3 de dezembro de 2015

Terror islâmico, a segurança e a questão hobbesiana da ordem

Liberais muitas vezes se preocupam com a necessidade de proteger os cidadãos contra o Estado. No entanto, na era do terror global, os riscos apresentados por Estados fracassados é de longe o maior perigo.

John Gray

New Statesman

Ilustração: Ralph Steadman.

Tradução / Entre as consequências das atrocidades em Paris – muitos delas impossíveis de prever tão cedo após os terríveis acontecimentos – uma parece razoavelmente clara. O Estado está retornando à sua função primária, de provedor de segurança. Com soldados das Forças Especiais vasculhando as ruas de Londres e Bruxelas paralisadas sob toque de recolher, o que se tem são respostas mais que claras à alta probabilidade de que mais ataques ocorram. O que estamos testemunhando é a redescoberta de uma verdade essencial: nossas liberdades não são sólidas construções autossuficientes, mas construtos muito frágeis, que só se mantêm satisfatoriamente intactas e operantes se estiverem sob o escudo protetor do poder do Estado. A ordem liberal ideal que estaria supostamente emergindo na Europa é fantasia. A tarefa de defender a segurança pública voltou a recair sobre governos nacionais – únicas instituições capazes de proteger os cidadãos.

A narrativa progressista, segundo a qual a liberdade estaria avançando e se ampliando por todo o mundo, impediu que as sociedades liberais construíssem os meios para avaliar corretamente a própria fragilidade. Derrubando déspotas em nome da liberdade, acabamos por nos pôr, nós mesmos, numa situação na qual nossa própria liberdade ficou sob ameaça de morte. Conforme o catecismo liberal, a liberdade é valor sagrado, indivisível e superior a todos os demais, e não pode ser negociada. Teorias grandiloquentes de direitos humanos afirmaram e reafirmaram as estritas limitações que se deveriam aplicar ao poder do Estado, como exigência universal de justiça. Nesse percurso, absolutamente perdemos os meios necessários para perceber que a anarquia endêmica pode ser obstáculo muito mais intratável à existência humana civilizada, que muitos tipos de despotismos; e nós como que atropelamos essa ideia, considerada perturbadora demais para ser enfrentada.

Mas houve um pensador moderno que compreendeu que um estado forte era precondição de qualquer ordem social civilizada. Em sua longa vida, Thomas Hobbes (1588-1679) assistiu a toda a Guerra Civil Inglesa (1642-1651), o que o convenceu de que só o governo pode garantir segurança contra divisões sectárias. Qualquer um que quisesse usufruir das amenidades da "vida cômoda" teria de submeter-se a um poder soberano, autorizado a fazer o que fosse necessário para manter a paz. Sem isso, como Hobbes escreveu em passagem célebre de sua obra-prima Leviathan (1651), não haveria "artes, letras, sociedade e, o pior de tudo, só haveria medo continuado e perigo de morte violenta, e o homem viveria vida solitária, pobre, imunda, bruta e curta".

Hobbes tem sido criticado pelos liberais, por negligenciar a necessidade de proteger o cidadão contra o Estado – necessidade que parecia clara no século 20, quando regimes totalitários dedicavam-se aos piores crimes. Mas ninguém precisa aceitar toda a teoria política de Hobbes, com seu fictícios estado de natureza e contrato social, para ver que ele, sim, capturou algumas realidades mais persistentes que os liberais preferiram esquecer. A forma de governo – democrático ou despótico, monárquico ou republicano – é menos importante que a sua capacidade para promover e manter a paz. Hoje, o mais feroz inimigo da liberdade não é a força, mas precisamente a fragilidade do Estado, o que mais gera perigos para a liberdade.

Considere-se a crise dos migrantes e como se desenvolverá, muito provavelmente, depois dos ataques em Paris. A realidade primeira e mais óbvia é que a crise foi efeito de uma fuga para longe de estados malsucedidos ou em processo de arruinamento total. A maior categoria simples de migrantes veio da Síria, país devastado por uma guerra de muitos lados, na qual o ocidente – com sua aliada Arábia Saudita e outros estados do Golfo – interveio com o objetivo de derrubar o regime de Bashar al-Assad. Outros migrantes vieram do Iraque, Afeganistão, Eritreia, Somália, Sudão e outros países. Mas evidentemente não pode ser acaso que tantos desses migrantes fujam de países cujos Estados foram destruídos, desmantelados, arruinados por políticas ocidentais de mudança de regime. Fluxos de migrantes têm outras causas, como a degradação ambiental na África e as oportunidades econômicas acessíveis nos países europeus, que persistirão mesmo muito depois de a guerra no Oriente Médio ter acabado. Hoje, o motor principal dos fluxos de migrantes são, isso sim, os Estados malsucedidos; é delírio de pensamento desejante imaginar que aqueles Estados serão consertados em qualquer prazo curto.

