31 de julho de 2014

Formaldeído sobre Gaza

Em 2004, um ano antes da retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, Dov Weissglass, eminência parda de Ariel Sharon, explicou o propósito da iniciativa a um...

Mouin Rabbani

London Review of Books

Vol. 36 No. 15 · 31 July 2014

Em 2004, um ano antes da retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, Dov Weissglass, eminência parda de Ariel Sharon, explicou o propósito da iniciativa em uma entrevista ao jornal Haaretz:

O significado do plano de retirada é o congelamento do processo de paz ... E quando se congela aquele processo, você impede-se o estabelecimento de um estado palestino e que se discuta a questão dos refugiados, as fronteiras e Jerusalém. Efetivamente, todo esse pacote chamado o estado palestino, com tudo que implica, foi removido por prazo indefinido, de nossa agenda. E isso tudo com... as bênçãos do presidente dos EUA e a ratificação das duas casas do Congresso.... O desengajamento é, de fato, formol. Fornece a quantidade necessária de formol para que não haja processo político algum com os palestinos.

Em 2006, Weissglass era igualmente franco sobre a política de Israel para os 1,8 milhão de habitantes de Gaza: "A ideia é pôr os palestinos em regime de restrição de comida, não matá-los de fome." Ele não estava falando metaforicamente: soube-se depois que o Ministério da Defesa de Israel havia feito uma pesquisa detalhada sobre como pôr em prática seu projeto, e chegou ao número limite de 2.279 calorias por pessoa por dia – cerca de 8% menos que um cálculo anterior, porque a equipe de pesquisa havia esquecido, da primeira vez, de considerar os fatores “cultura e experiência”, no cálculo para determinar as “linhas vermelhas” nutricionais.

Este não era um exercício acadêmico. Depois de aplicar uma política de integração entre 1967 e o final da década dos 1980, a política israelense deu uma guinada no rumo da separação durante os levantes de 1987-1993, e da fragmentação durante os anos de Oslo. Para a Faixa de Gaza, área do tamanho da Grande Glasgow, essas mudanças implicaram gradual rompimento e separação do mundo exterior, com a entrada e saída de pessoas e bens para dentro e para fora do território já cada vez mais difíceis.

Os parafusos foram sendo apertados cada vez mais durante o levante de 2000-2005, e em 2007 afinal a Faixa de Gaza foi efetivamente fechada para o mundo. Todas as exportações foram proibidas e só 131 caminhões de comida e alguns produtos essenciais podiam entrar, por dia. Israel também controlava rigorosamente que produtos podiam e não podiam ser importados. Itens proibidos incluíam papel A4, chocolate, coentro, lápis de cera, geleia, macarrão, shampoo, sapatos e cadeiras de rodas.

Em 2010, comentando sobre esta degradação premeditada e sistemática da humanidade de uma população inteira, David Cameron caracterizou a Faixa de Gaza como uma "prisão" e – pela primeira vez – não suavizou a avaliação acrescentando-lhe um comentário sobre o direito de os carrascos defenderem-se contra o “perigo” que seus prisioneiros e vítimas representariam.

Tem-se repetido que a razão pela qual Israel sempre torna cada vez mais violento o seu regime de castigo coletivo seria derrubar o Hamas, que chegou ao poder em 2007, em Gaza. A afirmação não resiste a uma análise séria. Remover o Hamas do poder é objetivo dos EUA e da União Europeia desde o dia em que o movimento venceu as eleições parlamentares de 2006; e os esforços combinados daquelas forças para derrubar o Hamas do poder ajudou a preparar o cenário para que Israel se dedicasse a aprofundar o cisma palestino.

A agenda de Israel é bem diferente. Se quisesse pôr fim ao poder do Hamas, já o teria feita e até bem facilmente, sobretudo antes, enquanto o Hamas ainda consolidava seu controle sobre Gaza em 2007, a sem necessariamente reverter a retirada de 2005. Mas, não. Israel viu o cisma entre o Hamas e a Autoridade Palestina como uma oportunidade para aprofundar suas políticas de separação e fragmentação, e para aliviar a crescente pressão internacional para pôr fim a uma ocupação da Palestina que já durara meio século.

Os ataques massivos de Israel contra a Faixa de Gaza em 2008-9 (Operação Chumbo Derretido) e em 2012 (Operação Pilar de Defesa), além dos incontáveis ataques individuais entre uma grande guerra e outra, foram, nesse contexto, exercício para o que os militares israelenses chamaram de “aparar a grama”: enfraquecer o Hamás e ampliar os poderes “de contenção” de Israel. Como o Relatório Goldstone de 2009 e outras investigações demonstraram, às vezes em detalhes horrivelmente dolorosos, a “grama” é gente, pessoas, civis palestinos não combatentes, tomados como alvos humanos da artilharia indiscriminada dos israelenses.

O atual ataque de Israel contra a Faixa de Gaza, que começou dia 6 de julho/2014, com invasão também por terra iniciada dez dias depois, é mais uma ação na mesma agenda. As condições foram consideradas maduras no final de abril. Negociações que se arrastavam há nove meses começaram a parar quando o governo israelense não cumpriu o compromisso de libertar vários palestinos mantidos encarcerados desde antes dos Acordos de Oslo de 1993; e pararam, mesmo, quando Netanyahu anunciou que não mais negociaria com Mahmoud Abbas, “porque” Abbas acabava de assinar acordo de reconciliação com o Hamas. Nessa ocasião, em atitude em tudo diversa da “normal”, o Secretário de Estado dos EUA John Kerry explicitamente culpou Israel pelo rompimento das conversações. O enviado especial dos EUA, Martin Indyk, profissional lobbyista pró-Israel, também culpou o insaciável apetite de Israel por terras palestinas e pela expansão continuada das colônias, e demitiu-se.

O desafio aqui para Netanyahu é claro. Se até mesmo os americanos estão dizendo ao mundo que Israel não está interessado em paz, os mais diretamente investidos num acordo com vistas a uma solução de Dois Estados – como a União Europeia, que já começou a excluir entidades israelenses ativas nos Territórios Palestinos Ocupados, de participação em acordos bilaterais – podem começar a pensar em novos meios para empurrar Israel de volta para dentro das fronteiras de 1967. As negociações sobre nada são planejadas para garantir cobertura política à odiosa política israelense de anexação. Agora que novamente fracassaram, o patrimônio estratégico que é a opinião pública norte-americana pode começar a perguntar-se por que o Congresso dos EUA é mais leal a Netanyahu que o Knesset israelense. Kerry trabalhou a valer para conseguir acordo amplo: pegou praticamente todas as exigências de Israel e enfiou-as pela goela abaixo de Abbas. Pois mesmo assim Netanyahu continuava a reclamar. Além de se recusar a especificar futuras fronteiras israelenses-palestinas durante os nove meses de negociação, os líderes israelenses levantaram tais acusações contra Washington, tão violentas – de encorajar o extremismo, socorrer terroristas – que quase se poderia concluir que o Congresso dos EUA apoia o Hamas, não Israel! E ao custo de US$ 3 bilhões anuais.

Israel recebeu outro golpe no dia 2 de junho de 2014, quando um novo governo da Autoridade Palestina foi inaugurado, depois do acordo de reconciliação de abril entre os partidos Hamas e Fatah. O Hamas apoiou o novo governo apesar de não receber postos no Gabinete e de a composição e o programa do governo serem virtualmente idênticos aos do governo anterior. Praticamente sem protesto dos islamistas, Abbas repetiu e proclamou que o governo aceitava as demandas do “Quarteto do Oriente Médio”: reconhecia Israel, renunciava à violência e aderia a acordos anteriores. Anunciou também que as forças de segurança na Cisjordânia continuariam a colaborar com Israel. Quando Washington e Bruxelas sinalizaram a intenção de cooperar com o novo governo, todos os sinais de alarme dispararam em Israel. O que Israel repetiu sempre, que os negociadores palestinos falam cada um só por si próprio – e que, por isso, nenhum acordo seria jamais cumprido – começara a perder sentido: a liderança palestina não apenas podia dizer que representa a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, como, também, conseguira cooptar o Hamás para que apoiasse um acordo negociado para Dois Estados, quase, praticamente, no contexto de Oslo. Sem demora, começariam as pressões sobre Israel para que negociasse a sério com Abbas. O formol começava a evaporar.

Nesse ponto, Netanyahu aproveitou o desaparecimento no dia 12 de julho de 2014 de três jovens israelenses na Cisjordânia como um homem se afogando agarra a um salva-vidas. Apesar das provas que recebeu das forças de segurança de Israel de que os três já estavam mortos, e não há até hoje prova alguma de que o Hamas tivesse tido qualquer envolvimento nesses eventos, Netanyahu imediatamente acusou diretamente o Hamas e, na sequência, lançou vasta campanha para “resgatar os reféns” em toda a Cisjordânia. Foi, de fato, operação de assalto e saque militar. Incluiu o assassinato de pelo menos seis palestinos, nenhum dos quais acusado de participação no desaparecimento dos três israelenses; prisões em massa, inclusive de deputados do Hamas e a recaptura de prisioneiros libertados em 2011; demolição de muitas casas e invasão e saque de outras; e variedade enorme de depredações do tipo que Israel elevou à posição de uma das belas artes ao longo de décadas de ocupação. Netanyahu desencadeou festival de fogos de artifício demagógicos contra todos os palestinos; o sequestro seguido de assassinato – foi queimado vivo – de um jovem palestino em Jerusalém não pode ser e não será separado dessa mesma campanha de incitamento ao ódio.

