1 de dezembro de 2005

Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado

Os teóricos da justiça política há muito consideram o estado-nação a unidade relevante para suas propostas. Nancy Fraser argumenta que o tempo para isso já passou. A necessária interconexão entre as lutas pela redistribuição econômica e o reconhecimento social agora exige que as questões de representação política sejam reapresentadas em nível global e não nacional – onde as decisões que afetam o destino de todos são cada vez mais tomadas, ou não.

Nancy Fraser



Tradução / A globalização está mudando o modo pelo qual discutimos a justiça.1 Há pouco tempo, no auge da social democracia, as disputas acerca da justiça pressupunham o que eu chamarei de “enquadramento Keynesiano-Westfaliano”. Já que normalmente aconteciam no interior dos Estados territoriais modernos, supunha-se que as discussões acerca da justiça concerniam às relações entre cidadãos, deveriam submeterse ao debate dentro dos públicos nacionais e contemplar reparações pelos Estados nacionais. Isso se aplicava para cada um dos dois grandes tipos de reivindicações por justiça – reivindicações por redistribuição socioeconômica e reivindicações por reconhecimento legal ou cultural. Em um momento em que o Sistema de Bretton Woods facilitava a aplicação do modelo econômico keynesiano em nível nacional, as reivindicações por redistribuição geralmente se focalizavam em desigualdades econômicas dentro dos Estados territoriais. Recorrendo à opinião pública para uma divisão mais justa da riqueza nacional, os reivindicantes buscavam a intervenção dos Estados nacionais nas economias domésticas. Da mesma forma, em uma era ainda impregnada pelo imaginário político Westfaliano, que distinguia fortemente o espaço “doméstico” do “internacional”, as demandas por reconhecimento geralmente se dirigiam às hierarquias de status internas. Recorrendo à consciência nacional para colocar um fim ao desrespeito institucionalizado nacionalmente, os reivindicantes pressionavam os governos nacionais a proscrever a discriminação e acomodar as diferenças entre os cidadãos. Em ambos os casos, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano era assumido sem questionamento. Representasse o problema uma questão de redistribuição ou de reconhecimento, de diferenças de classe ou de hierarquias de status, ele era tratado de um modo em que a unidade dentro da qual a justiça se aplicava era o Estado territorial moderno.2

Na verdade, sempre havia exceções. Ocasionalmente, a fome e o genocídio chocavam a opinião pública além das fronteiras. E alguns cosmopolitas e anti-imperialistas procuravam disseminar visões globalistas.3 Mas essas eram exceções que comprovavam a regra. Relegadas à esfera do “internacional”, elas eram subsumidas a uma problemática que se concentrava prioritariamente em questões de segurança, em oposição à justiça. O efeito disso foi reforçar, em vez de desafiar, o enquadramento Keynesiano-Westfaliano. De modo geral, esse enquadramento de disputas acerca da justiça prevaleceu por falta de oposição desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970.

Apesar de isso não ter sido notado naquele momento, esse enquadramento conferiu um formato distinto aos argumentos sobre a justiça social. Assumindo o Estado moderno territorial como a unidade apropriada, e os cidadãos como os sujeitos concernidos, tais argumentos se dirigiam a o que precisamente esses cidadãos deviam uns aos outros. Aos olhos de alguns, era suficiente que os cidadãos fossem formalmente iguais perante a lei; para outros, a igualdade de oportunidades era também requerida; para outros, ainda, a justiça demandava que todos os cidadãos tivessem acesso aos recursos e ao respeito de que eles precisavam para serem capazes de participar em paridade com os demais, como membros integrais da comunidade política. Em outras palavras, o argumento concentrava-se precisamente no que deveria ser entendido como uma justa ordenação das relações sociais no interior da sociedade. Envolvidos na disputa sobre “o que” era a justiça, os debatedores aparentemente não sentiam nenhuma necessidade de discutir o “quem”. Com o enquadramento Keynesiano- Westfaliano firmemente estabelecido, tomava-se como certo que o “quem” correspondia aos cidadãos nacionais. 3

Hoje, entretanto, esse enquadramento vem perdendo sua feição de autoevidência. Graças à elevada preocupação com a globalização e às instabilidades geopolíticas pós- Guerra Fria, muitos observam que os processos sociais que moldam suas vidas rotineiramente transbordam as fronteiras territoriais. Eles notam, por exemplo, que as decisões tomadas em um Estado territorial frequentemente impactam as vidas dos que estão fora dele, assim como as ações das corporações transnacionais, dos especuladores financeiros internacionais e dos grandes investidores institucionais. Muitos também notam a crescente visibilidade das organizações supranacionais e internacionais, tanto governamentais como não governamentais, e da opinião pública transnacional, que se desenvolve sem nenhuma consideração às fronteiras, através dos meios de comunicação de massa globais e da cibertecnologia. O resultado é um novo tipo de vulnerabilidade perante as forças transnacionais. Confrontados pelo aquecimento global, a disseminação da aids, o terrorismo internacional e o poderoso unilateralismo, muitos acreditam que suas chances de viverem bem dependem tanto dos processos que transpassam as fronteiras dos Estados territoriais quanto daqueles contidos dentro delas.

Sob tais condições, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano não é mais aceito sem questionamentos. Para muitos, deixou de ser axiomático que o Estado territorial moderno seja a unidade apropriada para se lidar com as questões de justiça e que os cidadãos destes Estados sejam os sujeitos a serem tomados como referência. O efeito disso é a desestabilização da prévia estrutura de formulação de demandas políticas – e, portanto, a mudança do modo pelo qual discutimos a justiça social.

Isso é verdade para os dois grandes tipos de reivindicação por justiça. No mundo contemporâneo, as reivindicações por redistribuição evitam, de modo crescente, tomar como pressuposto as economias nacionais. Diante da produção transnacionalizada, da diminuição de empregos, e das pressões associadas à redução dos marcos regulatórios dos Estados nacionais em competição, os sindicatos, antes nacionalmente focalizados, agora procuram, cada vez mais, aliados estrangeiros. Enquanto isso, inspirados pelos Zapatistas, os camponeses empobrecidos e os povos indígenas associam suas lutas contra o poder despótico local e as autoridades nacionais às críticas à ação predatória das corporações transnacionais e ao neoliberalismo global. Finalmente, os oponentes da Organização Mundial do Comércio atacam diretamente as novas estruturas de governança da economia global, que têm fortalecido muito a capacidade das grandes corporações e dos investidores de escapar dos poderes regulatórios e tributários dos Estados territoriais.