Destruir Estados é relativamente fácil, mas recriá-los é muito difícil. Iraque e Síria não serão reconstruídos em forma reconhecível, em nenhum futuro que se possa prever com realismo. Assim também, nenhum governo efetivo será restaurado no caos de jihadis a que está hoje reduzida a Líbia. Políticos que nos digam que a solução para a crise dos migrantes seria estabilizar os países de origem desses migrantes não falam sério, ou não são honestos. Nenhum deles tem uma ideia clara de como realizar tal façanha, ou está disposto a enfrentar as enormes dificuldades e os custos que a tarefa implicaria.

No processo de gerar Estados malsucedidos, o ocidente gerou as zonas de anarquia nas quais o ISIS (também conhecido como Estado Islâmico) prosperou. Há quem objete que os Estados destruídos não passavam de ditaduras brutais. Mas o Iraque de Saddam Hussein era um despotismo secular e assim, também, é a Síria de Assad. Ao trabalhar para derrubar esses regimes, o ocidente libertou as forças violentas da teocracia; e agora se aproxima cada dia mais de erradicar todos os Estados seculares que haja no Oriente Médio. Pior que isso: ao persistir nos esforços para derrubar Assad, o ocidente aproxima-se cada vez mais de produzir catástrofe ainda maior que qualquer outra que talvez houvesse antes. Se Assad tivesse sido derrubado com violência, o Exército Árabe Sírio ter-se-ia desintegrado e o Estado da Síria teria deixado de existir. O país se converteria num campo de matança anárquico, no qual dúzias de grupos jihadistas disputariam o poder. Comunidades que, para viver, dependiam do governo secular do presidente Assad, como cristãos, alawitas, drusos, estariam ameaçadas de genocídio tão real quando os iazidis no Iraque. O resultado seriam fluxos ainda maiores de pessoas desesperadas, rumo à Europa.

O ocidente continua a rejeitar qualquer cooperação com a Rússia, sob o pretexto de que o presidente Vladimir Putin e seu aliado o presidente Assad seriam tiranos malditos. Do ponto de vista hobbesiano isso é irrelevante. A questão realmente importante tem de ser sempre: qual é o mal maior? Como a ditadura de Assad é pior que um culto que sequestra e estupra crianças, mata mulheres consideradas velhas demais para a escravidão sexual, joga homossexuais dos telhados, assassina escritores e humoristas, mata pessoas em cadeiras de rodas e reduz a poeira construções e paisagens históricas e culturais milenares e insubstituíveis?

É verdade que, com suas bombas de barril e centros de tortura, Assad pode ter matado mais gente do que ISIS, mas isto não é por falta de tentar dos jihadistas. O ISIS promoveu ataques de assassinato em massa na Turquia, no Líbano, no Egito, na Síria, no Iraque, no Paquistão e no Afeganistão, dentre outros países nos quais as vítimas foram, sempre em grandes maiorias, muçulmanas; e se pusessem as mãos em armas biológicas ou de outros tipos para destruição em massa, com certeza as usariam. Por qualquer padrão razoável, o ISIS é uma muito maior ameaça à paz mundial do que Assad.

***

O impacto dos ataques de Paris será profundo. O número de mortes foi uma fração das provocadas pelos ataques do 11/9, mas a Europa é incomparavelmente mais frágil. O sonho Shengen foi atingido por golpe fatal, e já não se pode falar que as pessoas sejam livres para andar por onde queiram, num continente europeu sem fronteiras. Embora alguns controles tenham sido planejados para a Cúpula do Clima que acontece em Paris dia 30 de novembro, a imposição de controles de fronteira logo depois dos ataques, é prova de situação que mudou para sempre. As instituições europeias não têm capacidade para enfrentar ameaças dessa magnitude à segurança local. Só governos nacionais têm esse poder e, ao reimpor controles sobre as respectivas fronteiras, todos os estados europeus expõem uma vulnerabilidade fundamental na União Europeia.

