aconteceu de novo: a nova pesquisa Datafolha mostra um velho quadro, o do eleitor evangélico dividido entre reeleger Jair Bolsonaro (PL) ou chancelar a volta do ex-presidente Lula (PT) ao Palácio do Planalto.
Para o primeiro turno, 39% desse quinhão religioso dizem que pretendem votar no presidente, e 36%, no rival petista. Se excluirmos indecisos ou quem vai de nulo/branco, são 44% de evangélicos com Bolsonaro, e 40% com Lula.
Vamos agora ao segundo turno: numa disputa entre os dois, o atual mandatário teria 47% da predileção evangélica (contra 33% da média nacional), enquanto o ex contaria com 45% (versus 58% do quadro geral).
A rejeição da dupla é alta: 40% dos fiéis dizem que não votariam de jeito nenhum, no primeiro turno, no presidente. Lula é descartado por 46%.
Os números não revelam movimentos tectônicos em relação a sondagens anteriores. Elas já apontavam o empate técnico entre os grandes antagonistas de 2022.
O último ciclo de entrevistas foi feito com 2.556 pessoas em 181 cidades, quarta (25) e quinta-feira (26). A margem de erro é de quatro pontos percentuais, para mais ou menos, se levado em conta apenas o recorte evangélico.
Pelo mesmo levantamento, esse contingente cristão compõe hoje 27% do eleitorado brasileiro, enquanto o maior bloco continua sendo o católico, metade dos adultos do país.
Talvez o leitor se pergunte por que a Folha, então, propõe uma análise sobre o comportamento eleitoral de um grupo que nem sequer é maioria populacional.
Vamos lá: evangélicos são vistos como mais ativos em sua comunidade religiosa, ao contrário de católicos, que muitas vezes declaram essa fé sem nem praticá-la no dia a dia. Logo, o poder de mobilização é maior.
Revelaram-se também mais engajados politicamente, sobretudo nas últimas duas décadas. O Congresso tem bancadas católica e evangélica. De qual delas você ouve falar com mais frequência?
Estrategistas políticos, portanto, veem um conjunto de eleitores do qual vale a pena correr atrás. Daí dar atenção maior a ele, evocar temas de seu interesse e medir palavras que possam feri-lo.
A pesquisa dá aos dois lados motivos para olhar o copo meio cheio ou meio vazio. Claro que as campanhas dão preferência à primeira alternativa. Comecemos pela taça do presidente.
Evangélicos ainda são um dique para a impopularidade de Bolsonaro. Ok que 34% ainda acham que seu governo é ruim ou péssimo, mas o estrago é bem maior no cômputo geral, com 48% dos brasileiros desgostosos com o presidente.
O PT, por sua vez, pode questionar: ué, mas se Bolsonaro é o maioral nas igrejas, como que parcela relevante desse eleitorado dá as costas justo para ele, que tanto estende a mão para pautas da Frente Parlamentar Evangélica?
Há muito de retórica e nada de ciência quando pastores da patota bolsonarista garantem que de 80% a 90% dos fiéis fecham com Bolsonaro.
Quando confrontados com pesquisas sérias, que têm mostrado um cenário de bola dividida, argumentam que, em todos os templos que visitam, o pessoal é Deus acima de tudo e Bolsonaro acima de todos os adversários, para parodiar o slogan do vencedor de 2018.
Apostam, portanto, na mesma esparrela do presidente: alegar que os levantamentos não são confiáveis, enquanto indigno de credibilidade estatística é tomar a própria experiência como régua para um segmento tão plural quanto o evangélico.
Não que dê para minimizar a torrente de propaganda antipetista que deságua em grandes denominações. Nesse sentido, líderes de projeção nacional são como que influenciadores para pastores menores.
Silas Malafaia, o aliado mais vocal de Bolsonaro nesse meio, pode não ter uma igreja superlativa em números de fiéis e templos —sua Assembleia de Deus Vitória em Cristo tem porte médio.
Mas, em três décadas de televangelismo, e mais recentemente propulsionado pelas redes sociais, é um farol para muitos chefes de igrejas pequenas. São elas que compõem o tecido evangélico do Brasil, muito mais do que as grandalhonas.
Não há, contudo, uma voz de comando inconteste, algo próximo do Vaticano dando as cartas para o clero católico. Não dá para esperar essa quase unanimidade alardeada por pastores da órbita bolsonarista.
Mesmo se houvesse homogeneidade eleitoral no campo, um eleitor crente não necessariamente prioriza sua identidade religiosa na hora de decidir em quem vai votar. Economia, escolaridade, classe social. Tudo isso pesa.