Do mesmo modo, os movimentos que lutam por reconhecimento, cada vez mais, olham além do Estado territorial. Sob o slogan “os direitos das mulheres são direitos humanos”, por exemplo, as feministas estão, ao redor do mundo, vinculando as lutas contra as práticas patriarcais locais a campanhas de reforma da legislação internacional. Ao mesmo tempo, minorias religiosas e étnicas, que sofrem discriminação dentro dos Estados territoriais, estão se reconstituindo em diásporas e construindo públicos transnacionais a partir dos quais mobilizam a opinião internacional. Finalmente, coalizões transnacionais dos ativistas dos direitos humanos buscam construir novas instituições cosmopolitas, tais como a Corte Internacional de Justiça, capazes de punir violações dos Estados à dignidade humana.

Em tais casos, os debates acerca da justiça estão implodindo o enquadramento Keynesiano-Westfaliano. Uma vez que as demandas já não se endereçam exclusivamente aos Estados nacionais e também não são debatidas somente pelos públicos nacionais, os reivindicantes não se focam mais apenas nas relações entre cidadãos. Assim, a gramática do argumento se alterou. Seja uma questão de redistribuição seja de reconhecimento, as disputas, que antes se focalizavam exclusivamente sobre o que era devido aos membros da comunidade como uma questão de justiça, agora, rapidamente, se transformam em disputas acerca de quem deve contar como um membro e qual é a comunidade relevante. Não apenas o “o que”, mas também “quem” está em disputa.

Hoje, em outras palavras, as discussões acerca da justiça assumem um duplo aspecto. Por um lado, elas tratam de questões de primeira ordem relativas à substância, tal como antes. Quanta desigualdade econômica a justiça permite, quanta redistribuição é requerida, e de acordo com qual princípio da justiça distributiva? O que constitui respeito igualitário, quais tipos de diferenças merecem reconhecimento público, e por quais meios? Acima e além dessas questões de primeira ordem, as discussões sobre a justiça, hoje, também tratam de questões de segunda ordem relativas ao meta-nível. Qual é o enquadramento, que adequado para se considerarem as questões de justiça de primeira ordem? Quem são os sujeitos relevantes titulares de uma justa distribuição ou de um reconhecimento recíproco no caso em questão? Desse modo, não é apenas a substância da justiça, mas também o enquadramento que está em disputa. O resultado é um desafio maior para as nossas teorias sobre justiça social. Preocupadas em grande medida com as questões de distribuição e/ou reconhecimento de primeira ordem, estas teorias, até o momento, não conseguiram desenvolver instrumentos conceituais para refletir sobre a meta questão do enquadramento. Então, da forma como as coisas estão, de modo algum está claro que elas sejam capazes de lidar com o duplo caráter dos problemas da justiça na era globalizada.4

Neste artigo, eu proporei uma estratégia para se pensar sobre o problema do enquadramento. Argumentarei, inicialmente, que as teorias da justiça devem-se tornar tridimensionais, incorporando a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento. Eu também sustentarei que se deve entender ser a dimensão política da representação capaz de englobar três níveis. O efeito combinado destes dois argumentos tornará visível uma terceira questão, que vai além do “o que” e do “quem”, e a qual eu chamarei de questão do “como”. Essa questão, por sua vez, inaugura uma mudança paradigmática: o que o enquadramento Keynesiano- Westfaliano fixou como a teoria da justiça social deve, agora, tornar-se a teoria da justiça democrática pós-Westfaliana.

A especificidade do político

Deixe-me começar explicando o que eu entendo por justiça em geral e por sua dimensão política em particular. De acordo com essa interpretação democrática-radical do princípio do igual valor moral, a justiça requer arranjos sociais que permitam que todos participem como pares na vida social. Superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social. Anteriormente, eu analisei dois tipos distintos de obstáculos à participação paritária, que correspondem a duas espécies diferentes de injustiça. Por um lado, as pessoas podem ser impedidas da plena participação por estruturas econômicas que lhes negam os recursos necessários para interagirem com os demais na condição de pares; nesse caso, elas sofrem injustiça distributiva ou má distribuição. Por outro lado, as pessoas também podem ser coibidas de interagirem em termos de paridade por hierarquias institucionalizadas de valoração cultural que lhes negam o status necessário; nesse caso, elas sofrem de desigualdade de status ou falso reconhecimento.5 No primeiro caso, o problema é a estrutura de classe da sociedade, que corresponde à dimensão econômica da justiça. No segundo caso, o problema é a ordem de status, que corresponde à sua dimensão cultural. Nas sociedades capitalistas modernas, a estrutura de classe e a ordem de status não se refletem apropriadamente, apesar de interagirem de modo causal. Ao contrário, cada uma tem alguma autonomia em relação à outra. Como resultado, o falso reconhecimento não pode ser reduzido a um efeito secundário da má distribuição, como algumas teorias econômicas da justiça distributiva parecem supor. Também não pode, de modo inverso, ser a má distribuição reduzida a uma expressão epifenomenal do falso reconhecimento, como algumas teorias culturalistas do reconhecimento tendem a afirmar. Desse modo, nem a teoria do reconhecimento nem a teoria da distribuição podem, sozinhas, oferecer uma compreensão adequada da justiça para a sociedade capitalista. Apenas uma teoria bidimensional, que abarque tanto distribuição quanto reconhecimento, pode fornecer os níveis necessários de complexidade socialteórica e discernimento moral-filosófico.6

Esta, pelo menos, é a visão da justiça que eu defendi no passado. E esta compreensão bidimensional da justiça ainda me parece ser adequada até o ponto em que ela se estende. Mas agora eu acredito que ela não vai longe o suficiente. Distribuição e reconhecimento pareciam constituir as únicas dimensões da justiça apenas enquanto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano era tomado como pressuposto. Uma vez que a questão do enquadramento se torna sujeita à contestação, o efeito disso é tornar visível uma terceira dimensão da justiça, que foi negligenciada em meu trabalho anterior – bem como no trabalho de muitos outros filósofos.7

A terceira dimensão da justiça é o político. Obviamente, distribuição e reconhecimento são políticos por natureza, no sentido de serem contestados e permeados por poder; e eles, frequentemente, têm sido tratados como elementos que demandam a tomada de decisão do Estado. Mas eu considero o político em um sentido mais específico, constitutivo, que diz respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais. O político, nesse sentido, fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas. Ao estabelecer o critério de pertencimento social, e, portanto, determinar quem conta como um membro, a dimensão política da justiça especifica o alcance daquelas outras dimensões: ela designa quem está incluído, e quem está excluído, do círculo daqueles que são titulares de uma justa distribuição e de reconhecimento recíproco. Ao estabelecer regras de decisão, a dimensão política também estipula os procedimentos de apresentação e resolução das disputas tanto na dimensão econômica quanto na cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações por redistribuição e reconhecimento, mas também como tais reivindicações devem ser introduzidas no debate e julgadas.