O ministro das Finanças da Bavária, Markus Söder – membro da União Social Cristã, partido que faz dedicada oposição ao governo da Chanceler da Alemanha Angela Merkel – já declarou que, com os ataques de Paris, "tudo muda" na política de portas abertas aos migrantes que havia na Alemanha. Ao mesmo tempo, Konrad Szymanski, da Polônia e ministro dos Assuntos Europeus de seu país no governo que está sendo formado, depois que o Partido Lei e Justiça venceu eleições em outubro, já anunciou que a Polônia não pode aceitar a quota de migrantes que lhe caiba pelo sistema europeu de quotas, sem rigoroso controle de segurança. Mesmo antes dos ataques de Paris, a Suécia já suspendera a regra Schengen, sob o argumento de que estaria recebendo número de migrantes que o país já não suportava. Com a Europa paralisada, as nações do continente vão retomando o controle sobre as próprias fronteiras para tentar controlar ameaça crescente à segurança de seus cidadãos. Apenas dois dias antes dos ataques, líderes europeus reuniram-se em Malta para reafirmar o compromisso de todos com acolher migrantes. Mas, hoje, já emerge cenário muito diferente. Um a um os governos europeus põem-se a adotar políticas cujo efeito mais geral parece ser o início do fim da migração de massa para a Europa.

Para muitos liberais – como Barack Obama, que condenou aquelas reações como histéricas – os líderes europeus estariam sucumbindo à xenofobia, quando deveriam defender a abertura e uma humanidade comum. É quando considerar a questão, de um ponto de vista hobbesiano, pode ajudar a compreender o que se passa. Controlar fluxos de pessoas de modo algum colabora para neutralizar os militantes terroristas do ISIS que já estejam na Europa. Alguns entraram na Europa há anos, ou nasceram em país europeu e depois viajaram para zonas de guerra onde foram treinados em campos de treinamento de terroristas. Mas, sim, é verdade que a imigração sem qualquer controle, na escala a que chegou ano passado, inevitavelmente implica riscos de segurança muito assemelhados ao que se conhece como risco de guerra. Se os militantes do ISIS não passam de 1/10 de 1% dos cerca de um milhão dos migrantes que entraram na Europa até hoje, criaram-se cerca de mil novos riscos que antes não havia. E se se pensa nos militantes do ISIS que retornaram de Síria e Iraque para a Grã-Bretanha, que se calcula que sejam centenas, os novos riscos são bem claros. Uma grande ameaça terrorista pode ser criada por poucas pessoas.

Nesse caso, a fraqueza da União Europeia é resultado direto da liberdade de movimentos que foi um dos traços definidores do projeto. Como zona sem fronteiras, a UE não pode controlar o ir e vir de pessoas dentro de sua área. Mas se as fronteiras da França são hoje as fronteiras da Grécia (por onde consta que teriam entrado os suspeitos dos ataques em Paris, na viagem de volta do Oriente Médio), torna-se praticamente impossível qualquer controle. Diferente de ser alguma espécie de super-Estado, como muitos eurocéticos argumentaram criticando, a verdade é que a União Europeia não passa de pseudo-Estado, instituição que reclama para si muitas das prerrogativas do Estado, mas não dá conta de oferecer nem as condições mínimas de segurança aos próprios cidadãos, que os Estados existem para oferecer.

Além disso, este pseudo-estado contém pelo menos um estado semi-fracassado. O Estado fracassado e paralisado da Bélgica converteu-se em paraíso para jihadistas, de onde podem ser lançados quaisquer ataques. Pelo menos dois dos implicados nos ataques de Paris tinham vínculos com o bairro de Molenbeek, em Bruxelas, o que também se verificou em incidentes terroristas anteriores.

O padrão dos ataques que se tem visto também deve ser levado em consideração. Único nesse quesito entre os grupos jihadistas, o ISIS tem mostrado capacidade para unir numa única estratégia, guerra de guerrilhas e atos espetaculares de terror. Os ataques de Paris foram reação a derrotas em campo, na Síria, onde o ISIS havia sido forçado a recuar ante o avanço do Exército Árabe Sírio, apoiado pela Força Aérea da Rússia e por combatentes curdos. Se o ISIS sofrer novas derrotas, o grupo escalará na campanha de terrorismo urbano em países ocidentais. Nem as mais ferozes medidas de segurança podem impedir esse ataque. Podem-se identificar suspeitos e fazer abortar alguns dos projetos e planos, mas há um limite ao que se pode conseguir quando todo e qualquer membro de qualquer população é alvo potencial. Enquanto o ISIS existir, seus ataques vão continuar.