Por sua parte, Abbas falhou mais uma vez e não se opôs à operação israelense; até ordenou que suas forças de segurança continuassem a cooperar com Israel na caçada ao Hamas. O acordo de reconciliação foi posto sob grave pressão. Na noite de 6 de julho de 2014, um ataque aéreo israelense resultou na morte de sete militantes do Hamas. O Hamas respondeu com fogo sustentado de foguetes que invadiram o centro do território israelense; e escalaram novamente depois que Israel lançou campanha de massacre massivo. Ao longo do último ano, o Hamas esteve sempre em posição precária: perdeu suas instalações em Damasco e o status preferencial de que gozava no Irã, efeito de o grupo ter-se recusado a declarar apoio ao regime sírio; e enfrentou níveis sem precedentes de hostilidade, pelo novo regime militar egípcio. A economia subterrânea dos túneis entre Egito e Gaza foi sistematicamente atacada pelos egípcios, e pela primeira vez desde que passou a controlar politicamente o território, em 2007, o Hamas não conseguiu pagar em dia os salários das dezenas de milhares de funcionários públicos. O acordo de reconciliação com o partido Fatah foi a tentativa de trocar o próprio programa político pela sobrevivência imediata: em troca de conceder a arena política a Abbas, o Hamas conservaria o governo da Faixa de Gaza, com seus funcionários incluídos na folha de pagamentos da Autoridade Palestina e a passagem de fronteira com o Egito reaberta.

No evento, a troca que o Hamas esperava ver realizada não aconteceu; e, segundo Nathan Thrall do International Crisis Group, “a vida em Gaza piorou”. “A escalada real”, Thrall escreveu, “é resultado direto de Israel e o Ocidente terem se oposto à implementação do acordo de reconciliação entre os palestinos, de abril de 2014”. Ou, dito de outro modo: os que, dentro do Hamas, viram a crise como uma oportunidade para pôr fim ao governo de Weissglass, passaram a controlar o partido. Até agora, parecem ter com eles a maioria da população – porque preferem morrer sob fogo dos F-16, do que morrer mergulhados em formol.

Entre todos os uivos hipócritas - desta vez incluindo um covarde Cameron - sobre o direito de Israel à auto-defesa, e em face da rejeição categórica do direito equivalente dos palestinos, o ponto fundamental de que este é um ataque ilegítimo é muitas vezes perdido. Como argumentou com muita pertinência o advogado Noura Erakat, “Israel não tem qualquer direito de autodefesa, nos termos da lei internacional, contra território palestino ocupado”. O argumento de Israel, de que já não estaria ocupando a Faixa de Gaza, foi descartado por Lisa Hajjar, da Universidade da Califórnia, como uma autoemitida “licença para matar”.

Mais uma vez, Israel está a “aparar a grama” com impunidade, visando civis não-combatentes e infra-estrutura civil. Dada a afirmativa repetida dos israelenses de que usam as armas mais precisas disponíveis e miram atentamente os alvos, é impossível não concluir que os assassinatos são deliberadamente mirados. Segundo agências da ONU, mais de ¾ dos mais de 260 palestinos mortos até agora são civis, e mais de ¼ desses são crianças. A maioria foi “mirada’ e morta dentro das próprias casas: não podem ser apresentados como “dano colateral”, seja qual for a definição dessa expressão. Claro que os militantes palestinos miram cruelmente os centros israelenses mais populosos, embora seus ataques só tenham produzido uma única morte: um israelense que oferecia doces a soldados que pulverizavam a Faixa de Gaza. A Human Rights Watch criticou ambos os lados, mas, fiel à forma, acusou apenas os palestinos de crimes de guerra.

Mouin Rabbani é coeditor da Jadaliyya e pesquisador não residente do Centro de Estudos Humanitários e de Conflitos.

30 de julho de 2014

A lógica da violência de Israel

A violência de Israel não é algo sem sentido - ela segue uma lógica colonial.

Greg Shupak


Forças de Defesa de Israel/Flickr

Tradução / Entende-se que, para muitos, a ação de Israel na Faixa de Gaza seja um massacre e carnificina como tais. É um interpretação plausível para a morte de 1.284 palestinos, pelo menos 75% dos quais são civis, e ferir outros 7.100.

Ver Israel como dedicado a derramamento gratuito de sangue parece até mais razoável, como conclusão, à luz do massacre de 63 pessoas em Shujaiya depois de “uso extensivo de fogo de artilharia em dúzias de áreas populosas em toda a Faixa de Gaza” que deixou cadáveres “espalhados pelas ruas”, ou o bombardeio de abrigos da ONU abertos para acolher os que fugiam da violência. É também uma conclusão tentadora, baseada em relados de Khuza’a, área no interior do território da Faixa, e que também foi o cenário de mais um massacre pelos israelenses.

Mas descrever essa violência como ‘'maldade em si'’, como ‘'perversão'’ ou como ato sem outro objetivo além do assassinato em si deixa escapar a própria lógica que preside tudo que Israel está fazendo com sua Operação Margem de Proteção, agora, mas que de fato faz há muito tempo, ao longo de toda sua história.

Como Darryl Li aponta, “Desde 2005, Israel vem desenvolvendo um experimento raro, talvez sem precedentes, de gestão colonial na Faixa de Gaza”, procurando sempre “isolar os palestinos de qualquer contato com o mundo exterior, torná-los absolutamente dependentes da caridade externa” e, simultaneamente, cuidar de “absolver Israel de qualquer responsabilidade em relação a eles”.

Essa estratégia, prossegue Li, é o modo pelo qual Israel trabalha para manter a maioria de judeus nos territórios que controla, de modo a poder continuar a negar direitos iguais para o restante da população.

Suprimir a resistência palestina é crucial para o sucesso do experimento israelense. Mas há um corolário, a saber, uma interação cíclica entre o colonialismo israelense e o militarismo americano. Como explica Bashir Abu-Manneh, há uma relação entre o imperialismo americano e as políticas sionistas. Políticos americanos creem que uma aliança com Israel ajuda os EUA a controlar o Oriente Médio. Assim sendo, os EUA viabilizam o colonialismo e a ocupação israelenses, o que, por sua vez, cria contextos para mais intervenções dos EUA na região, que podem ser usados para tentar aprofundar a hegemonia americana.

O autor diz também que “os EUA têm determinado grandes resultantes econômicas e políticas” na região desde, pelo menos, 1967, e que Israel desempenha um “papel crucial nas realizações americanas. Em Israel-Palestina, o que se tem é que a força e uma paz colonial alternaram-se como principais instrumentos de política”. Mas, em todos os casos, permanece sempre “o mesmo objetivo, constante: a supremacia dos judeus na Palestina – o máximo possível de terra, com o mínimo possível de palestinos sobre ela”.

O que os dois analistas, Li e Abu-Manneh destacam é a preocupação de Israel em manter os palestinos em estado de impotência. Conduzida simultaneamente por sua própria agenda de ocupação com colonização e por sua função como parceira dos EUA no sistema geopolítico, Israel dedica-se a tentar equilibrar seu desejo de maximizar o território que controla e o imperativo de minimizar o número de palestinos vivos nos territórios que Israel aspira a usar para seus próprios objetivos.

Um modo de destruir qualquer sinal do poder dos palestinos tem sido deixado bem à vista na Operação Margem de Proteção, durante a qual a violência dos israelenses foi aplicada a detonar quaisquer sinais da independência palestina – daí a conclamação que fez o ministro da Economia, Naftali Bennett, para “derrotar o Hamas”.

O resultado é que os palestinos não estão sujeitos apenas a extrema violência. Também a capacidade de os palestinos viverem autonomamente na Palestina histórica tem sido atacada. A destruição da infraestrutura no recente ataque contra a única usina de produção de eletricidade de toda a Faixa de Gaza é um sinal bem claro disso. O massacre atual não põe fim só à vida de indivíduos palestinos, mas também visa a arrancar dos palestinos como povo a capacidade de viver dom independência em sua terra natal.

Quando nega aos refugiados o direito natural protegido por lei de retornar, Israel deixa ver abertamente a tática de que se serve para manter o quadro demográfico com que sonha, criando condições inóspitas para a existência autônoma dos palestinos; ao mesmo tempo, a mesma tática também pode assegurar a Israel “o máximo possível de terra, com o mínimo possível de palestinos sobre ela”.

