9 de maio de 2025

Leviatãs aflitos

Violência das drogas e o Estado mexicano.

Tony Wood

Sidecar


Em 5 de março, famílias mexicanas em busca de parentes desaparecidos fizeram uma descoberta sombria em um rancho em Teuchitlán, Jalisco: duzentos pares de sapatos, montes de roupas e fragmentos de ossos. O local havia sido alvo de uma operação da Guarda Nacional em setembro passado, com algumas prisões, mas na ocasião as autoridades aparentemente não perceberam os horrores enterrados sob o solo — rapidamente evidências de que o rancho servira como local de um assassinato em massa sistemático.

O caso de Teuchitlán suscitou nova onda de indignação no México, tanto pela condução do inquérito pelo governo quanto pela incapacidade de conter o número crescente de mortes e desaparecimentos que marcaram o país desde que o presidente Felipe Calderón lançou sua “guerra às drogas” em 2006. As estatísticas transmitem apenas uma fração do que esse cataclismo provocou, mas já são impressionantes: mais de 400 mil homicídios desde 2006, a maioria vinculados à violência do narcotráfico, e mais de 127 mil pessoas ainda desaparecidas, além de muitas dezenas de milhares de deslocados internos por causa da violência. Duas décadas depois, não há perspectiva de fim, e, apesar das dramáticas mudanças políticas trazidas pelas vitórias de Andrés Manuel López Obrador em 2018 e de sua sucessora, Claudia Sheinbaum, em 2024, permanece aqui ao menos uma monstruosa continuidade.

As consequências dessa catástrofe atravessarão a sociedade mexicana por décadas. Talvez demore ainda mais para medir plenamente sua devastação. Para o antropólogo mexicano e destacado intelectual público Claudio Lomnitz, a perda, tão evidente, do monopólio da violência pelo Estado é apenas um indício de uma mudança mais profunda. “Mais do que uma guerra”, escreve ele em Sovereignty and Extortion (2024), “a violência atual do México é um modo de vida, e tem como contrapartida um novo Estado que ainda não sabe como se nomear nem como contar a história de sua própria origem.”

Lomnitz é há muito um dos analistas mais agudos da sociedade e da cultura mexicanas. Nascido no Chile em 1957, mudou-se com a família para o México em 1968, ano do movimento estudantil e do massacre de Tlatelolco. Formou-se em antropologia em Stanford nos anos 1980 e está vinculado à Universidade Columbia desde 2006. Por meio de colunas nos jornais mexicanos Excélsior e La Jornada, bem como na revista Nexos, tem contribuído de modo constante ao debate público e à vida intelectual do país. Em livros como Exits from the Labyrinth (1992) e Deep Mexico, Silent Mexico (2000), ele disseca brilhantemente o nacionalismo mexicano; em Death and the Idea of Mexico (2005), rastreia o significado totemico da morte na cultura do país ao longo de séculos — da violência fundadora da conquista espanhola até os cultos modernos de La Santa Muerte. Também produziu obras históricas de textura rica, como The Return of Comrade Ricardo Flores Magón (2014), que explora as ligações transnacionais entre anarquistas mexicanos e simpatizantes nos EUA às vésperas da Revolução Mexicana. Em tom mais pessoal, Nuestra América (2021) narra comoventemente os múltiplos exílios de sua família — da Alemanha e da Bessarábia ao Peru e ao Chile, e daí ao México.

Em Sovereignty and Extortion, Lomnitz volta seu olhar ao presente, argumentando que a violência da “guerra às drogas” se entrelaçou com o surgimento de um novo tipo de Estado. Baseado em série de palestras de 2021 que marcaram sua posse no Colegio Nacional do México, o livro busca oferecer explicações mais substantivas e estruturais para a crise narcocriminal em curso, rejeitando enquadramentos morais simplistas comuns no discurso público. Seu título original em espanhol, El tejido social rasgado — “o tecido social rasgado” — refere-se ao tropo recorrente que pressupõe uma coesão social perdida, suscetível de ser restaurada pela reimposição de normas morais antigas. Tais apelos, para ele, pouco dizem sobre as razões dessa perda de coesão ou sobre os mecanismos que a propiciaram. Munido das ferramentas da antropologia, em meia dúzia de capítulos Lomnitz oferece insights marcantes sobre temas diversos: mudanças na natureza da polícia mexicana; transformações na organização social dos cartéis; evolução da economia ilícita; e até alterações nas práticas locais de rapto de noivas no campo.