Centrada em questões de pertencimento e procedimento, a dimensão política da justiça diz respeito prioritariamente à representação. Em um nível, pertinente ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político, a representação é uma questão de pertencimento social. O que está em jogo aqui é a inclusão ou a exclusão da comunidade formada por aqueles legitimados a fazer reivindicações recíprocas de justiça. Em outro nível, pertinente ao aspecto da regra decisória, a representação diz respeito aos procedimentos que estruturam os processos públicos de contestação. Aqui, o que está em questão são os termos nos quais aqueles incluídos na comunidade política expressam suas reivindicações e decidem suas disputas.8 Nos dois níveis, o problema que surge é se as relações de representação são justas. Pode-se questionar: as fronteiras da comunidade política equivocadamente excluem alguns que, de fato, são titulares do direito à representação? As regras decisórias da comunidade atribuem, para todos os membros, igual capacidade de expressão nas deliberações públicas e representação justa no processo público de tomada de decisão? Tais questões de representação são especificamente políticas. Conceitualmente distintas das questões tanto econômicas quanto culturais, elas não podem ser reduzidas às últimas, apesar de, como veremos, estarem, inextricavelmente, entrelaçadas a elas.

Dizer que o político é uma dimensão conceitualmente distinta da justiça, irredutível ao econômico ou ao cultural, é também dizer que ele pode dar vazão a espécies conceitualmente distintas da injustiça. Dada a visão de justiça como paridade participativa, isso significa que pode haver obstáculos distintamente políticos à paridade, irredutíveis à má distribuição ou ao falso reconhecimento, apesar de (novamente) estarem a eles entrelaçados. Tais obstáculos surgem da constituição política da sociedade, em oposição à estrutura de classe ou à ordem de status. Baseados em um modo especificamente político de ordenação social, eles só podem ser adequadamente entendidos através de uma teoria que conceitua representação, juntamente com distribuição e reconhecimento, como uma das três dimensões fundamentais da justiça.

Três níveis de falsa representação

Se a representação é a questão definidora do político, então a característica política da injustiça é a falsa representação. A falsa representação ocorre quando as fronteiras políticas e/ou as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um par, com os demais, na interação social – inclusive, mas não apenas, nas arenas políticas. Longe de poder ser reduzida à má distribuição ou ao falso reconhecimento, a falsa representação pode ocorrer até mesmo na ausência dessas outras injustiças, apesar de estar frequentemente conectada a elas. Pelo menos dois níveis diferentes de falsa representação podem ser distinguidos. À medida que as regras de decisão política equivocadamente negam a alguns dos incluídos a chance de participar plenamente, como pares, a injustiça é o que eu chamo de falsa representação política-comum. Aqui, onde a questão é a representação dentro do enquadramento, entramos no terreno familiar dos debates da ciência política acerca dos méritos relativos de sistemas eleitorais alternativos. Os sistemas single-member- district,9 winner-take-all,10 first-past-the-post11 injustamente negam paridade a minorias numéricas? E, se o fizerem, a representação proporcional ou a votação cumulativa é a solução apropriada? Da mesma forma, as regras insensíveis ao gênero, em conjunto com a má distribuição e o falso reconhecimento baseados no gênero, funcionam de modo a negar paridade de participação política às mulheres? E se o fizerem, as cotas de gênero são a solução apropriada? Tais questões pertencem à esfera da justiça política-comum que, habitualmente, ocorriam dentro do enquadramento Keynesiano-Westfaliano.

Menos óbvio, talvez, seja o segundo nível da falsa representação, que diz respeito ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político. Aqui, a injustiça surge quando as fronteiras da comunidade são estabelecidas de uma forma que, equivocadamente, exclui de algumas pessoas todas as chances de participarem dos debates autorizados sobre a justiça. Em tais casos, a falsa representação ganha uma forma mais severa, que eu chamarei de mau enquadramento. O problema do mau enquadramento tem um caráter mais profundo em função da importância crucial do enquadramento para todas as questões de justiça social. Longe de ter significância marginal, o estabelecimento do enquadramento está entre as decisões políticas mais consequentes. Ao constituir tanto os membros quanto os não membros de uma única vez, essa decisão efetivamente exclui os últimos do universo daqueles a serem considerados dentro da comunidade em questões de distribuição, reconhecimento e representação política-comum. O resultado pode ser uma grave injustiça. Quando questões da justiça são enquadradas de uma forma que, erroneamente, exclui alguns indivíduos do âmbito de consideração, a consequência é um tipo específico de metainjustiça, em que se negam a esses a chance de formularem reivindicações de justiça de primeira ordem em uma dada comunidade política. A injustiça permanece, além disso, até mesmo quando aqueles que são excluídos de uma comunidade política são incluídos como sujeitos da justiça em outra – uma vez que a divisão política tem o efeito de colocar algumas questões relevantes da justiça fora de seu alcance. Ainda mais sério, obviamente, é o caso em que o indivíduo é excluído do pertencimento a qualquer comunidade política. Semelhante à perda do que Hannah Arendt chamou de “direito a ter direitos”, esse tipo de mau enquadramento é uma espécie de “morte política” (Arendt, 1973, pp. 269-284).12 Aqueles que o sofrem podem se tornar objetos de caridade ou benevolência. Desprovidos da possibilidade de formular reivindicações de primeira ordem, eles se tornam não-sujeitos em relação à justiça.