Imagine uma eleitora mulher, negra, pobre e evangélica. Os três primeiros quartos desse caleidoscópio identitário tendem a escolher Lula nas urnas. Ter um pastor que esperneia contra a esquerda vai se sobrepor ao aborrecimento de trocar carne por ovo porque o poder de compra foi para o beleléu neste 2022 inflacionário?
Por outro lado, progressistas estão perdidos. O PT já contou, em eleições passadas, com a simpatia da base evangélica. Lula teve 6 de cada 10 desses votos no segundo turno contra Geraldo Alckmin, hoje seu vice, mas naquele 2006 um rival à direita na raia democrática.
De dois ciclos eleitorais para cá, a polarização foi depauperando esse apoio. Estima-se que, quatro anos atrás, 7 em cada 10 fiéis preferiram Bolsonaro ao petista Fernando Haddad. Ainda que não abrace o presidente em 2022, vale lembrar que o bloco evangélico ainda lhe dá mais moral do que a média nacional.
Candidato ao Governo do Rio e uma das vitrines desse polo, Marcelo Freixo, ex-PSOL e atual PSB, fez um mea culpa.
"A esquerda tem uma relação de origem muito próxima da Igreja Católica, e acho que não conseguiu acompanhar o significado do crescimento das igrejas evangélicas, que tem uma relação direta com o abandono do poder público e a desigualdade social", disse em sabatina do jornal O Globo. "Nós temos que buscar o que temos de comum e não o que temos de idêntico."
O problema é que boa parte do campo não sabe como iniciar essa conversa. As chamadas pautas identitárias, ligadas a causas como LGBTQIA+ e feminismo, ganharam musculatura na última década, justamente quando a relação entre PT e evangélicos definhou.
Uma estratégia possível é lembrar da bonança econômica dos tempos petistas e deixar em segundo plano, ao menos por ora, lutas que sejam espantalho para o eleitor conservador (e a maioria dos evangélicos o é).
Paulo Marcelo, pastor que aderiu à campanha lulista, sugere abordar assim os colegas de fé: "A pergunta é muito simples: o que na sua vida melhorou? Quanto na sua igreja tinha de receita, na época de Lula e Dilma, e quanto tem de receita hoje?".
Mas a pergunta nunca é simples. Lulistas têm repetido que o ex-presidente não vai mais tentar diálogo com pastores que estiveram ao seu lado no passado e que hoje defendem que um cristão de verdade jamais seria de esquerda, como o fazem Malafaia e Edir Macedo.
E que Lula vai optar por falar direto ao coração do crente médio, sem a intermediação dos grandes líderes. Talvez não tenha escolha, dado que até aqui esses pastores não deram sinais de querer muito papo com ele.
Se o petista vencer a eleição, aí sim talvez observemos movimentação de alguns desses chefes de igreja para fazer as pazes com o novo governo —algo especulado no próprio núcleo pastoral, que reconhece a vocação fisiológica de certos pares.
Lula, contudo, vai precisar de interlocutores nas igrejas, já que passará os próximos meses sendo saco de pancadas dessas bazucas midiáticas que são Malafaia e companhia, e também de uma bancada evangélica abertamente antipática a ele. É aí que a esquerda se estrepa.
É preciso achar essas figuras, alguém com representatividade real no pentecostalismo (a maior fatia do evangelismo nacional) que segure o rojão de vender o peixe progressista sem menosprezar o perfil conservador das igrejas.
Paulo Marcelo, amigo do bolsonarista Marcelo Feliciano (PL-SP), seria uma opção. Mas pastores vivem lembrando que ele seria um teto de vidro muito fácil de apedrejar —chegou a ser preso sob suspeita de posse de drogas e arma, em 2014, e já ziguezagueou ideologicamente, como ao ser candidato a vereador pelo direitista Podemos, e isso só tem dois anos.
Os poucos movimentos evangélicos visceralmente esquerdistas são uma ilha isolada e usam palavreado que cai bem na militância esquerdista, mas pouco conecta com as periferias evangélicas (falar em "necropolítica" de um "governo fascista" que "odeia minorias", por exemplo).
Não demonstraram, ainda, capacidade de criar pontes sólidas com as igrejas. Se têm uma função mais bem-sucedida, é a de quebrar preconceitos dentro de uma bolha intelectual de esquerda, que vê o crente como um atraso civilizacional que precisa ser combatido ou tratado com condescendência.
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