Mas a preocupação central de Lomnitz é explicar a transformação do Estado mexicano desde os anos 1980. No centro de sua análise está o projeto neoliberal — iniciado sob Miguel de la Madrid no começo dos anos 1980 e drasticamente acelerado sob Carlos Salinas de Gortari — de integrar o México aos mercados globais e, em particular, de aprofundar seus laços com os EUA por meio do NAFTA. Para Lomnitz, essa transformação envolveu não apenas rápida privatização e desregulamentação da economia, mas também reformas jurídicas e policiais, supostamente destinadas a estender o “estado de direito” e criar condições equitativas para a competição de livre mercado. Embora os orçamentos policiais tenham disparado, os salários subido e os agentes recebido mais treinamento, as reformas também minaram um sistema de clientelismo e vínculos informais. Ele descreve como a polícia funcionava antes como um mecanismo de “regulação da informalidade”, extraindo rendas de comerciantes locais e criminosos. Inútil para resolver crimes ou aplicar justiça, esse sistema ainda assim mantinha certa ordem. A tentativa neoliberal de impor um novo conjunto de regras chocou-se com a resistência desse arranjo informal e acabou por desarticulá-lo parcialmente, deixando o México num perigoso “terra de ninguém” entre arquiteturas jurídicas rivais — uma “ilha de direitos” cercada por um “mar de extorsão”.

O desmanche do sistema informal coincidiu com duas mudanças cruciais. A primeira foi a decadência da hegemonia do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que, após fraudar escandalosamente a eleição presidencial de 1988, cedeu finalmente às pressões por democratização, resultando em sua derrota em 2000 — tanto no Executivo quanto, gradualmente, nos governos estaduais e municipais. Mas, como Lomnitz observa, esse ambiente político pluralizado só ampliou as oportunidades de corrupção; além disso, governos sucessivos lançaram suas próprias reformas jurídicas e policiais — nenhuma implementada plenamente — acentuando a confusão judicial.

A segunda mudança deu-se na economia ilícita. Nos anos 1980, depois que a cocaína se uniu à maconha e à heroína no gosto dos consumidores dos EUA, organizações criminosas mexicanas deixaram de ser meras intermediárias de fornecedores colombianos e passaram a gerenciar as operações por conta própria. A geografia do poder criminoso também mudou: o controle de rotas de contrabando para os EUA — por Tijuana e Mexicali, rumo à Califórnia no oeste; por Reynosa e Matamoros, rumo ao Texas no leste — tornou-se tão valioso quanto o domínio sobre plantações de papoula e de cannabis. A emergência posterior de metanfetaminas e outros sintéticos redesenhou esse mapa, com a importação de precursores químicos do Leste Asiático transformando portos do Pacífico e suas áreas de entorno em palco de disputa violenta.

Sob o peso desses desenvolvimentos, o Estado mexicano tornou-se incapaz de cumprir muitas de suas funções básicas; ao mesmo tempo, o exercício do poder oficial recorre cada vez mais à violência e a abusos de autoridade. A “guerra às drogas” é o sintoma mais evidente dessa disfunção: embora a violência já crescesse antes de 2006, a crescente militarização da resposta estatal ao crime organizado tem apenas elevado o número de vítimas. Operações do Exército causaram grande número de civis mortos, e a fragmentação dos cartéis gerou mortíferos conflitos de territórios.