***

Dada a forma como a "guerra ao terror" criou algumas das condições que levaram à ascensão do jihadismo, é assustador contemplar a perspectiva de que agora pode ser necessário uma maior intervenção militar. François Hollande ainda pode estar certo em insistir que, neste momento, o único recurso eficaz é a destruição do Estado Islâmico pelo poder combinado da força militar ocidental e russa. Se se considera que – diferente da al-Qaeda nesse quesito – o ISIS é unidade territorial, com linhas de suprimento e infraestrutura, a missão não é, de modo algum, irrealizável. A resolução que a ONU aprovou dia 20 de novembro, para que se faça o que for preciso, ajudará. Mas bombardeio cada vez mais feroz não bastará. Permanece em aberto a questão de se o objetivo justifica mobilizar grandes exércitos de solo (que sofrerão muitas baixas e terão de permanecer em guerra por muitos anos).

Em uma região onde o inimigo do seu inimigo pode muito bem ser outro inimigo, as ramificações geopolíticas dessa operação são labirínticas. Qualquer movimento de cooperação entre Rússia e o ocidente na luta contra o ISIS será sempre incendiado por incidentes como a recente derrubada do jato russo, pela Turquia. O governo Obama, especialista em não correr riscos, parece não ter estômago para a missão, e o entusiasmo que o britânico David Cameron manifesta por mandar aviões para a guerra não merece qualquer confiança, dado o currículo do mesmo governo de não cumprir nenhuma das funções essenciais do Estado, desde ter feito redução gigante do orçamento da Defesa, até os cortes crescentes nos gastos para manter polícias eficientes, na busca de austeridade fiscal.

Tudo sugere que a ação concertada contra o ISIS, na escala hoje necessária, pode não ser exequível sob as condições atuais. Mas ainda que se possa mobilizar alguma vontade de ação para combater contra eles, o ISIS não morrerá antes de lançar ataques massivos em cidades ocidentais. Por isso os poderes do Estado podem talvez ter de ser ampliados, incluindo restrições a liberdades, que muitos liberais sempre operam para rejeitar completamente.

Mais uma vez, pode valer a pena considerar um ponto de vista hobbesiano. Os liberais reagiram horrorizados a propostas de vários governos, de que as agências de inteligência fossem autorizadas a recolher dados de atividades na Internet. Não é reação de todo infundada, porque em todos os casos será indispensável implantar salvaguardas e proteções efetivas e claras. Admitir que agências de segurança vasculhem nossos e-mails implica perda considerável de privacidade, uma das importantes dimensões da liberdade. Uma sociedade de vigilância universal não é futuro que entusiasme ninguém. Políticos que digam que não há conflito entre segurança e liberdade enganam-se a si próprios, ou mentem deliberadamente. O conflito é genuíno, tanto quando inegável e inevitável. Os que muito se interessem por tratar as liberdades liberais como se fossem santificadas, têm de explicar claramente até onde pode subir o preço que estão dispostos a pagar para manter aquelas liberdades.

Não é apenas segurança que fica comprometida se a liberdade de privacidade é tratada como intocável. Outras liberdades são, também. A vigilância massiva não dá conta de todas as condições que levam pessoas ao jihadismo. A vida nos bairros pobres, a praga de gerações castigadas por descaso e racismo, tudo isso é parte do contexto dos ataques em Paris. A vigilância massiva nada pode contra esses fatores, no que tenha a ver com prevenir futuros ataques. Vasculhar dados é tarefa infinita; as ameaças são incontáveis e sempre mutáveis. Mas monitorar tráfego de Internet pode ter alguma utilidade e, em alguns casos, pode ser vitalmente importante. Descartar completamente qualquer tipo de busca e recolhimento de dados de atividade de comunicação eletrônica só faz sentido se, simultaneamente, todos aceitam que aumente muito o risco que pesa sobre outras liberdades. A filosofia liberal recente têm mostrado a liberdade como sistema fixo pelo qual os direitos se interligam e reforçam-se mutuamente – as liberdades encadeadas de John Rawls, Ronald Dworkin e outros legalistas liberais. Mas longe dos tribunais e fora das universidades e salas de seminários, a realidade é sempre e continuado conflito. Uma liberdade colide contra a outra, e muitas vezes é preciso escolher entre uma e outra. Que sentido haveria em nada ceder na proteção à privacidade, mas ceder na liberdade para publicar caricaturas satíricas?

A liberdade não é indivisível. Política é escolha contínua entre liberdades, que atritam entre elas nos negócios mundanos. Diferentes religiões, culturas e tradições têm de aprender a co-existir. Além de seus muitos benefícios, sociedades plurais são um fato inalterável da vida moderna. Mas só podem funcionar se o Estado tiver os meios e o desejo de impor a todos uma paz comum. Se os partidos tradicionais não podem enfrentar o desafio, eles deixam o campo aberto para a extrema direita.