A violência regida por essa lógica não é exclusividade do sionismo. É um traço central no colonialismo e tem paralelo histórico, por exemplo, na Trilha das Lágrimas nos EUA ou no Canadá, com a limpeza étnica das planícies mediante o processo de provocar premeditadamente grandes fomes entre os povos nativos. O significado da Operação Margem de Proteção é similar.

Impedir que um povo proveja a própria sobrevivência é um meio de sabotar a capacidade de viverem autonomamente. Esse é o sentido do ataque de Israel contra 46 barcos pesqueiros de Gaza, ou dos ataques do 16º Dia da Operação Linha de Proteção contra as áreas plantadas no norte da Faixa de Gaza, na cidade de Gaza, na Faixa de Gaza Central, em Khan Yunis e em Rafah. Assim é que se tem de entender que Israel tenha-se dedicado a destruir 2/3 dos moinhos de trigo de Gaza, e unidades que produziam ração para 3.000 animais (para nem falar dos animais cuja morte também foi provocada). Assim é que se deve interpretar o que a Dra. Sara Roy, de Harvard, descreve como deliberada destruição de longo prazo e o desmanche da economia da Faixa de Gaza, ações que, a menos que haja aumento considerável na ajuda oferecida pelo Alto Comissariado para Refugiados da ONU, provocarão fome em massa.

Impedir absolutamente que os palestinos promovam a própria sobrevivência e de suas famílias é também roubar-lhes a capacidade de funcionar por conta própria. Essa é uma das implicações de “drogas psicotrópicas para pacientes de doenças mentais, trauma e ansiedade” terem desaparecido dos estoques de medicamentos e de o hospital de Shifa; "... precisar com urgência de neurocirurgiões, anestesiologistas, cirurgiões plásticos e gerais e ortopedistas, além de 20 leitos para UTI, uma máquina digital C-ARM para cirurgias ortopédicas, três mesas de cirurgia e sistema de iluminação para todas as cinco salas cirúrgicas.

Essa é a ação – como dizem os Médicos sem Fronteiras, em conclamação para que Israel “pare de bombardear civis cercados em locais sem saída” – que já matou dois paramédicos e feriu dois outros, quando tentavam resgatar feridos de Ash Shuja’iyeh. Essa é a implicação de Israel ter destruído 22 instalações de atendimento a doentes e feridos, inclusive pelo menos um ataque direto contra o hospital al-Aqsa e a destruição do hospital o hospital de reabilitação el-Wafa, que foram atacados dias seguidos, várias vezes. Esses ataques a hospitais foram causa de uma carta aberta publicada num dos mais prestigiosos periódicos médicos do mundo, The Lancet, na qual 24 médicos e cientistas relatam ter ficado "... horrorizados ante o massacre de civis em ações militares em Gaza, disfarçadas como se fossem ações para punir terroristas, massacre que não poupou ninguém, inclusive pacientes em cadeiras de rodas, em camas hospitalares e em leitos de doentes em hospitais.

Ataques a instituições religiosas, traço que se vê em todos os projetos de ocupação com colonização, são outro modo de interferir na independência dos palestinos. 88 mesquitas de Gaza foram danificadas, o que equivale a dizer que foram danificados 88 pontos nos quais as comunidades gazenses reuniam-se e tinham contato entre elas.

O ataque de Israel contra a cultura palestina também deve ser compreendido como ato de violência contra os palestinos como povo. As culturas não são estáticas e vivem processo infinito de construção, desconstrução e reconstrução das próprias narrativas, de tal modo que os grupos se autocompreendem como específicos e são compreendidos como tais por membros de culturas diferentes.

A capacidade de um povo para contar suas próprias histórias sobre eles mesmos é aspecto chave de sua existência autônoma. Impedir a capacidade de os palestinos desenvolverem essas práticas e respectivas narrativas é mais um crime de Israel, quando destrói a casa do poeta Othman Hussein e a casa do artista Raed Issa; quando mata o cameraman Khaled Reyadh Hamad em Shujaiya e Hamdi Shihab, motorista da agência de notícias Media 24 de Gaza; quando ataca jornalistas falantes de árabe da al-Jazeera e da BBC; ou quando destrói o prédio onde funcionava a rádio Sawt al-Watan.

Minar a capacidade de um povo educar os seus jovens, treiná-los para trabalhar e ensiná-los a pensar criticamente é mais um meio para minar a possibilidade de existência independente. Por isso Israel destruiu completamente ou em parte, 133 escolas palestinas.

Ao mesmo tempo em que destrói instituições culturais e educacionais para impedir que os palestinos reproduzam-se culturalmente, Israel promove matança em massa de 229 crianças palestinas, com 1.949 outras crianças feridas; é o meio mais claro, e mais horrendo, de literalmente cortar a capacidade de os palestinos continuarem a existir como grupo. É o significado de Israel ter traumatizado 194 mil crianças, dependentes hoje de assistência psiquiátrica. É o significado também de Israel “racionar” o atendimento a “cerca de 45 mil grávidas na Faixa de Gaza, das quais 5 mil foram desalojadas”.

Israel impede também diretamente a vida dos palestinos quando destrói ou danifica gravemente as residências de 3.695 famílias palestinas, e cria condições nas quais se torna virtualmente impossível levar avante as atividades do dia a dia que dão forma à continuidades de outras gerações. Israel é causa hoje de 1,2 milhão de palestinos “não terem acesso, ou só terem acesso limitado a água e a serviços de esgoto, devido a danos no sistema de eletricidade ou falta de combustível para fazer funcionar geradores”.

That is what it means for the number of displaced people in UNRWA shelters to be “approaching 10% of the entire population of Gaza, with approximately 170,461 in 82 schools” that are “without adequate water sanitation and hygiene (WASH) infrastructure in place and without sufficient space.” That is what it means for all of Gaza’s 1.8 million people to be affected by the war.

Todos nós, cidadãos de estados que ajudam Israel a fazer o que faz, temos de forçar nossos governos a parar de colaborar com Israel. Enquanto não conseguirmos que parem, todos nós somos responsáveis por essa horrorosa violência lógica – que Israel “explica” todos os dias.

Nada não intencional

Nadia Abu El-Haj

LRB Blog


Já são mais de mil mortos palestinos, com mais de 5 mil feridos. Mais de 70% das baixas são civis, mais de 200, crianças. Famílias inteiras foram dizimadas. Meninos que jogavam bola numa praia foram mortos por barcos de guerra de Israel. Mais de 2 mil residências foram danificadas ou destruídas. Segundo um porta-voz do exército de Israel, 120 bombas de uma tonelada foram lançadas só contra os arredores de Shaja’yya. Mesmo assim, porque morreram três civis israelenses e 40 soldados, os israelenses e seus aliados nos EUA insistem em descrever a carnificina como guerra de autodefesa.

Eles também dizem que o exército israelense empreende a guerra com integridade moral. Não alveja civis. Nunca pretende matá-los. Que até alerta os habitantes de Gaza sobre futuros ataques, para que possam sair do caminho do perigo.

O massacre “não intencional” de civis não é ilegal nos termos da lei internacional. Se os civis não são deliberadamente “alvejados”, se são mortos na tentativa de alcançar um objetivo militar legítimo e o número de mortos é “proporcional” àquele objetivo, nesse caso as baixas civis são definidas como “dano colateral”. Contudo, como ensina Neta Crawford em Accountability for Killing: Moral Responsibility for Collateral Damage in America's Post-9/11 Wars, vale a pena pensar mais criticamente sobre a categoria das mortes não intencionais de civis. Muitas mortes de civis em guerra de guerrilha urbana podem ser “não intencionais”, mas também são previsíveis.

Gaza é um território densamente povoado cercado por terra, mar e ar, do qual não há saída possível. O exército israelense está fazendo chover bombas naquele território com poder de fogo suficiente para demolirem prédios de apartamentos de oito andares; para fazerem voar pelos ares enormes portões de ferro. Há drones que disparam contra áreas onde se acumulam dezenas de milhares de pessoas, e até contra abrigos; e, também, contra pontos em que se aglomeram pessoas que tentam fugir.

O exército de Israel está bombardeando áreas densamente povoadas e campos de refugiados usando tanques Merkava e a respectiva munição, e mísseis disparados de helicópteros Apache, inclusive em áreas que, antes, o exército israelense havia indicado como um local onde os civis poderiam escapar.

Não há lugar seguro em Gaza. Não há para onde fugir. E nada há de “não intencional”, muito menos há algo de moral, se o que se vê são civis mortos em circunstâncias nas quais se pode prever com 100% de probabilidade que serão mortos; se se ataca à bala de canhão um campo de refugiados superlotado ou uma área superlotada de qualquer cidade, ou rua superlotada, não há dúvida alguma de que haverá mortes de civis em massa. Nessas circunstâncias, a distinção entre assassinato premeditado e morte não intencional já perdeu completamente qualquer significado.