Lomnitz resume essa combinação destrutiva de incapacidade e violência do Estado mexicano na expressão “muita soberania, pouca administração de justiça”. Para ele, as duas coisas andam juntas: por exemplo, é justamente porque o Estado não administra efetivamente a justiça que o Exército recorre a execuções extrajudiciais como expressão de vontade soberana. Segundo Lomnitz, esse recurso fácil à violência indica que, ao contrário das aspirações de López Obrador e de muitos na esquerda mexicana de “recuperar” a soberania nacional, “um dos poucos atributos que o Estado mexicano não perdeu é sua capacidade demonstrada de atuar soberanamente”. De fato, uma das características definidoras dessa nova forma estatal, diz ele, é o que chama de “excesso de soberania”.

Quão convincente é essa análise? Lomnitz está certamente certo de que o Estado mexicano funciona hoje de modo diferente do que algumas décadas atrás, embora o caráter exato desse novo Estado e a cronologia de seu surgimento permaneçam um pouco opacos. Isso não é surpreendente, dado que as palestras reunidas em Sovereignty and Extortion constituem um ensaio inicial sobre o problema, e não uma teoria completa. Ainda assim, vale questionar o diagnóstico de Lomnitz, pois algumas de suas premissas básicas parecem questionáveis e as perguntas que suscitam nos conduzem em outra direção.

Lomnitz destaca seu relato em contraste com as duas narrativas políticas dominantes da história recente do México. De um lado, a ideia de “transição democrática” do domínio do PRI, que teria conduzido triunfalmente o país ao século XXI e prosseguido sem percalços até 2018; do outro, a “Quarta Transformação” proclamada por López Obrador, que se apresenta como a verdadeira democratização, comparável a três transições épicas anteriores: a independência da Espanha, as reformas liberais de Benito Juárez e a Revolução Mexicana. Para Lomnitz, ambas as narrativas autopromocionais ignoram o surgimento mais decisivo de uma nova forma de Estado, iniciada com o PRI e continuada por governos subsequentes, inclusive o de AMLO. A diferença real em 2018, segundo ele, é que a gestão de López Obrador tentou reverter o projeto neoliberal de “estado de direito” em favor da economia “embutida” ou informal, na qual vive e trabalha grande parte da população.

Mesmo assim, pelos próprios termos de Lomnitz, as dicotomias que ele estabelece — formal x informal, estado de direito x embutido — tendem a se sobrepor e confundir, pois não se referem a reinos separados, mas a partes interdependentes de um único sistema. Os mecanismos informais de corrupção que antes regiam a polícia no México (e continuam a reger, apesar das reformas neoliberais) funcionavam, como ele descreve, justamente porque havia uma estrutura formal de leis aplicada seletivamente. O “estado de direito” almejado pelas reformas neoliberais não era novo como formalidade, mas em suas intenções: era um conjunto de normas voltado a favorecer certos interesses.

Dessa perspectiva, é curioso que Lomnitz, embora seja ácido em relação à “Quarta Transformação”, pareça aceitar a retórica neoliberal de forma ingênua — como se as reformas realmente visassem aplicar o estado de direito a todos. Mas, como a implementação mostrou, esse estado de direito foi projetado sobretudo para corporações e investidores, protegendo direitos de propriedade em grande escala muito mais do que punindo crimes menores ou assegurando acesso igualitário a bens públicos. Em consequência dessa parcialidade — inerente ao caráter de classe das reformas neoliberais —, nos anos 1990 o México experimentou forte aumento da desigualdade e deterioração das condições de trabalho, especialmente nas maquiladoras. As “ilhas” de direitos de propriedade a que Lomnitz se refere estavam separadas do “mar” de extorsão apenas porque foram deliberadamente isoladas para proteger lucros privados; e, como as próprias maquiladoras, dependiam de mão de obra e recursos de seus arredores para operar. O que em Lomnitz parece um processo lamentavelmente incompleto de transformação jurídica foi, na verdade, seletivo e parcial de propósito. Isso importa porque muda a maneira de caracterizarmos os resultados: até que ponto os reformadores neoliberais alcançaram seus objetivos? E será que o atual estado de coisas no México se deve, como sugere Lomnitz, ao fracasso das reformas ou ao seu sucesso?

