4 de maio de 2021

Eleger entre o povo e seus algozes

O segundo turno eleitoral no Peru reflete nas pesquisas o conflito de classes em um nível raramente visto antes. Se as elites estão dispostas a mover todas as suas peças para evitar que o povo levante a cabeça, devemos fazer o mesmo para consegui-lo.

Katherine Sarmiento


Pedro Castillo e Keiko Fujimori, protagonistas do segundo turno eleitoral no Peru. (Imagem: AFP)

De uma perspectiva mais ortodoxa, alguns marxistas interpretaram o famoso esquema de "superestrutura-base" de Marx, apontando que é a base, o escopo da produção, que determina a superestrutura, composta pela ordem e cultura político-jurídicas. Os marxistas críticos dessa interpretação ortodoxa apontaram que, na realidade, a relação base-superestrutura é antes um condicionamento, não uma determinação direta em um sentido causal. Que nem tudo que afeta a produção acabará modificando seu comportamento política ou ideologicamente.

Mas parece que nossa elite se esforça para concordar com os ortodoxos. As eleições de 2021 no Peru revelaram tudo o que é (e não é) nossa elite de Lima. Eles puseram de lado seus discursos de progresso liberal, e suas celebrações de crescimento e esperanças de continuidade expuseram seus mais profundos temores, bem como expuseram o que estão dispostos a fazer para apaziguá-los.

Uma elite que se assusta facilmente

Para Marx, o comunismo supõe uma comunidade de indivíduos livres e diferentes que voluntária e conscientemente co-administram os termos de sua atividade prática. Nesse sentido, surge porque foram gestadas as condições materiais de sua existência como formação social. As contradições inerentes ao capitalismo se desenvolveram e o capitalismo não pode resolvê-las, uma vez que escapa do que é possível no padrão do capital.

Evidentemente, estamos muito longe dessa situação, e o programa de Pedro Castillo está longe de ser comunista. Mesmo que tivesse uma agenda de reformas radicais que colocassem em xeque os interesses da classe dominante, a mesma correlação política definida pelo primeiro turno já impôs condições difíceis para implementá-las. Lembremos que o que o Peru Libre tem neste momento é intenção de voto; não um povo organizado inteiro prestes a tomar o poder.

No entanto, sua mera existência como opção nas urnas parece gerar uma embolia para as elites. A de Lima é uma elite acostumada a candidatos desfilando por suas instalações em busca de "contribuições" em troca de facilidades e contatos no novo governo. Acostumada a ser o candidato aquele que se acomoda a suas maneiras, a suas formas e suas regras. Costumava comprar todos (a Odebrecht deixou bem claro para nós). Costumava ter a vantagem, independentemente da decisão final das pessoas nas urnas. Nossa elite - apesar de estar bem no século 21 - ainda está acostumada com a dinâmica do século 20. Assusta-a que as pessoas tenham cada vez menos medo de entrar na sala, o seu espaço de conforto.
  
Esses são meus princípios. Se você não gosta deles, tenho outros

Historicamente, nossa elite tem sido extremamente conservadora. Podemos ver isso em momentos diferentes, mas aproveitando o contexto do bicentenário e o sucesso recente de "O Último Bastião" (na Netflix), vamos dar o exemplo das lutas pela independência. À medida que as correntes liberais avançavam em toda a América Latina, nossa elite resistia a deixar de ser uma colônia até que não tivesse escolha a não ser se estabelecer. Mesmo assim, muitas dinâmicas sociais, culturais, econômicas e políticas continuaram a ser tratadas a partir dos moldes coloniais.

No entanto, nos últimos vinte anos, se de algo encheu a boca a elite tem sido de "crescimento" e "democracia". Por um lado, associando o crescimento à promoção do investimento privado, principalmente o investimento estrangeiro. Por outro lado, basicamente associando democracia à possibilidade de eleições livres. Eles até queriam vestir a camisa dos progres. Lembremos ao PPK, no início de seu governo, em 2016, dizendo em mensagem à nação que iniciaria uma “revolução social”.

Mas, claro, são meras palavras que no momento da verdade não incomodavam para continuarem a implementar políticas destinadas a garantir a rentabilidade dos grandes empresários, a precarização do emprego, o rebaixamento dos padrões ambientais da atividade extrativa, etc. tudo isto à custa dos direitos dos trabalhadores, camponeses, mulheres, povos indígenas... E em nome do crescimento e da democracia.

Mas em momentos críticos, parece que ideais liberais e disputas históricas podem ser deixados de lado para defender o que realmente importa. Por exemplo, basta olhar para um dos personagens mais ilustres do Peru. Durante décadas, Mario Vargas Llosa construiu toda uma carreira como liberal e democrata. Um marco importante nisso foi o confronto político com Alberto Fujimori nas eleições de 1990, que o tornou um dos rivais históricos de Fujimori. Tanto é que nas eleições de 2011 e 2016 apelou ao voto contra Fujimori representado na candidatura de Keiko Fujimori. No primeiro caso, apoiando - no segundo turno, e provavelmente com muitas dúvidas - Humala; em 2016, talvez com menos mas, o PPK.

