Diogo Schelp
Folha de S.Paulo
Os ex-presidentes de Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e Venezuela, Hugo Chávez, no Palácio Miraflores, em Caracas - Jorge Silva - 13.dez.07/Reuters |
"Uma aliança trabalhosa", "pedra no sapato", "diatribe" e "estridente" são algumas das expressões usadas para descrever a Venezuela de Hugo Chávez no recém-lançado livro de Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores de Lula e no início do governo de Dilma Rousseff. Amorim foi o artífice da política externa "ativa e altiva" que o PT pretende reeditar em uma eventual nova Presidência de Lula e que se caracterizou por extrapolar as reais capacidades do país de se projetar como liderança global.
A América do Sul era o espaço onde a ambição de liderança tinha alguma chance de progredir. Por isso, "Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul", composto por trechos dos diários escritos por Amorim à época, entremeados por comentários atuais, revela-se um interessante testemunho dos bastidores da política externa no período que coincidiu com a primeira onda de governos de esquerda na região.
A leitura dos relatos permite relembrar quão conturbado foi aquele período das relações regionais. O Brasil investiu na formação de uma aliança preferencial com os governos de esquerda da região, apesar de muitos deles serem classificados pelo chanceler, em suas anotações, como "países-problema".
Amorim descreve Lula e a si próprio como bombeiros, apagando incêndios causados por figuras como Rafael Correa, do Equador, Evo Morales, da Bolívia, e Hugo Chávez —onipresente nos momentos de crise. O argentino Néstor Kirchner é retratado como facilmente influenciável pelos rompantes do venezuelano.
Em relação a países menores, a atitude era de condescendência, mesmo quando algo feria os interesses brasileiros. Depois de Evo nacionalizar a exploração de petróleo e gás e colocar tropas para ocupar instalações da Petrobras no país, em 2006, Amorim registrou a seguinte frase de Lula: "Celso, é melhor você tomar conta da Bolívia. Eu não posso. Fico com muita pena quando vejo aqueles indiozinhos pobres."
Apesar de incômodas, eram toleradas intromissões de Chávez em temas que seriam mais bem resolvidos em âmbito bilateral, como na ameaça do Equador de não pagar uma dívida com o BNDES, em 2008.
O líder venezuelano também se mostrava um candidato tecnicamente despreparado e sem as credenciais democráticas necessárias para aderir ao Mercosul, e ainda assim Amorim julgava estratégico acelerar o processo ("É preciso confiar que o convívio no Mercosul e o melhor relacionamento com outros países sirvam para inibir impulsos autoritários do presidente venezuelano"). Isso sem falar nos episódios, descritos no livro, em que a Venezuela tentou minar consensos de interesse do Brasil obtidos a duras penas em negociações na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Ao justificar a tolerância com Chávez, Amorim argumenta que "o engajamento é melhor que o isolamento". O fator ideológico aparece, mas apenas tangencialmente, quando o ex-chanceler coloca a Venezuela, de maneira elogiosa, na categoria de países "reformistas". Outra explicação que emerge da obra é o fato de Lula e Amorim se apresentarem para o mundo como os únicos capazes de conter o radicalismo de Chávez —e de usarem isso como um trunfo diplomático, principalmente nas relações com os Estados Unidos.
Ainda mais revelador a respeito dos motivos para o engajamento com o parceiro incômodo é a ausência de referências diretas, em "Laços de Confiança", à relação preferencial que empresas brasileiras, especialmente empreiteiras, construíram com Chávez ao longo dos anos, algumas vezes em contratos com vultosos financiamentos do BNDES. O papel dessas empresas na estratégia de integração regional promovida pelo governo Lula é minimizado, e o posterior surgimento de denúncias de corrupção nos países em que elas atuavam não merece mais do que uma nota de rodapé no livro.
"Mas que pé frio, hein?!", cochichou Lula a Amorim, em abril de 2003, no Recife, enquanto escutava um discurso em que Chávez relatava as desventuras vividas pelo libertador Simon Bolívar ao lado do general brasileiro Abreu e Lima —cujo nome batizou a superfaturada refinaria que anos depois se tornou um dos casos emblemáticos da Operação Lava Jato. Lula, em sua frase espirituosa, referia-se ao revolucionário pernambucano, claro. Mas, se soubesse o que viria depois, bem que poderia estar falando de Chávez.
LAÇOS DE CONFIANÇA - O BRASIL NA AMÉRICA DO SUL
Preço R$ 79,90
Autor Celso Amorim
Editora Benvirá
Págs. 592
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