Outra surpresa no argumento de Lomnitz é sua definição singular de soberania. O termo tem diversos sentidos, abar­cando um amplo campo de práticas. Em Sovereignty and Extortion, refere-se principalmente ao uso da violência soberana pelo governo central. Há muitos pensadores que poderiam embasar essa discussão — de Hobbes a Schmitt —, mas sua inspiração teórica principal é, em vez disso, o ensaio On Kings (2017), de David Graeber e Marshall Sahlins, sobretudo sua ênfase na origem ritual religiosa da soberania. Material fascinante, sem dúvida, mas que parece inadequado ao problema atual: Graeber e Sahlins tratavam de sociedades pré-estatais, muitas vezes pré-modernas, não de um país industrializado de 130 milhões de habitantes. O que quer que tenha acontecido ao Estado mexicano contemporâneo, não brotou de práticas rituais, mas se metamorfoseou a partir de um extenso e complexo conjunto de instituições e relações sociais preexistentes.

O problema da perspectiva histórica surge em outros pontos do relato de Lomnitz. O “excesso de soberania” que ele diagnostica seria característico do Estado atual — mas não daquele dominado pelo PRI na maior parte do século XX. Mesmo segundo seus próprios critérios, isso não se sustenta: se execuções extrajudiciais do Exército são indicadoras de excesso de soberania, as ações de esquadrões da morte do governo em guerrilhas de esquerda nos anos 1960 e 1970 não seriam, porventura, manifestações ainda mais claras? De fato, por sua definição, esses crimes se encaixam melhor, pois eram mais nitidamente controlados pela cadeia de comando central — do presidente — do que as mortes de hoje.

É verdade que a escala da violência explodiu desde a Guerra Suja. Mas o poder repressivo dos presidentes do PRI era muito mais coordenado do que o que AMLO ou Sheinbaum dispõem hoje. Muitos exemplos citados por Lomnitz apontam, igualmente, não para uma excessiva centralização soberana, e sim o oposto: perda de controle central e fragmentação do poder soberano. Isso poderia ser descrito como “excesso” apenas no sentido de multiplicação — o número de atores exercendo o que parece vontade soberana cresceu exponencialmente. Sob essa ótica, as ambições de AMLO de “restaurar a soberania” soam como outro tipo de ilusão: manobras retóricas para encobrir um Estado cada vez mais esvaziado.

Ainda assim, a percepção básica de Lomnitz permanece válida — algo mudou de modo profundo no funcionamento do Estado mexicano — e, portanto, resta-nos a questão de como conceber essa nova forma estatal. Talvez ajude situar o México num contexto latino-americano mais amplo, onde vários países sofreram transformação neoliberal nos anos 1990 e hoje também enfrentam escalada de violência da guerra às drogas e insegurança. Nesse cenário, governos da região têm reforçado o papel repressivo do Estado e militarizado a polícia; o modelo de encarceramento em massa de Bukele em El Salvador e o estado de emergência permanente de Noboa no Equador são casos extremos. Ao mesmo tempo, a provisão estatal de serviços públicos tem sido reduzida por políticas de austeridade — mesmo com o papel do Estado de manter o acesso de capital aos mercados. O México se destaca principalmente porque AMLO combinou austeridade com aumento de gastos públicos em áreas específicas, alegando priorizar os pobres em vez dos investidores. Fora isso, segue o padrão regional de militarização crescente e capacidade estatal diminuída.

O abandono contínuo do bem-estar social, a ênfase crescente em funções coercitivas, a manutenção dos mercados — isso não descreve, afinal, a essência do Estado neoliberal, em vez de algo inteiramente novo? Se for assim, o que vemos no México e na América Latina é a próxima etapa da evolução do Estado produzido pelo neoliberalismo “realmente existente”, em contraste com as fantasias de estado de direito e mercados transparentes vendidas por seus ideólogos. O projeto neoliberal pode estar em ruínas, mas seus contornos ainda modelam o caminho da região, e a forma estatal que deixou — com legitimidade corroída e poderes soberanos dispersos — segue presidindo esse interregno.

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