O pensamento de Thomas Hobbes tem limitações, algumas das quais são relevantes atualmente. Porque considerava a violência como um meio aceitável de autopreservação, ele não dá qualquer atenção aos modos pelos quais os seres humanos usam da violência para afirmar identidades e crenças. Hobbes sabia bem da intensidade das paixões religiosas. Por isso, precisamente, insistiu em que a religião deveria estar sempre sob controle da sociedade civil. Mas, como racionalista das primeiras Luzes do Iluminismo, Hobbes não pôde explicar por que os seres humanos estão sempre tão prontos a matarem-se uns os outros, em nome da fé. Convencido de que, no fim, todos têm a sobrevivência como valor predominante, Hobbes acreditava que todos poderiam ser persuadidos a pôr de lado a própria fé, em nome de preservar a paz. “A razão sugere convenientes cláusulas de paz" – escreveu Hobbes –, “sobre as quais os homens podem construir um acordo". Para pensador quase sempre visto – e que, possivelmente, via a si mesmo – como o realista supremo, aí está ideia muito estranhamente irrealista. A história da sua época e da nossa conta uma história diferente. Um número significativo de seres humanos muito frequentemente se puseram a matar e morrer, para defender [algum] significado nas próprias vidas.

Já é quase lugar comum apresentar os ataques do ISIS como niilistas, mas "niilismo" é palavra que, hoje, já nada significa. Essa palavra se aplicou originalmente no século XIX a radicais russos que rejeitaram a religião em favor da ciência, e pregavam o terror como meio para emancipar a humanidade do peso do passado. Depois daquele momento, passou a designar quem não tenha nenhum valor ou crença. Não faz sentido. Muito diferente de não crerem em nada, os militantes do ISIS são possuídos, isso sim, pela fé. Mesmo que alguns relatos sugiram que muitos militantes sejam movidos por algum tipo de euforia provocada por drogas, os ataques não são, de modo algum, atos de terror praticados ao acaso ou no calor da hora. São movimentos que seguem metódica estratégia de selvageria a serviço de um mito apocalíptico. O ISIS é movimento explicitamente escatológico, povoado de fantasias de batalhas cataclísmicas do fim dos tempos e de um califato universal. Não é acaso que o grupo tenha feito até hoje poucas – se é que fez alguma – exigências concretas.

Os mesmos que condenam o ISIS por um seu suposto niilismo, logo na frase seguinte já o descrevem como "medieval" – combinação muito estranha, de qualificações. Não há dúvidas de que o ISIS tem laços com tradições islâmicas apocalípticas e com o wahhabismo, o movimento islâmico fundamentalista do século XVIII que foi financiado e exportado para todos os cantos do mundo por fontes na Arábia Saudita e outros estados do Golfo. Mesmo tudo isso considerado, a noção de que o ISIS não passaria de reversão a valores medievais é gravemente errada. Pois implica que o grupo é uma força atávica que vai desaparecer no curso normal do desenvolvimento histórico, este é realmente um pensamento consolador. É também uma ilusão.

***

Não é só no uso inteligente da Internet e das mídias sociais que o ISIS manifesta sua modernidade. Os ataques suicidas usados como arma de guerra foi invenção dos "Tigres do Tamil", que inventaram o colete de explosivos e foram, num dado momento, o grupo terrorista mais ativo em todo o mundo. Os Tigres foram em grande maioria marxistas-leninistas, que matavam e morriam em nome de uma visão de mundo que é indiscutivelmente muito moderna. Assim também os seguidores do Pol Pot, prontos a massacrar o povo Cambodjiano para realizar sua fantasia de um novo mundo. O culto japonês Aum Shinrikyo recrutava seguidores entre cientistas, para desenvolver armas biológicas com as quais os fiéis planejavam livrar-se de quase toda a população do planeta; e conseguiram montar vários ataques bioterroristas, inclusive um no metrô de Tóquio, em 1995, que deixou milhares de feridos. O ISIS encarna um tipo de terrorismo apocalíptico que, sob diferentes formas, sempre aparece e reaparece nos tempos modernos.

Hobbes não pode nos livrar de uma situação em que nós nos tornamos alvos de pessoas que abraçam a morte e a destruição. Diferente da inabalável determinação em defender a nós mesmos, não há solução para esse problema. O que Hobbes pode fazer é dissipar as certezas preguiçosos e esperanças vãs do liberalismo vigente. A lição dos atentados de Paris é que a coexistência pacífica não é a condição padrão da humanidade moderna. Nós vamos ter que nos acostumar com a realidade de que "estar cômodo" não sai barato.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...