E se as mortes de civis ali não forem não intencionais? O estado israelense é hábil na arte de mostrar-se sempre alinhado com os interesses e valores proclamados dos EUA. Depois do 11/9, Ariel Sharon trabalhou muito para igualar a guerra dos EUA contra “terroristas muçulmanos” no Afeganistão e no Iraque, com a luta de Israel contra o povo palestino. Mas a guerra de Israel é absolutamente diferente da guerra dos EUA. Não porque os militares americanos sejam mais morais, ou mais sensíveis às leis da guerra, mas porque os EUA operam com uma fantasia ideológica diferente. Os militares dos EUA foram libertar iraquianos e afegãos de regimes dos quais esses povos queriam libertar-se – ou, pelo menos, acreditaram que queriam, quando lhes foi dito que queriam. Sempre seria preciso conquistar corações e mentes, mas os civis iraquianos e afegãos facilmente abraçariam a causa dos EUA e sua missão “libertadora”.

A guerra de Israel contra Gaza não é uma guerra que visa a conquistar corações e mentes palestinos. Israel não se apresenta como protetora ou libertadora dos habitantes de Gaza, de algum governo opressor. Em vez disso, as táticas do exército de Israel fazem lembrar a lógica dos bombardeios de britânicos e americanos contra cidades alemãs e japonesas durante a II Guerra Mundial: atirar para matar contra a população civil. Que sofram além do imaginável. Então, os próprios civis levantar-se-ão contra o governo deles.

Quando Israel ataca hospitais em Gaza, quando assassina famílias inteiras, quando reduz a pedaços irreconhecíveis quatro meninos que jogavam bola numa praia, todos esses são assassinatos premeditados e cuidadosamente planejados. A guerra é uma extensão do castigo coletivo aplicado aos palestinos da Cisjordânia depois que três jovens colonos israelenses foram sequestrados e mortos em junho. É proporcional? Comparem-se essa resposta e a reação israelense contra os três israelenses que queimaram vivo um adolescente palestino, como vingança pela morte dos três colonos. Imaginem o exército israelense pondo-se a bombardear as colônias nas quais vivessem os colonos assassinos, responsabilizando colônias israelenses inteiras, pelo crime dos três assassinos; imaginem o exército israelense a demolir colônias de israelenses, a tiros de canhão.

Ou imaginem se o Hamas tivesse acesso a foguetes melhores, que pudessem ser mais eficazmente dirigidos contra os seus alvos. Imaginem se o Hamas começasse a atacar exatamente os pontos onde estivessem os altos comandantes e governantes israelenses, as casas deles, que matassem mulher e filhos deles, sobrinhos, sobrinhas, junto com a família, também dos vizinhos deles, da casa ao lado, numa explosão só. Imaginem que essas mortes fossem apresentadas ao mundo como “danos colaterais” pelas quais o Hamas não teria qualquer responsabilidade legal ou moral.

O bombardeio, pelo exército de Israel, contra casas, escolas e hospitais, indiscriminadamente posto no chão, reduzido a escombros, matando sem parar o povo de Gaza, tem de ser chamado pelo que é: crime de guerra.

29 de julho de 2014

Punição coletiva em Gaza

Rashid Khalidi

The New Yorker

Créditos: Paolo Pellegrin/Magnum.

Tradução / Três dias após o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ter iniciado a atual guerra em Gaza, ele reuniu uma coletiva de imprensa em que disse, em hebraico, de acordo com o jornal Times de Israel: “Eu acredito que o povo israelense entenda agora o que eu sempre disse: que não pode haver uma situação, sob nenhum acordo, em que nós abandonemos o controle de segurança do território a oeste do Rio Jordão”.

Vale a pena ouvir cuidadosamente quando Netanyahu fala sobre o povo israelense. O que ocorre na Palestina hoje não diz respeito ao Hamas. Não diz respeito aos foguetes. Não diz respeito aos “escudos humanos” ou terrorismo ou túneis. Diz respeito ao controle permanente de Israel sobre as terras palestinas e sobre as vidas de palestinos. É disso que Natanyahu está falando, e é o que ele agora admite ser aquilo de que ele “sempre” falou: a inabalável política israelense, há décadas em vigor, de negar a autodeterminação, liberdade e soberania da Palestina.

O que Israel está fazendo em Gaza configura uma punição coletiva. É uma punição pela recusa de Gaza a ser um gueto dócil. É uma punição aos palestinos por ter a ousadia de unificarem-se, e do Hamas e outras facções, por responderem ao estado de sítio e suas provocações com resistência, armada ou não, depois de Israel ter reagido repetidamente com força destrutiva contra protestos desarmados. Apesar de anos de cessar-fogo e tréguas, o estado de sítio de Gaza nunca foi suspenso.

Como as próprias palavras de Netanyahu desmonstram, contudo, Israel não aceita que os palestinos não concordem com sua própria subordinação. Aceita apenas um “estado” palestino despido de todos os atributos de um verdadeiro estado: controle sobre sua própria segurança, fronteiras, limites marítimos, contiguidade territorial e, portanto, soberania. A farsa de vinte e três anos de “processo de paz” mostra que isto é tudo que Israel oferece, com a aprovação total de Washington. Sempre que palestinos resistiram ao seu patético destino (como qualquer outra nação o faria), Israel os puniu por sua insolência. Isso não é novidade.

Punir palestinos por existir tem uma longa história. Essa foi a política de Israel anterior ao Hamas, e seus rudimentares foguetes foram o bicho-papão do momento para Israel, antes de tornar Gaza uma presídio a céu aberto, saco de pancadas e laboratório de armas. Em 1948, Israel matou milhares de inocentes e aterrorizou outros milhares em nome da criação de um estado de maioria judaica numa terra com 65% de árabes. Em 1967, desalojou centenas de milhares de palestinos novamente, ocupando o território que até hoje controla, em grande medida, 47 anos depois.

Em 1982, numa cruzada para expulsar a Organização pela Liberação da Palestina (OLP) e extinguir o nacionalismo palestino, Israel invadiu o Líbano, matando 17 mil pessoas, a maioria civis. Desde os anos 80, com o levante da ocupação palestina, de forma geral atirando pedras e organizando greves gerais, Israel prendeu dezenas de milhares de palestinos: mais de 750.000 pessoas foram para prisões israelenses desde 1967, um número equivalente a 40% da população adulta hoje. Eles sairam da prisão com depoimentos de tortura, fundamentados por grupos de direitos humanos como o B’tselem. Durante a segunda intifada, que começou em 2000, Israel invadiu novamente a Cisjordânia (de onde de fato nunca saiu). A ocupação e colonização das terras palestinas continuou ininterruptamente através do “processo de paz” dos anos 90, e até os dias de hoje. E, ainda assim, nos Estados Unidos a discussão ignora esse contexto opressivo crucial, e está sempre limitada à “auto-defesa” de Israel e à suposta responsabilidade de palestinos por seu próprio sofrimento.

Nos últimos sete anos ou mais, Israel sitiou, atormentou e atacou regularmente a Faixa de Gaza. Os pretextos mudam: eles elegeram o Hamas; eles se recusam a ser dóceis; eles se recusam a reconhecer Israel; eles lançam foguetes; eles constroem túneis para contornar o estado de sítio etc. Mas cada pretexto é uma falácia, porque a verdade dos guetos – o que acontece quando você aprisiona 1,8 milhão de pessoas em 225 mil metros quadrados, quase um terço da área da cidade de Nova York, com controle de fronteiras, quase sem acesso ao mar para pescadores (apenas três de 20 quilômetros são permitidos, segundo o Acordo de Oslo), sem meio de entrada ou saída e com mísseis guiados sobre suas cabeças noite e dia – é que eles acabarão contra-atacando. Isso aconteceu em Soweto e Belfast e acontece em Gaza. Nós podemos desaprovar o Hamas e alguns de seus métodos, mas isso nao é o mesmo que aceitar a ideia de que palestinos devem concordar de maneira apática com a recusa do seu direito de existir como povo livre em sua terra ancestral.

Esta é precisamente a razão pela qual o apoio dos Estados Unidos à atual política de Israel é insano. A paz foi alcançada no norte da Irlanda e na África do Sul porque os Estados Unidos e o mundo acordaram para o fato de que eles teriam de colocar pressão no lado mais forte, cobrando responsabilidade e dando fim à impunidade. O norte da Irlanda e a África do Sul estão longe de serem exemplos perfeitos, mas vale a pena recordar que para conquistar um resultado justo foi necessário que os Estados Unidos lidassem com grupos como o Exército Republicano Irlandês (IRA, sigla original) e o Congresso Nacional Africano (CNA), que se envolveram com guerrilha e até mesmo terrorismo. Essa foi a única maneira de trilhar um caminho em direção à paz verdadeira e à reconciliação. O caso da Palestina não é fundamentalmente diferente.

Ao invés disso, os Estados Unidos estão fazendo pender a balança em favor do lado mais forte. Nessa visão de mundo surreal e inversa, o que parece é que os israelenses foram ocupados pelos palestinos — e não o contrário. Nesse universo distorcido, aqueles aprisionados nos presídios a céu aberto estão sitiando armas nucleares nas mãos de uma das mais sofisticadas forças militares do mundo.