O tipo de mau enquadramento que a globalização tornou recentemente visível é a falsa representação. Anteriormente, no auge do Estado de bem-estar pós-guerra, com o enquadramento Keynesiano-Westfaliano seguramente estabelecido, a principal preocupação, quando se pensava sobre a justiça, era a distribuição. Depois disso, com o surgimento dos novos movimentos sociais e do multiculturalismo, as atenções se voltaram para o reconhecimento. Em ambos os casos, o Estado territorial moderno foi assumido sem discussão. Como resultado, a dimensão política da justiça foi relegada a um segundo plano. Quando ela emergiu, tomou a forma política comum de disputas em torno das regras internas de decisão do país cujas fronteiras já estavam dadas. Assim, as reivindicações por cotas de gênero e direitos multiculturais procuravam remover os obstáculos políticos à participação paritária daqueles que, em princípio, já estavam incluídos na comunidade política. Tomando como pressuposto o enquadramento Keynesiano-Westfaliano, essas demandas não colocavam em questão a noção de que a unidade apropriada da justiça era o Estado territorial.

Hoje, ao contrário, a globalização tem colocado a questão do enquadramento diretamente na agenda política. Cada vez mais sujeito à contestação, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano é agora considerado, por muitos, um grande produtor de injustiça, já que ele fraciona o espaço político de tal modo que impede os pobres e os desprezados de desafiarem as forças que os oprimem. Ao direcionar as reivindicações para os espaços políticos domésticos dos relativamente desempoderados, senão totalmente falidos, Estados nacionais, esse enquadramento isola, da crítica e do controle, os poderes que estão fora dos limites nacionais.13 Entre aqueles protegidos do alcance da justiça estão os Estados predadores mais poderosos e os poderes privados transnacionais, inclusive investidores e credores estrangeiros, especuladores monetários internacionais e corporações transnacionais. Também protegidas estão as estruturas de governança da economia global, que estabelecem termos de interação abusivos e, assim, se eximem do controle democrático. Finalmente, o enquadramento Keynesiano-Westfaliano se autoisola; a arquitetura do sistema interestatal protege o mesmo fracionamento do espaço político que ela institucionaliza, excluindo, de modo efetivo, as questões sobre a justiça do processo democrático transnacional de tomada de decisão.

A partir dessa perspectiva, o enquadramento Keynesiano- Westfaliano é um poderoso instrumento de injustiça, que fraciona o espaço político de modo a beneficiar determinado grupo à custa dos pobres e desprezados. Para aqueles a quem é negada a chance de formular reivindicações transnacionais de primeira ordem, as lutas contra a má distribuição e o falso reconhecimento não podem acontecer, muito menos obter êxito, a não ser que elas sejam vinculadas a lutas contra o mau enquadramento. Não é estranho, então, que alguns considerem mau enquadramento a injustiça definidora da era da globalização. Sob essas condições, a dimensão política da injustiça não pode ser ignorada. À medida que a globalização politiza a questão do enquadramento, ela também torna visível um aspecto da gramática da justiça que foi frequentemente negligenciado em um período anterior. Agora, é evidente que nenhuma reivindicação por justiça pode evitar pressupor alguma noção de representação, implícita ou explícita, uma vez que nenhuma pode evitar assumir um enquadramento. Desse modo, a representação já está sempre incorporada em todas as reivindicações por redistribuição e reconhecimento. A dimensão política está implícita na gramática do conceito de justiça e, certamente, é por ela requerida. Assim, não há redistribuição ou reconhecimento sem representação.14

Em geral, então, uma teoria da justiça adequada ao nosso tempo deve ser tridimensional. Abarcando não somente a redistribuição e o reconhecimento, mas também a representação, ela deve permitir-nos entender a questão do enquadramento como uma questão de justiça. Incorporando as dimensões econômica, cultural e política, ela deve nos capacitar a identificar as injustiças do mau enquadramento e avaliar possíveis reparações. Acima de tudo, ela deve nos permitir colocar e responder a questão política central de nossa época: como podemos integrar lutas contra a má distribuição, o falso reconhecimento e a falsa representação dentro de um enquadramento pós-Westfaliano?

Da territorialidade estatal à efetividade social?

Até aqui, eu argumentei sobre a especificidade irredutível do político como uma das três dimensões fundamentais da justiça. E também identifiquei dois níveis distintos de injustiça política: a falsa representação política comum e o mau enquadramento. Agora, quero examinar a política do enquadramento em um mundo globalizado. Distinguindo abordagens afirmativas das transformativas, eu argumentarei que uma política adequada da representação deve também dirigir-se a um terceiro nível: além de contestar a falsa representação política-comum e o mau enquadramento, tal política deve também procurar democratizar o processo de estabelecimento do enquadramento.

Eu começo explicando o que entendo pela “política do enquadramento”. Situada em meu segundo nível, onde distinções entre membros e não membros são estabelecidas, essa política diz respeito ao aspecto do estabelecimento das fronteiras do político. Focalizada nas questões acerca de quem é considerado um sujeito da justiça, e qual é o enquadramento apropriado, a política do enquadramento abrange esforços para estabelecer e consolidar, contestar e revisar, a divisão oficial do espaço político. Incluídas aqui estão as lutas contra o mau enquadramento, que visam a desmantelar os obstáculos que impedem as pessoas em desvantagem de confrontar, com reivindicações por justiça, as forças que as oprimem. Centrada no estabelecimento e na contestação dos enquadramentos, a política do enquadramento concerne à questão do “quem”.

A política do enquadramento pode ganhar duas distintas formas, ambas agora presentes em nosso mundo globalizado. 15 A primeira abordagem, que chamarei de política afirmativa do enquadramento, contesta as fronteiras dos enquadramentos existentes ao mesmo tempo que aceita a gramática Westfaliana de estabelecimento do enquadramento. Nessa política, aqueles que afirmam sofrer injustiças de mau enquadramento buscam redesenhar as fronteiras dos Estados territoriais existentes ou, em alguns casos, criar novas fronteiras. Mas eles ainda assumem que o Estado territorial é a unidade apropriada para se colocar e solucionar disputas acerca da justiça. Para eles, injustiças de mau enquadramento não são uma variável do princípio geral segundo o qual a ordem Westfaliana fraciona o espaço político. Ao contrário, elas surgem como um resultado da aplicação equivocada desse princípio. Assim, aqueles que praticam a política afirmativa do enquadramento aceitam que o princípio da territorialidade estatal é a base apropriada para constituir o “quem” da justiça. Em outras palavras, eles concordam que o que torna um dado grupo de indivíduos sujeitos equivalentes da justiça é sua residência comum no território de um Estado moderno e/ou o seu pertencimento comum a uma comunidade política que corresponde a tal Estado. Desse modo, longe de desafiar a gramática subjacente à ordem Westfaliana, aqueles que praticam a política afirmativa do enquadramento aceitam o seu princípio do Estado-territorial.