Hoje, Mario Vargas Llosa consegue engolir o sapo de apoio ao seu rival histórico, Fujimori, para não tocar no que sempre defendeu no fundo: uma estrutura onde há dominantes e dominados. Onde o crescimento, a democracia e o progressismo liberal estão bem, desde que sejam para aqueles que estão no comando. Portanto, não importa se é hora de apoiar o candidato do partido inimigo da democracia, que liderou uma ditadura aberta, que fechou o Congresso, que apodreceu com corrupção as frágeis instituições, que desapareceram opositores, que controlou a mídia e que hoje, longe de se distanciar, mostra-se como mais do mesmo.

A fachada liberal desaba e o que realmente importa permanece: defender a ordem a todo custo. Mesmo quando essa ordem já é insuportável para as grandes maiorias e elas se expressam dentro das próprias regras da democracia liberal.

O papel da mídia de Lima

Os cidadãos há muito não confiam na mídia. E não é por menos: a cobertura que costumam dar a certas notícias, a passada de pano para políticos que são semelhantes a eles (e a metralhadora contra os que não o são), os silêncios em momentos-chave... Tudo isso cobra seu preço. Já sabíamos, não é novo.

Porém, a novidade é ver que sempre podem cair mais baixo. Durante semanas, a atuação da mídia principal ficou evidente. No primeiro turno, o terruqueo contra a candidatura de Verónika Mendoza foi avassalador. Ela foi criticada por cada milímetro do plano do governo, cada segundo de suas declarações, cada gesto diante das câmeras. Com o resultado das eleições, até os analistas mais destacados ficaram surpresos com a ascensão de Castillo e, longe de escondê-lo, discutiram o caso Castillo como "um mistério", como se o voto do povo fosse algo tão difícil de entender.

Poucos dias depois, Mávila Huertas e Alfredo Torres do Cuarto Poder discutiam, visivelmente assustados, os resultados da primeira votação a caminho do segundo turno. Lamentando quase abertamente que a votação em Castillo fosse visivelmente superior à de Keiko Fujimori. Avaliando as possibilidades de Fujimori de reverter os resultados, como se essa fosse a preocupação do país, que claramente vai na direção oposta.

No entanto, um dos sinais mais ilustrativos do comportamento de nossa imprensa ocorreu fora do ar, nas recentes mudanças no grupo El Comercio. Especificamente, a destituição de Clara Elvira Ospina, da gestão do Canal N e da América Notícias. Com esse afastamento e as mudanças na cobertura jornalística, os temas que são abordados, a forma de enquadrá-los e as opiniões que são veiculadas, ficou claro qual é a linha do meio. Mas, acima de tudo, eles definem o que os proprietários de canais estão dispostos a fazer para proteger seus interesses.

Seus próprios jornalistas têm medo de pisar em calos. Outro dia, numa entrevista de René Gastelumendi com Lucía Alvites, foi possível ouvir: "Também estamos preocupados e vamos ter cuidado para que isso [coerção da mídia] não aconteça. Vamos falar sobre isso. Entenda que é delicado para mim neste momento falar sobre isso. Vamos discutir isso internamente [...] mas estamos preocupados".

E atenção: não que antes tivéssemos uma imprensa realmente livre. O que é surpreendente é a crueza da situação. Este tipo de decisão mostra que, em momentos críticos, a elite não se importa em deixar de lado o pouco que temos de pluralidade para defender abertamente os interesses que representa quando vê que estes podem estar em perigo. Como diria Correa, "desde que a imprensa foi inventada, a liberdade de imprensa é a vontade do dono da imprensa". Poucas vezes mais claro do que agora.

O melhor de tudo é que o recente debate em Chota deixou claro que a mídia não é essencial como local de discussão oficial. Esse debate e discussão política pode se dar com outras regras, outras dinâmicas, outros moderadores, muito mais ao nível do que realmente interessa às pessoas.

O povo ou seus algozes

Depois de 200 anos de independência, não podemos negar que ter um professor de escola rural prestes a chegar à presidência, vencendo o candidato dos ricos pelas reivindicações dos de baixo, é uma esperança. Há uma elite que se acreditava intocável e que hoje, embora a ameaça não seja total, teme a única possibilidade de que levantem a cabeça aqueles que viu como servos por 200 anos.

Se a elite está disposta a mover todas as suas peças para evitar que isso aconteça, o resto de nós tem que fazer o mesmo. Não estamos nem perto de um cenário pré-revolucionário, mas sem dúvida o simples fato de ter um candidato levantando reivindicações realmente populares, que conhece de perto os sentimentos do povo, é uma porta que pode ser empurrada para processos de longo prazo, como uma Assembleia Popular Constituinte. No caso contrário, não só essa possibilidade se dilui, mas se abre a porta para uma repressão muito forte contra nosso povo.

Ou você acha que o fujimorismo vai parar de se vingar do Peru que lhe mostrou sua rejeição? Portanto, temos que escolher, como disse Castillo no debate de Chota, entre o povo e seu algoz.

Sobre a autora

Socióloga.

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