Se pretendemos nos afastar dessa irrealidade, os EUA precisam mudar suas políticas ou abandonar o argumento de que são um “mediador honesto”. Se o governo estadunidense quer subsidiar e armar Israel e repetir os argumentos israelenses que ignoram a razão e o direito internacional, então que o façam. Mas não deveriam então reivindicar autoridade moral e falar solenemente sobre a paz. Com certeza, não deveriam insultar palestinos ao dizer que se preocupam com eles e suas crianças, que estão morrendo em Gaza hoje.

Rashid Khalidi é o professor Edward Said de Estudos Árabes na Universidade de Columbia e o autor, mais recentemente, de “Brokers of Deceit: How the U.S. Has Undermined Peace in the Middle East”.

24 de julho de 2014

Karl Kautsky como arquiteto da Revolução de Outubro

Lenin permaneceu fiel às diretrizes táticas de Karl Kautsky depois que este as abandonou.

Lars T. Lih

Jacobin

Karl Kautsky entre os delegados da Conferência de Amsterdã da Segunda Internacional, em agosto de 1904. Cornelius Leenheer / Wikimedia

Tradução / Nos últimos meses, Jacobin publicou uma troca de pontos de vista sobre o tema de Kautsky vs. Lenin. Muitos pontos interessantes foram apresentados, mas sobre o tema da Revolução de Outubro, somos apresentados a uma escolha difícil: ou Kautsky está certo e Lenin está errado, ou Lenin está certo e Kautsky está errado. Mas este é um debate estranho e inútil, porque - como os bolcheviques da geração de Lênin sabiam muito bem e a pesquisa atual reafirma - Kautsky e Lênin estavam de acordo sobre uma série de questões fundamentais. De fato, Kautsky serviu como mentor dos bolcheviques precisamente nas questões que os definiam e os dividia de seus rivais mencheviques.

Karl Kautsky incluso merece ser llamado el arquitecto de la victoria bolchevique en octubre. Por supuesto, no estoy diciendo que Kautsky fuera necesariamente el primero en definir estas ideas, o que los bolcheviques no llegasen a ellas de forma independiente. Pero Kautsky respaldó con su autoridad las ideas tácticas clave del bolchevismo, dando claridad y confianza a los rusos con un efecto difícil de sobreestimar. Estas ideas se plasmaron en escritos concretos, muy alabados por los bolcheviques y utilizados por ellos en sus polémicas contra los “oportunistas” mencheviques. Las mismas ideas condujeron a la victoria a su partido en octubre y en la subsiguiente guerra civil. Lenin y los bolcheviques nunca rechazaron estas ideas ni los escritos en los que Kautsky las formuló.

Comprender de forma correcta la relación entre Kautsky y los bolchevique no es sólo un ejercicio académico, un “entretenimiento” de viejos marxistas. Como muestra el debate actual, la victoria rusa y la bolchevique son distorsionadas esencialmente si se sigue la folclórica versión de que los bolcheviques tuvieron éxito porque confiaban en la “insurrección” en lugar del “electoralismo”, una caricatura perpetuada tanto por los partidarios de Octubre, como por su enemigos. Tampoco la Revolución de 1917 tuvo nada que ver con el argumento de Lenin de que “la democracia soviética” era superior a la “democracia parlamentaria”, encarnada en la Asamblea Constituyente que fue disuelta en enero de 1918 por el gobierno soviético (en ese momento, una coalición de bolcheviques y eseristas de izquierda). Durante 1917, “el poder soviético” no era entendido en estos términos, ni por los bolcheviques ni por las masas soviéticas.

Por lo tanto, si queremos apreciar la centralidad de los consejos tácticos de Kautsky que contribuyeron a la victoria de Octubre, primero tenemos que documentar los vínculos concretos entre Kautsky y los bolcheviques. A continuación, vamos a examinar lo que la revolución no fue y refutar la versión habitual que acabamos de mencionar. Después de analizar las dinámicas políticas reales de 1917, concluyo utilizando la propia versión de Lenin para presentar una visión mucho más adecuada de lo que los “leninistas” aprendieron de su victoria.

A relação amor / ódio entre Kautsky e Lenin

Empecé a apreciar la fuerza de la relación Kautsky-Lenin, hace casi dos décadas cuando escribí un largo estudio sobre el famosa libro de Lenin de 1902 ¿Qué hacer? (Lih, Lenin Rediscovered , 2006). El joven Ulianov (aún no Lenin) hace a Kautsky un extravagante elogio cuando comenta su famosa fórmula - “la socialdemocracia es la fusión del socialismo y del movimiento obrero” - que “reproduce las ideas fundamentales del Manifiesto Comunista.” (1) Esta observación es sólo un símbolo del inmenso impacto de Kautsky en la socialdemocracia rusa y los bolcheviques en particular. De hecho, su seminal libro de 1892, El programa de Erfurt , enseñó a los jóvenes socialdemócratas rusos como Lenin lo que significaba ser un socialdemócrata.

La prominencia de Kautsky en Lenin Rediscovered molestó a muchos críticos, de otra forma favorables al libro. Si, (argumentaron), el joven Lenin tenía muchas cosas elogiosas que decir del prestigioso divulgador Kautsky. Pero, ¿no se da cuenta Lih que en 1914, cuando Kautsky no llamó a una respuesta revolucionaria contra la declaración de guerra, cayó la venda de los ojos de Lenin, se replanteó el marxismo, y denunció el “kautskismo” en todos sus aspectos?

Pero, ¿rechazó Lenin en realidad el kautskismo, si con este término nos referimos a las ideas que él, Lenin, había elogiado anteriormente con tanto entusiasmo? ¿cual era, de verdad, la opinión de Lenin después de 1914 sobre el Kautsky anterior a ese año? Afortunadamente, los académicos soviéticos crearon una herramienta de investigación que me ha permitido responder a esta pregunta de manera concluyente: unas exhaustivas referencias bibliográficas de cualquier producción literaria mencionada por Lenin de alguna manera. Los censores soviéticos no permitían añadir ningún comentario realmente útil en el contexto de las obras de Lenin, por lo que los estudiosos lo compensaron proporcionando en la quinta edición de las obras completas de Lenin, publicada en la década de 1960, estas sorprendentes bibliografías.

Lo que encontré me sorprendió al comienzo. En primer lugar, la gran cantidad de referencias - no sólo al Kautsky post-1914, que se convirtió en un crítico cada vez más acerbo del bolchevismo - sino más bien a viejas publicaciones de Kautsky de antes de la guerra. Los comentarios de Lenin comienzan inmediatamente después del estallido de la guerra en 1914 y continúan hasta el final (el último artículo de Lenin contiene uno). Es evidente que Lenin tenía una fijación con Kautsky, incluso cuando Kautsky ya se había convertido en un autor de otra época en Occidente.

Las referencias también son notables por la amplia gama de escritos anteriores a 1914 de Kautsky que Lenin se sintió obligado a comentar. De hecho, Lenin respondió una vez a un cuestionario del partido afirmando que había leído casi toda la obra de Kautsky. Y, por último, estas referencias son sorprendentes, ya que son muy positivas. Tomadas en conjunto, constituyen un fuerte respaldo al “Kautsky-cuando-todavia-era-marxista” (expresión de Lenin). He reunido una especie de base de datos de estas referencias, que espero poner en línea pronto. (2)

Pero si la venda - para disgusto de muchos socialistas actuales - nunca cayó de los ojos de Lenin, ¿por qué atacó a Kautsky tan implacablemente a partir de 1914? Precisamente porque vio en Kautsky un renegado, es decir, alguien que renunció o se negó a actuar siguiendo sus propios puntos de vista correctos. Este término aparece de forma destacada en el título de un libro, que fue famoso, que Lenin escribió a finales de 1918 cuando se recuperaba de un intento de asesinato: La revolución proletaria y el renegado Kautsky. La leyenda cuenta que los hijos de los comunistas de los años treinta y cuarenta crecieron pensando que “renegado” era el primer nombre de Kautsky - mostrando así una mejor comprensión de la actitud de Lenin que muchos intelectuales marxistas actuales.

La palabra traducida como “kautskismo” en las ediciones de la era soviética de las obras de Lenin es kautskianstvo, es decir, no un ismo, sino un tipo de comportamiento político que puede resumirse como “mucho cuento y pocos hechos”. En este sentido, Lenin arroja el término contra una amplia gama de oponentes que no tenían nada que ver con las ideas de Kautsky, por ejemplo, antes de 1917 contra Lev Trotski. En el caso de Kautsky, la acusación de kautskianstvo era una afirmación del kautskismo, es decir, de las ideas expresadas en los escritos anteriores a la guerra de Kautsky que tanto habían interesado a Lenin en su día.