Entretanto, é precisamente esse princípio que é contestado em uma segunda versão da política do enquadramento, que chamarei de abordagem transformativa. Para os seus proponentes, o princípio do Estado territorial não mais garante uma base adequada para determinar o “quem” da justiça em todas as situações. Eles concedem, obviamente, que o princípio permanece relevante por muitas razões; assim, os proponentes da transformação não sugerem a total eliminação da territorialidade estatal. Mas eles argumentam que a sua gramática não está ajustada às causas estruturais de muitas injustiças no mundo globalizado, que não são territoriais por natureza. Os exemplos incluem os mercados financeiros, empresas protegidas de regulamentação fiscal no país em que operam (offshores), regimes de investimento e estruturas de governança da economia global, que determinam quem trabalha por um salário e quem não; as redes de informação dos meios de comunicação globais e cibertecnologia, que determinam quem está incluído nos circuitos do poder comunicativo e quem não está; e a biopolítica do clima, das doenças, dos medicamentos, das armas e da biotecnologia, que determinam quem viverá muito e quem morrerá cedo. Nessas questões tão fundamentais para o ser humano, as forças que cometem injustiça pertencem não ao “espaço dos lugares”, mas ao “espaço dos fluxos”.16 Não localizadas dentro da jurisdição de qualquer Estado territorial existente ou concebível, elas não podem ser confrontadas a responder reivindicações por justiça que são enquadradas em termos do princípio do Estado territorial. Nesse caso, invocar o princípio do Estado territorial para determinar o enquadramento é, em si, cometer uma injustiça. Ao fracionar o espaço político ao longo de linhas territoriais, esse princípio isola poderes extra e não territoriais do alcance da justiça. Em um mundo globalizado, então, é menos provável que isso sirva como uma reparação para o mau enquadramento do que como um mecanismo para infligi-lo ou perpetuá-lo.

O enquadramento pós-Westfaliano

De modo geral, então, a política transformativa do enquadramento procura alterar a gramática enraizada do estabelecimento de enquadramento em um mundo globalizado. Essa abordagem visa a suplementar o princípio do Estado territorial da ordem Westfaliana com um ou mais princípios pós-Westfalianos. O objetivo é superar as injustiças decorrentes do mau enquadramento por meio da mudança não apenas das fronteiras do “quem” da justiça, mas também do modo de sua constituição, ou seja, da forma pela qual elas são desenhadas.17

Com o que o modo pós-Westfaliano de estabelecimento do enquadramento se pareceria? Obviamente, é ainda muito cedo para se ter uma visão clara disso. Entretanto, o candidato mais promissor até o momento é o “princípio de todos os afetados”. Esse princípio estabelece que todos aqueles afetados por uma dada estrutura social ou instituição têm o status moral de sujeitos da justiça com relação a ela. Nessa visão, o que transforma um coletivo de pessoas em sujeitos da justiça de uma mesma categoria não é a proximidade geográfica, mas sua coimbricação em um enquadramento estrutural ou institucional comum, que estabelece as regras fundantes que governam sua interação social, moldando, assim, suas respectivas possibilidades de vida segundo padrões de vantagem e desvantagem.

Até recentemente, o princípio de todos os afetados parecia coincidir, na visão de muitos, com o princípio do Estado territorial. Dentro da visão de mundo Westfaliana, pressupunha-se que o enquadramento comum, determinante dos padrões de vantagem e desvantagem, era precisamente a ordem constitucional do Estado moderno territorial. Como resultado, parecia que, ao se aplicar o princípio do Estado territorial, simultaneamente se capturava a força normativa do princípio de todos os afetados. De fato, isso nunca foi totalmente verdade, como a longa história do colonialismo e neocolonialismo demonstra. Todavia, da perspectiva da metrópole, a fusão da territorialidade estatal com a efetividade social pareceu ter um ímpeto emancipatório, já que servia para justificar a progressiva incorporação, como sujeitos da justiça, de classes e grupos de status subordinados que residiam no território, mas eram excluídos da cidadania ativa.

Hoje, entretanto, a ideia de que a territorialidade estatal pode servir como representante da efetividade social não é mais plausível. Sob as atuais condições, a chance de alguém viver uma boa vida não depende totalmente da constituição política interna do Estado territorial em que reside. Apesar disso ainda ser inegavelmente relevante, seus efeitos são mediados por outras estruturas, tanto extra quanto não territoriais, cujo impacto é igualmente significante. Em geral, a globalização está tornando conflituosa a relação entre a territorialidade estatal e a efetividade social. A crescente divergência entre esses dois princípios tem o efeito de demonstrar que o primeiro é inadequado para sub-rogar o segundo. E assim surge a questão: é possível aplicar o princípio de todos os afetados diretamente ao enquadramento da justiça, sem passar pelo desvio da territorialidade estatal?18

Isso é precisamente o que alguns praticantes da política transformativa tentam fazer. Procurando exercer uma influência contra as fontes externas da má distribuição e do falso reconhecimento, alguns ativistas da globalização invocam diretamente o princípio de todos os afetados de modo a se contrapor à regra do fracionamento do espaço político em Estados territoriais. Ao contestar sua exclusão pelo enquadramento Keynesiano-Westfaliano, ambientalistas e povos indígenas reivindicam o status de sujeitos da justiça em relação aos poderes extra e não territoriais que afetam suas vidas. Insistindo que a efetividade ultrapassa a territorialidade estatal, eles congregaram ativistas do desenvolvimento, feministas internacionais e outros em torno da afirmação de seu direito a fazer reivindicações contra as estruturas que os prejudicam, mesmo quando elas não podem ser localizadas em espaços físicos. Rejeitando a gramática Westfaliana de estabelecimento do enquadramento, esses reivindicantes aplicam o princípio de todos os afetados diretamente a questões de justiça em um mundo globalizado.

A justiça metapolítica

Em tais casos, a política transformativa do enquadramento ocorre simultaneamente em múltiplas dimensões e em múltiplos níveis. Em um nível, os movimentos sociais que praticam essa política buscam reparar injustiças de primeira ordem, relacionadas à má distribuição, ao falso reconhecimento e à falsa representação da política comum. Em um segundo nível, esses movimentos buscam reparar injustiças de metanível decorrentes do mau enquadramento, por meio da reconstituição do “quem” da justiça. Além disso, nesses casos em que o princípio do Estado territorial serve mais para proteger a injustiça do que para desafiá-la, movimentos sociais transformativos invocam, em contraponto, o princípio de todos os afetados. Ao recorrer ao princípio pós-Westfaliano, eles procuram alterar a própria gramática do estabelecimento do enquadramento – e, assim, reconstruir as fundações metapolíticas da justiça para um mundo globalizado.

Mas as reivindicações da política transformativa vão muito mais longe. Além de suas outras demandas, esses movimentos também reivindicam o direito de participar no processo de estabelecimento do enquadramento pós-Westfaliano. Ao rejeitar a visão corrente, que considera ser o estabelecimento do enquadramento uma prerrogativa dos Estados e elites transnacionais, eles, efetivamente, procuram democratizar o processo através do qual os enquadramentos da justiça são desenhados e revisados. Afirmando o seu direito de participar na constituição do “quem” da justiça, eles, simultaneamente, transformam o “como” – o que eu entendo corresponder aos procedimentos aceitos para determinar o “quem”. Nesse sentido, os movimentos transformativos, em sua atuação mais reflexiva e ambiciosa, demandam a criação de novas arenas democráticas para a formulação de argumentos sobre o enquadramento. Em alguns casos, além disso, eles mesmos criam tais arenas. No Fórum Social Mundial, por exemplo, alguns praticantes da política transformativa criaram uma esfera pública transnacional na qual podem participar como pares, em relação aos demais, no processo de formulação e resolução de disputas acerca do enquadramento. Desse modo, eles prefiguram a possibilidade de novas instituições da justiça democrática pós-Westfaliana.19

A dimensão democratizante da política transformativa aponta para um terceiro nível de justiça política, além dos dois já discutidos. Anteriormente, eu distingui as injustiças de primeira ordem, correspondentes à falsa representação da política-comum, das injustiças de segunda ordem, correspondentes ao mau enquadramento. Entretanto, agora podemos discernir uma espécie de injustiça política de terceira ordem, que corresponde à questão do “como”. Exemplificada pelos processos antidemocráticos de estabelecimento do enquadramento, essa injustiça consiste no fracasso de institucionalizar a paridade de participação no nível metapolítico, em deliberações e decisões que dizem respeito ao “quem”. Uma vez que o que está em jogo aqui é o processo por meio do qual o espaço político de primeira ordem é constituído, chamarei essa injustiça de falsa representação metapolítica. A falsa representação metapolítica surge quando Estados e elites transnacionais monopolizam a atividade do estabelecimento do enquadramento, negando voz àqueles que podem ser afetados no processo e impedindo a criação de arenas democráticas em que as reivindicações destes últimos possam ser avaliadas e contempladas. O efeito é a exclusão da grande maioria das pessoas da participação nos metadiscursos que determinam a divisão oficial do espaço político. Na ausência de arenas institucionais para tal participação, e submetida a um tratamento antidemocrático do “como”, é negada à maioria a chance de se envolver, em termos paritários, no processo de tomada de decisão sobre o “quem”.

Assim, em geral, as lutas contra o mau enquadramento revelam um novo tipo de déficit democrático. Da mesma forma que a globalização tornou visíveis as injustiças do mau enquadramento, assim também as lutas transformativas contra a globalização neoliberal tornam visível a injustiça da falsa representação metapolítica. Ao expor a ausência de instituições nas quais as disputas sobre o “quem” possam ser democraticamente expressas e solucionadas, essas lutas focam sua atenção no “como”. Ao demonstrar que a inexistência de tais instituições obstrui os esforços de superação da injustiça, elas revelam as profundas conexões internas entre democracia e justiça. O efeito é trazer à tona a característica estrutural da atual conjuntura: as lutas por justiça em um mundo globalizado não podem alcançar êxito se não caminharem juntamente com as lutas por democracia metapolítica. Então, nesse nível também, não há redistribuição ou reconhecimento sem representação.

Teoria monológica e diálogo democrático

Eu venho argumentando que o que distingue a atual conjuntura é a contestação intensificada tanto do “quem” quanto do “como” da justiça. Sob essas condições, a teoria da justiça está passando por uma mudança paradigmática. Anteriormente, quando o enquadramento Keynesiano- Westfaliano vigorava, a maioria dos filósofos negligenciava a dimensão política. Tratando o Estado territorial como um dado, eles esforçavam-se para determinar teoricamente as exigências da justiça, em um modelo monológico. Assim, eles não imaginavam nenhum papel na determinação dessas exigências para aqueles que estariam sujeitos a elas, muito menos para aqueles excluídos pelo enquadramento nacional. Negando-se a refletir sobre a questão do enquadramento, esses filósofos jamais imaginaram que aqueles cujos destinos seriam decisivamente impactados pelas decisões relativas ao enquadramento poderiam ser titulares do direito de participar de sua formulação. Rejeitando qualquer necessidade de um momento democrático dialógico, eles se contentavam em produzir teorias monológicas sobre a justiça social.

Hoje, no entanto, as teorias monológicas da justiça social se tornam cada vez mais implausíveis. Como já vimos, a globalização não pode solucionar, mas sim problematizar, a questão do “como”, uma vez que politiza a questão do “quem”. O processo acontece mais ou menos assim: uma vez que o círculo daqueles que reivindicam o direito de participação no estabelecimento do enquadramento se expande, as decisões sobre o “quem” são crescentemente vistas como questões políticas, que deveriam ser tratadas democraticamente, e não como questões técnicas, que podem ser deixadas para os especialistas e as elites. O efeito é alterar o peso do argumento, fazendo com que os defensores do privilégio dos especialistas tenham de demonstrar o seu ponto. Incapazes de se manterem distanciados da questão, eles são necessariamente envolvidos em disputas acerca do “como”. Consequentemente, eles devem lidar com demandas por democratização metapolítica.