La relación personal de Lenin con Kautsky no es la única explicación. Kautsky fue un mentor esencial para los bolcheviques en su conjunto. El lugarteniente de toda la vida de Lenin, Lev Kamenev, al iniciar la tarea de preparar la primera edición de las obras completas de Lenin, lamentó las dificultades a las que se enfrentó Lenin antes de 1917 para hacer llegar sus ideas a los trabajadores rusos: los periódicos clandestinos de pequeña circulación y corta vida y el lenguaje censurado a lo “Esopo”, la necesidad de seudónimos engañosos, los libros secuestrados en las imprentas por las autoridades. Por el contrario, los grupos de lectura bolcheviques tenían un suministro constante de traducciones legales e ilegales de las obras de Kautsky al ruso (algunas realizadas por el propio Lenin). He leído bastantes listas de lectura de tales grupos para afirmar que Kautsky era, con mucho, el autor más importante, más que cualquiersocialdemócrata ruso. En El estado y la revolución, Lenin mismo lo señala:

“Sin lugar a dudas, se han traducido un número incomparablemente mayor de obras de Kautsky al ruso que a cualquier otro idioma. No sin razón los socialdemócratas alemanes dicen a veces en broma que Kautsky es más leído en Rusia que en Alemania (podemos decir, entre paréntesis, que hay un profundo significado histórico en esta broma que sus autores no sospechan, porque los trabajadores rusos, al pedir en 1905 un número inusualmente grande y sin precedentes de los mejores trabajos de la mejor literatura socialdemócrata y ediciones de estas obras en cantidades desconocidas en otros países, trasplantaron rápidamente, por así decirlo, la enorme experiencia del país vecino más avanzado a la joven tierra de nuestro movimiento proletario)”. (3)

Para convencerse de la centralidad de Kautsky, basta coger una copia del manual de bolchevismo de 1919 de Bujarin y Preobrazhensky, El ABC del Comunismo, y examinar las listas de lecturas recomendadas a los nuevos reclutas interesados del bolchevismo. Los escritos anteriores a la revolución de Lenin son principalmente acerca de estadísticas agrícolas (¿Qué hacer? no está incluido), y son ampliamente superados en número por materiales de Kautsky, con escritos que abarcan una amplia gama de temas esenciales, desde las doctrinas económicas de Karl Marx al antisemitismo (incluyendo El camino hacia el poder, que discutiremos más adelante).

O conselho tático de Kautsky para revolução que se aproximava

Me sigue sorprendiendo la lista de temas cruciales sobre los que Kautsky fue mentor de los bolchevique. Pero me concentraré en dos artículos de consejos tácticos que fueron, sin duda, cruciales para la preparación de la victoria de Octubre y más allá. Primero abordaré los escritos específicos en los que Kautsky expone estas ideas, así como la inmediata reacción bolchevique a ellas.

El primer consejo crucial de Kautsky es lo que llamo - con el fin de distinguirla de tantos otros significados de la palabra - la “hegemonía bolchevique”. De acuerdo con los propios bolcheviques, si había una palabra que resumía específicamente la táctica bolchevique, esa era hegemonía. En 1906, Lenin resumió los “principios fundamentales de la táctica bolchevique” de esta manera: “Una revolución burguesa, llevada a cabo por el proletariado y el campesinado a pesar de la inestabilidad de la burguesía”. A continuación, afirma que Kautsky había proporcionado “una reivindicación brillante ... la esencia de esta táctica [está] totalmente confirmada por Kautsky ... el análisis de Kautsky nos satisface por completo”.

Lenin se refería a un artículo titulado “Las fuerzas motrices y las perspectivas de la revolución rusa". El título de Kautsky planteaba las siguientes preguntas: ¿Qué fuerzas de clase en la sociedad rusa eran capaces de impulsar la próxima revolución “hasta el final”, es decir, hasta donde podía llegar? ¿Qué esperanzas máximas podía albergar esa revolución en las condiciones sociales existentes? Kautsky había respondido a las dos preguntas señalando al campesinado ruso: por una parte, sus necesidades insatisfechas le hacían un aliado esencial del proletariado socialista, y por otra, ese aliado era una barrera para la transformación socialista plena.

Los bolcheviques quedaron fascinados con este artículo. Lenin organizó su traducción y escribió comentarios detallados. Abajo, en el Cáucaso, el joven bolchevique Iosif Stalin hizo sus propios comentarios, usando argumentos de Kautsky, para exponer los errores mencheviques. En efecto, el artículo 1906 de Kautsky puede ser llamado la hoja de ruta del bolchevismo.

Si había alguien más entusiasmado con este artículo que los bolcheviques, era Lev Trotski. En relación con el mismo afirmó que cualquiera que hubiera leído trabajos como su Balance y perspectivas “verá que no tengo ninguna razón para rechazar incluso una sola de las posiciones formuladas en el artículo que he traducido de Kautsky, porque el desarrollo de nuestra pensamiento en estos dos artículos es idéntico”. Y, hay que añadir, Trotsky era aún más insistente que los bolcheviques en que los campesinos rusos eran una barrera insuperable para la transformación socialista. Sostenía que inmediatamente después de la revolución democrática, comenzarían a surgir conflictos entre los trabajadores socialistas y la mayoría campesina, y que estos conflictos conducirían probablemente a un enfrentamiento armado. A menos que triunfase la revolución en Europa, este choque terminaría con la derrota del proletariado.

¡Ajá!, algunos dirán, la hegemonía bolchevique estaba ligada a la revolución democrático burguesa, y por lo tanto era irrelevante para la revolución socialista proletaria de Octubre. Lo que esta objeción minusvalora es que para todas las partes en la discusión - tanto para Trotsky, como para Lenin y Kautsky - una revolución plenamente socialista era incompatible con una alianza con un campesinado que en sí no estaba consciente ni voluntariamente a favor del socialismo. Y, sin embargo, tanto antes como después de Octubre, los bolcheviques se comprometieron a respetar los intereses básicos de los campesinos. Durante la guerra civil, los bolcheviques impusieron pesadas cargas sobre el campesinado (aunque no más que a los trabajadores) en la búsqueda de intereses comunes tal y como los percibían los campesinos, a saber, evitar la victoria de la contrarrevolución de los terratenientes / capitalistas. Los dirigentes bolcheviques hicieron hincapié en muchas ocasiones que la victoria en 1917, la victoria en la guerra civil, y la victoria (esperada) de la Nueva Política Económica (NEP) se basaba en la dirección proletaria de los campesinos en la lucha por intereses comunes - es decir, la hegemonía bolchevique.

En otras palabras, después de Octubre los bolcheviques se sorprendieron a sí mismos al decidir que la revolución socialista era compatible con la dirección proletaria de los campesinos. Así, hubo una continuidad en la política real de hegemonía bolchevique y discontinuidad en los supuestos ideológicos acerca de la revolución socialista.

En los artículos escritos en 1909, Kautsky reafirmó la pertinencia de su análisis - y, como siempre, sus comentarios fueron muy circulados por los bolcheviques rusos:

“El proletariado industrial de Rusia es el portador de la revolución [democrática] en Rusia, y precisamente por eso no puede contar con el apoyo de la burguesía para la revolución. Sólo en el campesinado puede encontrar el proletariado ruso una clase cuyos intereses económicos no se contradicen con los propios y que no puede alcanzar una posición satisfactoria en la sociedad sin una revolución. ... En la actualidad el propio gobierno zarista [debido a las reformas de Stolypin] está trabajando energicamente en la ampliación de las perspectivas del campesino ruso más allá de los estrechos límites de su pueblo natal ... Y esto, en última instancia conducirá a una intensificación de su insatisfacción”.

Después de la revolución de Octubre, tanto Lenin como Trotsky respaldaron el argumento del artículo de 1906 de Kautsky y acusaron a Kautsky de ser él quién lo había abandonado. Como Lenin escribió en El renegado Kautsky :

“Pero ahora Kautsky no dice una sola palabra acerca de las controversias de aquella época (¡por temor a que le achaquen sus propias declaraciones!). Y, por lo tanto, hace que sea totalmente imposible para el lector alemán entender la esencia del asunto. El señor Kautsky no podía decir a los obreros alemanes en 1918 que en 1905 había estado a favor de una alianza de los obreros con los campesinos y no con la burguesía liberal, en que condiciones había defendido esta alianza, y qué programa había esbozado por ello”. (4)

La hegemonía bolchevique no fue el único consejo táctico de Kautsky que resultó crucial en 1917. En 1909, Kautsky publicó un pequeño libro titulado El camino hacia el poder. Los bolcheviques reaccionaron con el habitual entusiasmo. En una reseña entusiasta del libro, el lugarteniente más cercano de Lenin, Grigori Zinoviev, sacó a relucir la amplia gama de temas del libro, así como su importancia como arma de los “ortodoxos” contra los “revisionistas” - o, en Rusia, de los bolcheviques contra los mencheviques:

“El trabajo de Kautsky, además de su gran importancia para la política en general, tiene también, por supuesto, grandes implicaciones específicas para la socialdemocracia. Su libro resume los acontecimientos de los últimos cinco años: la revolución en Rusia, el despertar de Oriente, el reagrupamiento de las fuerzas sociales en Alemania, los éxitos del proletariado en Austria, la agudización de la lucha de clases en Inglaterra, etc. ... Esta nueva obra de Kautsky ya ha desencadenado una batalla entre ortodoxos y revisionistas, y esta batalla todavía se libra, lo que nos proporciona la oportunidad una vez más de juzgar las posiciones respectivas de los dos campos en relación a las cuestiones vitales del día”.

Sólo unos pocos años más tarde, esta publicación de 1909 sería vista como el canto del cisne del bueno de “Kautsky-cuando-aún-era-marxista”. A principios de 1915, en los primeros ataques de indignación contra la traición de Kautsky, Lenin escribió:

“Fue nada menos que el propio Kautsky, en toda una serie de artículos y en su libro El camino hacia el poder (que se publico en 1909), quien describió con el máximo detalle posible los rasgos básicos de la tercera época que se aproxima y señaló su radical diferencia con la segunda época (anterior) ... Pero Kautsky arroja a las llamas lo que una vez adoró y está cambiando de bando en la más increíble, la más indecente, y más descarada de las maneras”. (5)

De particular interés para los bolcheviques fue la condena de Kautsky de cualquier tipo de “pactos” políticos (soglasheniia) con los reformadores liberales o demócratas. Doy la traducción rusa de “pacto”, ya que en 1917 el rechazo del “pactismo” (soglashatelstvo) se convirtió en el eje del mensaje bolchevique, como veremos más adelante. Zinoviev (sin duda, hablando en nombre de Lenin en este caso) citó a Kautsky como una autoridad en este tema:

“La cuestión de la relación del proletariado con la burguesía (tanto liberal como democrática), de posibles bloques y pactos [soglasheniia] con ella, del crecimiento o embotamiento de las contradicciones entre ésta y el proletariado, y así sucesivamente, ha sido desde hace mucho tiempo el punto central de la controversia entre marxistas y revisionistas en todos los países ... la socialdemocracia, en opinión de Kautsky, debe llevar a cabo una purga en sus propias filas, debe liberarse de los elementos pequeño burgueses, debe perfilarse más claramente que nunca contra la política de bloques y los pactos con la burguesía”.

El argumento de Kautsky contra el pactismo descansaba en su percepción de que el mundo estaba entrando en una nueva era de agitación revolucionaria. Sostuvo que en esta nueva era de revoluciones, el Partido Socialdemócrata Alemán (SPD) no debía comprometerse, o ablandarse ante el imperialismo o incluso participar en un gobierno de coalición, sino que debía permanecer fiel a su herencia de oposición irreconciliable. En palabras de Kautsky:

“Cuanto más imperturbable, consistente, e irreconciliable se mantenga el Partido Socialdemócrata, tanto más fácilmente sacará ventaja a sus oponentes. Exigir que el Partido Socialdemócrata participe en una política de coalición o alianza ahora ... en el preciso momento en que esos partidos se han prostituido y totalmente expuesto; querer que el Partido se una a ellos para caer en esa misma prostitución, es exigir que cometa un suicidio moral”.

Si el partido se mantiene sin concesiones en defensa de una “gran idea, de un gran objetivo”, será capaz de “desencadenar toda la energía y la dedicación” que se encuentran bajo la superficie en períodos no revolucionarios:

“Cuando los tiempos de efervescencia revolucionaria llegan, el ritmo del progreso se vuelve rápido de golpe. Es increíble la rapidez con que las masas de la población aprenden en esos momentos y logran claridad acerca de sus intereses de clase. No sólo su valor y su deseo de luchar, sino también su interés político se estimula en la forma más poderosa por la conciencia de que ha llegado el momento de que se levante por sus propios esfuerzos, saliendo de la noche más oscura a la gloria luminosa del sol. Incluso los más perezosos se convierten en diligentes; incluso los más cobardes, en audaces; incluso los más limitados intelectualmente adquieren una visión mental más amplia. En esos momentos, la educación política de las masas se lleva a cabo en años, cuando de otro modo requeriría generaciones”.

¡Suena a 1917!

En particular, la táctica de antipactismo radical dió a los revolucionarios socialdemócratas la oportunidad de ganar a la vacilante “pequeña burguesía” (en Rusia, este término se refiere principalmente a la mayoría campesina). El partido, Kautsky argumentó, no debe descartar al campesino o a los miembros de las clases bajas urbanas debido a su actual hostilidad, ya que el estallido de la guerra o alguna otra catástrofe pueden enfurecerlos. “Un día, bajo la presión intolerable de los impuestos y sacudido por el repentino colapso moral de los poderosos, podría oscilar hacia nosotros en masa y quizás con ello barrer a nuestros oponentes y decidir la lucha a nuestro favor”.

La mención a la “presente hostilidad” se refiere a la situación en Alemania, pero, como hemos visto, Kautsky instó a los socialdemócratas rusos a ver en el campesinado ruso un aliado revolucionario. En 1915, cara a la inminente revolución rusa, Lenin fue rápido a la hora de establecer la conexión entre los dos elementos de los consejos tácticos de Kautsky:

“A la pregunta de si es posible que el proletariado asuma el liderazgo [rukovodstvo] en la revolución burguesa rusa, nuestra respuesta es: sí, es posible, si la pequeña burguesía oscila a la izquierda en el momento decisivo; empujada hacia la izquierda no sólo por nuestra propaganda, sino por una serie de factores objetivos, económicos, financieros (la carga de la guerra), militares, políticos, entre otros”. (6)

Así, los bolcheviques llegaron a 1917 con dos consejos de Kautsky en su haber: alistar al campesinado como un aliado revolucionario, y no desviarse del anti-pactismo radical. Con el fin de ver cómo se aplicaron estos consejos en 1917, primero tenemos que prescindir de un par de malentendidos interesados sobre la Revolución de Octubre.

O que não foi a revolução de 1917

En su artículo en Jacobin, Eric Blanc afirma lo siguiente: “Siguiendo los argumentos de Lenin de su panfleto El estado y la revolución de 1917, los leninistas durante décadas han articulado su estrategia a partir de la necesidad de una insurrección para derrocar todo el estado parlamentario y colocar todo el poder en manos de los consejos de trabajadores”. Esta observación reúne no uno, sino dos conceptos erróneos arraigados acerca de 1917: en primer lugar, que el choque entre dos tipos de democracia - parlamentaria frente a soviética - que se encuentran en las páginas de El estado y la revolución, tuvo algo que ver con la victoria de Octubre o la política en aquel año revolucionario. (El estado y la revolución se redactó en 1917, pero sólo se publicó en 1918 y fue irrelevante para los acontecimientos del año anterior). En segundo lugar, que los bolcheviques tomaron el poder por medio de una “insurrección”, “levantamiento armado”, o lo que sea. Veámoslo.

“Todo el poder a los Soviets!”: este fue el grito de guerra de 1917. Pero “sóviets” aquí expresa simplemente la forma institucional del poder de clase. “El poder soviético” significaba el vlast (autoridad soberana o “poder”) de los trabajadores y campesinos. A nadie le preocupaba en particular si los soviets eran más democráticos que la democracia parlamentaria - estas preocupaciones se limitaban a Lenin, e incluso les restó importancia en 1917 (compárese El estado y la revolución con los escritos publicados en 1917, como ¿Mantendrán los bolcheviques el Poder del Estado [vlast]?). El mensaje bolchevique se basaba más bien en el anti-pactismo: los obreros y los campesinos no pueden satisfacer sus necesidades básicas pactando con la élite (después abordaremos en detalle la lucha contra el pactismo en 1917).

De ninguna manera se puede decir que el mensaje bolchevique se basaba en el rechazo de la Asamblea Constituyente como una forma de “democracia parlamentaria”: por el contrario, la defensa de la Asamblea Constituyente fue una parte integral de la agitación bolchevique a lo largo de 1917. Esto fue especialmente cierto en octubre, cuando las acusaciones bolcheviques de que el gobierno provisional sabotearía las elecciones para la Asamblea alcanzaron su punto álgido. De hecho, el temor a ese sabotaje era un argumento central para una inmediata toma del poder. Después de que la Constituyente fuera disuelta, Trotsky afirmó que “cuando argumentamos [en octubre] que el camino hacia la Asamblea Constituyente pasaba ... a través de la toma del poder por los soviéts, éramos absolutamente sinceros”. (No es de extrañar que esta declaración de Trotsky se enfrente a la risa desdeñosa de algunos historiadores académicos. Lo realmente notable, sin embargo, es que muchos declarados admiradores de Trotsky también asumen automáticamente que Trotsky estaba mintiendo por razones políticas y que yo soy un ingenuo por creer sus palabras).

Tampoco, fueron los presuntos defectos de la democracia parlamentaria prominentes entre las motivaciones públicas para disolver la Asamblea Constituyente en enero. Testigo: Trotsky, que da una serie de razones pertinentes para disolverla en aquel momento, pero no menciona ninguna contraposición entre un gobierno soviético y el “parlamentarismo burgués.” Testigos: los Socialistas Revolucionarios de izquierda, que cooperaron en la disolución por sus propias razones.