Uma mudança análoga está atualmente acontecendo na filosofia normativa. Do mesmo modo que alguns ativistas procuram transferir as prerrogativas de estabelecer o enquadramento das elites para públicos democráticos, alguns teóricos da justiça propõem repensar a divisão de trabalho clássica entre teóricos e demos. Não mais satisfeitos em determinar as exigências da justiça em um modelo monológico, esses teóricos estão cada vez mais pensando em abordagens dialógicas, que tratam aspectos importantes da justiça como questões de tomada de decisão coletiva, a serem determinadas pelos próprios cidadãos, através da deliberação democrática. Para eles, então, a gramática da teoria da justiça está sendo transformada. O que poderia antes ser chamado de “teoria da justiça social” agora aparece como “teoria da justiça democrática”.20

Entretanto, em sua forma atual, a teoria da justiça democrática permanece incompleta. Para concluir-se a virada de uma teoria monológica para uma teoria dialógica, é necessário um passo a mais, além daqueles contemplados pela maioria dos proponentes da virada dialógica.21 Daqui em diante, os processos democráticos de determinação devem ser aplicados não apenas ao “que” da justiça, mas também ao “quem” e ao “como”. Nesse caso, ao adotar uma abordagem democrática do “como”, a teoria da justiça assume um formato apropriado para o mundo globalizado. Dialógica em todos os níveis, tanto metapolítico quanto político-comum, ela se torna uma teoria pós-Westfaliana da justiça democrática.

A visão da justiça como paridade participativa prontamente se enquadra em tal abordagem. Esse princípio tem uma dupla qualidade que expressa o caráter reflexivo da justiça democrática. Por um lado, o princípio da paridade participativa envolve a noção de resultado, que especifica o princípio substantivo da justiça pelo qual podemos avaliar arranjos sociais: estes últimos só são justificados se permitirem que todos os atores sociais relevantes participem como pares na vida social. Por outro lado, a participação paritária também envolve a noção de processo, que especifica um padrão procedimental pelo qual podemos avaliar a legitimidade democrática das normas: estas últimas só são legítimas se contarem com o assentimento de todos os concernidos em um processo de deliberação justo e aberto, em que todos possam participar como pares. Em virtude dessa dupla qualidade, a visão da justiça como paridade participativa tem uma reflexividade inerente. Capaz de problematizar tanto a substância quanto o procedimento, ela torna visível o mútuo entrelaçamento desses dois aspectos dos arranjos sociais. Assim, essa abordagem pode exibir tanto as injustas condições de fundo que distorcem o aparentemente democrático processo de tomada de decisão, quanto os procedimentos não democráticos que geram resultados substantivamente desiguais. Consequentemente, ela nos permite mudar de nível facilmente, transitando, quando necessário, entre questões de primeira ordem e questões de metanível. Por tornar manifesta a coimplicação da democracia e da justiça, a visão da justiça como paridade participativa fornece exatamente o tipo de reflexividade que é necessário em um mundo globalizado.

Dito tudo isso, então, a norma da paridade participativa ajusta-se à abordagem da justiça democrática pós-Westfaliana apresentada aqui. Ao incorporar três dimensões e níveis múltiplos, essa abordagem torna visíveis e criticáveis as injustiças características da atual conjuntura. Ao conceituar o mau enquadramento e a falsa representação metapolítica, ela revela injustiças centrais subestimadas pelas teorias tradicionais. Focada não apenas no “que” da justiça, mas também no “quem” e no “como”, ela nos permite entender a questão do enquadramento como a questão central da justiça em mundo globalizado.

Notas

1 Inicialmente apresentado, em 2004, como uma Spinoza Lecture na Universidade de Amsterdã, este texto foi revisado na Wissenschaftskolleg zu Berlin, em 2004-2005. Agradeço o apoio das duas instituições, a contribuição de James Bohman, Kristin Gissberg e Keith Haysom, e os valiosos comentários e estimulantes discussões de Amy Allen, Seyla Benhabib, Bert van der Brink, Alessandro Ferrara, Rainer Forst, John Judis, Ted Koditschek, Maria Pia Lara, David Peritz e Eli Zaretsky. * Artigo originalmente publicado na New Left Review, no 36, nov./dez. 2005, à qual agradecemos por nos ter permitido publicá-lo em nossa revista. Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis.

2 A expressão “enquadramento Keynesiano-Westfaliano” tem o propósito de assinalar os fundamentos nacionais-territoriais das disputas em torno da justiça no auge do Estado de bem-estar democrático do pós-guerra, entre os anos 1945 e 1970. O termo “Westfaliano” refere-se ao Tratado de 1648, que estabeleceu alguns aspectos principais do sistema estatal internacional moderno. Entretanto, não me interessam nem os desdobramentos atuais do Tratado nem o longo processo através do qual o sistema por ele inaugurado evoluiu. Ao contrário, eu utilizo “Westfália” como um imaginário político que mapeou o mundo como um sistema de Estados territoriais soberanos mutuamente reconhecidos. A minha tese é que esse imaginário informou, no pós-guerra, o cenário de debates acerca da justiça no Primeiro Mundo, ao mesmo tempo em que os primeiros sinais de um regime pós-Westfaliano de direitos humanos emergiram. Para a distinção entre Westfália como “evento”, como “ideia/ideal”, como “processo de evolução” e como “registro normativo”, veja Richard Falk (2002).

3 Pode-se admitir que, a partir da perspectiva do Terceiro Mundo, as premissas Westfalianas pareceriam patentemente contrafactuais. Contudo, é importante recordar que a grande maioria dos anticolonialistas procurou conquistar os seus próprios Estados independentes Westfalianos. Apenas uma pequena minoria defendia, consistentemente, a justiça dentro de um enquadramento global – por razões que são inteiramente compreensíveis.

4 Discuti a elisão do problema do enquadramento nas teorias da justiça em voga em minha primeira Spinoza Lecture, “Who counts? Thematizing the question of the frame”. Veja também Fraser (2005).

5 Este “modelo de status” do reconhecimento representa uma alternativa ao usual “modelo de identidade”. Para uma crítica ao segundo e uma defesa do primeiro, veja Fraser (2000).

6 Para um argumento completo, veja o meu “Social justice in the age of identity politcs”, em Nancy Fraser e Axel Honneth (2003).

7 A negligência do político é particularmente evidente no caso dos teóricos da justiça que subscrevem as premissas filosóficas liberais ou comunitaristas. Em contraste, os democratas deliberativos, os democratas agonísticos e os republicanos têm procurado teorizar o político. Mas a maioria desses teóricos tem relativamente pouco a dizer sobre a relação entre democracia e justiça; e nenhum conceituou o político como umas das três dimensões da justiça.

8 Trabalhos clássicos sobre representação lidaram amplamente com o que eu chamo de aspecto das regras de decisão, mas ignoram o aspecto do pertencimento. Veja, por exemplo, Hanna Fenichel Pitkin (1967) e Bernard Manin (1997).

9 N.T.: usualmente traduzido como “distrito eleitoral uninominal”, esse sistema é caracterizado pelo fato de que apenas uma cadeira está em disputa por distrito.

10 N.T.: é um tipo de sistema eleitoral, chamado de “pluralidade”. Está associado a resultados de soma zero, em legislativos de sistemas majoritários, em que um partido leva todas as cadeiras em disputa.

11 N.T.: esse sistema é muito semelhante ao anterior. A diferença entre eles consiste no fato de que é este utilizado em eleições para os cargos do Poder Executivo. Está vinculado à ideia de que quem tem mais votos vence o processo; ou quem passa uma determinada linha (post) ganha a disputa. Agradecemos a Felipe Nunes a contribuição na tradução desses termos.

12 “Morte política” é um termo meu e não de Arendt.

13 Veja, em particular, Thomas Pogge (2001, pp. 326-343; 1999, pp. 27-34); Rainer Forst (2001, pp. 169-187; 2005).

14 Não pretendo sugerir que o político seja a dimensão principal da justiça, mais fundamental do que o econômico e o cultural. Ao contrário, as três dimensões estão em relações de mútuo imbricamento e influência recíproca. Da mesma forma que a capacidade de demandar distribuição e reconhecimento depende das relações de representação, também a capacidade de se expressar politicamente depende das relações de classe e de status. Em outras palavras, a capacidade de influenciar o debate público e os processos autoritativos de tomada de decisão depende não apenas das regras formais de decisão, mas também das relações de poder enraizadas na estrutura econômica e na ordem de status, um fato que é insuficientemente enfatizado na maioria das teorias da democracia deliberativa. Desse modo, a má distribuição e o falso reconhecimento agem conjuntamente na subversão do princípio da igual capacidade de expressão política de todo cidadão, mesmo em comunidades políticas que se afirmam democráticas. Mas, obviamente, o contrário é também verdadeiro. Aqueles que sofrem da má representação estão vulneráveis às injustiças de status e de classe. Ausente a possibilidade de expressão política, eles se tornam incapazes de articular e defender seus interesses com respeito à distribuição e ao reconhecimento, o que, por sua vez, exacerba a sua má representação. Em tais casos, o resultado é um círculo vicioso em que as três ordens de injustiça se reforçam mutuamente, negando a algumas pessoas a chance de participar como pares com os demais na vida social. Estando essas três dimensões interligadas, os esforços para superar a injustiça não podem, exceto em raros casos, lidar apenas com uma delas. Ao contrário, lutas contra a má distribuição e o falso reconhecimento não serão bem-sucedidas a menos que se aliem com lutas contra a má representação – e vice-versa. A qual delas se confere ênfase, obviamente, é tanto uma decisão tática quanto estratégica. Dada a saliência atual das injustiças do mau enquadramento, minha preferência é pelo lema “Nenhuma redistribuição ou reconhecimento sem representação”. Mas, mesmo assim, a política da representação aparece como uma dentre as três frentes interligadas na luta por justiça social em um mundo globalizado.

15 Ao distinguir a abordagem “afirmativa” da “transformativa”, eu adoto a terminologia que utilizei no passado em relação à redistribuição e ao reconhecimento. Veja, inter alia, Nancy Fraser (1995; 1998).

16 Tomei essa terminologia emprestada de Manuel Castells (1996).

17 Devo a ideia de um “modo de diferenciação política” pós-territorial a John Ruggie. Veja seu artigo bastante sugestivo, “Territoriality and beyond: problematizing modernity in international relations” (Ruggie, 1993).

18 Tudo depende de se encontrar uma interpretação adequada do princípio de todos os afetados. A questão principal é como restringir a ideia de “afetação” ao ponto em que ela se torna um padrão operacionalizável para acessar a justiça de vários enquadramentos. O problema é que, dado o tão chamado efeito borboleta, podem-se apresentar evidências de que praticamente todos são afetados por praticamente tudo. O que é necessário, então, é um modo de distinguir aqueles níveis e tipos de efetividade que são capazes de conferir uma reputação moral daqueles que não o são. Uma proposta, sugerida por Carol Gould, é limitar tal reputação para aqueles cujos direitos humanos são violados por uma dada prática ou instituição. Outra, sugerida por David Held, é conceder reputação para aqueles cuja expectativa e chances de vida são significativamente afetadas. O meu ponto de vista é que o princípio de todos os afetados é aberto à pluralidade de interpretações razoáveis. Como resultado, sua interpretação não pode ser determinada monologicamente por um decreto filosófico. Ao contrário, análises filosóficas de afetação devem ser entendidas como contribuições a um debate público mais amplo sobre o significado do princípio. O mesmo é verdade para as abordagens empíricas sociocientíficas de quem é afetado por dadas instituições ou políticas. Em geral, o princípio de todos os afetados deve ser interpretado dialogicamente, através da troca de argumentos na deliberação democrática. Isso dito, entretanto, uma coisa é clara. Injustiças de mau enquadramento só podem ser evitadas se a reputação moral não está limitada àqueles que já são credenciados como membros oficiais de uma dada instituição ou como participantes autorizados em uma dada prática. Para evitar tais injustiças, a reputação deve também ser conferida aos não-membros e aos não participantes significantemente afetados pela instituição ou prática em questão. Assim, os africanos subsaarianos, que têm sido involuntariamente desconectados da economia global, contam como sujeitos da justiça em relação a ela, mesmo se eles atualmente dela não participam. Para a interpretação dos direitos humanos, veja Carol Gould (2004); para a interpretação da expectativa e chances de vida, David Held (2004, pp. 99 e ss.) e, para a abordagem dialógica, Nancy Fraser (2006).

19 Até o momento, os esforços para democratizar o processo de estabelecimento do enquadramento estão confinados à contestação na sociedade civil transnacional. Mesmo sendo esse nível indispensável, ele não pode ter êxito enquanto não existirem instituições formais capazes de traduzir a opinião pública transnacional em decisões vinculativas e obrigatórias. Em geral, então, a rota da sociedade civil da política democrática transnacional precisa ser complementada por uma rota formal-institucional.

20 Essa frase vem de Ian Shapiro (1999). Mas a ideia pode também ser encontrada em Jürgen Habermas (1996); Seyla Benhabib (2004) e Rainer Forst (2002). 21 Nenhum dos teóricos citados na nota anterior tentou aplicar a abordagem da “justiça democrática” ao problema do enquadramento. O pensador que chegou mais perto disso foi Rainer Forst, mas mesmo ele não considerou os processos democráticos de estabelecimento do enquadramento.

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