En octubre, cuando el Segundo Congreso de los Soviets votó a favor del poder soviético, un comité dominado por los bolcheviques arrestó a miembros del Gobierno provisional y tomó otras medidas para prevenir el derrocamiento armado del nuevo gobierno. Por una serie de razones, tanto historiadores académicos como activistas coinciden a la hora de exagerar la importancia de una “insurrección” violenta en el camino al poder bolchevique. En esencia, los académicos quieren deslegitimar a los bolcheviques en su conjunto, mientras que la tradición trotskista sólo quiere deslegitimar a la mayor parte de la dirección bolchevique.

Sin embargo, cualquier contraposición, ya sea para justificar o condenar, entre la toma del poder bolchevique y el “electoralismo” es absurda. Los bolcheviques triunfaron en 1917 ganando las elecciones - consiguiendo una mayoría en órganos soviéticos clave como resultado de una ardua campaña - campaña que se basaba en un mensaje (anti-pactismo) que fue asumido por el pueblo. De hecho, el gobierno soviético surgido de Octubre fue el único gobierno en 1917 que tenía alguna legitimidad electoral real.

Los bolcheviques ganaron el apoyo de la mayoría para el poder soviético (en otras palabras, para el anti-pactismo) en los sóviets más importantes a principios de septiembre. Después de eso, era sólo una cuestión de tiempo, institucionalizarlo. Por supuesto, este proceso fue dramático y no hay duda de que los bolcheviques pudieron meter la pata. Pero, en esencia lo que ocurrió fue que el Soviet de Petrogrado creó oficialmente un organismo para proteger la revolución y este organismo lo hizo llevando a cabo algunas detenciones con el fin de proteger el Segundo Congreso. No le cabía la menor duda a nadie que el Segundo Congreso declararía el poder soviético - de manera que el órgano soviético nacional, el pactista TsIK, era ya un cadáver andante.

A lo largo de 1917, la última palabra en la composición del gobierno siempre la había tenido el sóviet, por la simple pero importante razón de que tenía la lealtad en última instancia de los obreros y soldados de Petrogrado (es decir, “fuerza real”). De este modo, la Revolución de febrero y la Revolución de octubre dieron lugar a un gobierno esencialmente de la misma manera: la autoridad soviética relevante dictaminó, y eso fue todo. En febrero, efectivamente se había producido una verdadera “insurrección” desde abajo, pero en octubre el llamado levantamiento fue una acción policial puesta en marcha por autoridades legalmente constituidas.

Un efecto perjudicial del enfoque obsesivo (incluso podría llamarlo fetichista) sobre la “insurrección” de Octubre es ocultar el verdadero problema del gobierno bolchevique, que no fue ni el rechazo de las formas parlamentarias ni el uso de la “insurrección”. Fue, simple y llanamente, la destrucción rápida y completa de la libertad política. Los bolcheviques empezaron prohibiendo partidos políticos y periódicos (los kadetes fueron ilegalizados en diciembre de 1917) y finalmente acabaron con toda política independiente y vida civil de la sociedad. Lo que ocurrió en el momento en que se aplicó la NEP en 1921 y la asfixia de la sociedad civil independiente se mantuvo prácticamente hasta la perestroika.

Sin embargo, se debe subrayar todo lo que se pueda que en ningún momento antes de Octubre Lenin o los bolcheviques hablaron de “insurrección” como un método opuesto a un gobierno de la mayoría, ni podemos encontrar ningún indicio de un proyecto para destruir la libertad política. Todo lo contrario. Los bolcheviques se habían perfilado desde el comienzo como adalides de la libertad política en Rusia, y de hecho la socialdemocracia rusa fue clave a la hora de instaurar en Rusia las libertades políticas que tuvo en la década anterior a la revolución. Pero en última instancia, la importancia de este hecho se desvanece ante las realidades del sistema creado durante la guerra civil.

Por buenas o malo razones, Lenin y los bolcheviques se perfilaron después de Octubre como los destructores de la libertad política en Rusia. La gente en Europa occidental tenían la sensación de que los comunistas querían usar la libertad política “burguesa” para llegar al poder, y luego eliminarla para todos los demás. ¿Les dieron los comunistas alguna razón para pensar que estaban equivocados?

O que foi a revolução de 1917

A raíz de la revolución de febrero, el partido bolchevique en su conjunto emergió de la clandestinidad con los consejos tácticos de Kautsky en su ADN político: alistar al campesinado como un aliado revolucionario, y mantener a toda costa un anti-pactismo radical. Desde el comienzo de la revolución, los bolcheviques siguieron estos consejos y, como resultado, fueron percibidos como distintos por todos los actores del escenario político. (Muchos quieren creer que los bolcheviques no eran anti-pactistas hasta que Lenin presentó sus Tesis de Abril a su regreso a Rusia. He documentado las inconsistencias de este punto de vista en otros lugares, pero el asunto no tiene relación con la presente discusión. A estos efectos, si se quiere se puede remontar el anti-pactismo bolchevique a comienzos de abril).

Un hecho crucial, al que no se ha prestado suficiente atención, es que el Soviet de Petrogrado no era un “sóviet de delegados obreros” (como fue el caso en 1905), sino un “sóviet de delegados obreros y soldados”. Este hecho cambió todo el sentido político del sóviet y por tanto del “poder soviético”. En un primer momento, la preponderancia de los soldados causó serios problemas a los bolcheviques y en parte explica su aislamiento inicial en el Sóviet de Petrogrado. Pero más tarde, comenzaron a ver la participación de los soldados en el sóviet como una gran oportunidad: si ganaban a los soldados para la causa de los bolcheviques (por difícil que fuera) le habían ganado la partida al gobierno provisional. Que fue lo que paso.

Por esta razón, el comentario de Eric Blanc de que los leninistas querían “poner todo el poder en manos de los consejos de trabajadores” supone una grave distorsión de la dinámica política de 1917. Los bolcheviques, entonces y más tarde, interpretaron la presencia de los soldados en los sóviets como una vía hacia el campesinado - es decir, como una puerta para aplicar la táctica bolchevique de hegemonía. Y también desde el principio, los bolcheviques prestaron atención al campesinado en general. Un comentario del activista bolchevique Viktor Noguin a finales de marzo prevé de manera sucinta una de las principales dinámicas políticas de los siguientes meses:

“Esta resolución [de los bolcheviques de Moscú] propone la incautación organizada de las tierras sin esperar a la Asamblea Constituyente. Los eseritas no se deciden a proponer esa consigna, ya que prefieren esperar a la Asamblea Constituyente. Cuando se enteraron de la decisión de Moscú [de los bolcheviques], los eseritas dijeron, “¡malo para nosotros! Ahora los campesinos van a elegir a los bolcheviques.” (7)

Por lo tanto, los bolcheviques rápidamente se identificaron con el anti-pactismo. En una conferencia de los soviets de toda Rusia a finales de marzo - es decir, antes del regreso de Lenin y sus Tesis de Abril - la línea roja entre pactistas y anti-pactistas estaba claramente trazada, con el menchevique Irakli Tsereteli como portavoz de los pactistas y el bolchevique Lev Kámenev como portavoz de los anti-pactistas. Nadie se engañaba sobre la realidad de este choque. Los pactistas apostaban su futuro político a una relación de trabajo viable con las élites sociales representadas en el Gobierno provisional, mientras que los anti-pactistas apostaban su futuro político a una rápida división entre el Gobierno provisional y las masas soviéticas.

¿Cuál fue el núcleo del mensaje de los bolcheviques dirigido a las masas soviéticas para convencerlas de la necesidad de que todo el poder residiera en los soviets? No fue: los sóviets son un tipo superior de democracia, ¡abajo con la democracia parlamentaria! No fue: ¡necesitamos una revolución socialista en Rusia! Como se señaló antes, los bolcheviques habían asumido previamente que la “revolución socialista” era incompatible con la alianza con el campesinado. A partir de 1917, cambiaron de opinión - no sobre la alianza con el campesinado, sino sobre el significado de la “revolución socialista”. El mensaje bolchevique en 1917 no fue tampoco: ¡tierra, paz, y pan! ¿Qué partido político estaba en contra de la tierra, la paz, y el pan?

La cuestión era cómo alcanzar las metas que todo el mundo aceptaba como válidas. Y aquí los bolcheviques tenían una respuesta clara aunque esencialmente negativa: no podemos alcanzar estos objetivos mediante ningún tipo de “pactos”, doble poder, coaliciones o acuerdos con las élites. Los socialistas que insistan en estos acuerdos nos llevan al desastre. Necesitamos un vlast (poder del Estado) obrero/campesino, tal como se expresa en los sóviets, que excluye toda representación de la élite.

Así, los bolcheviques defendieron un mensaje basado directamente en los consejos de Kautsky sobre la hegemonía y el anti-pactismo, consejos antiguos que eran familiares a todo el partido. Por supuesto, existían facciones anti-pactistas en el seno de los otros partidos socialistas - pero siguieron siendo facciones de oposición hasta la misma víspera de Octubre, cuando la facción anti-pactista del partido Socialista Revolucionario se escindió y fundó el Partido SR de Izquierdas, que rápidamente se unió a los bolcheviques en un gobierno de coalición anti-pactista. Hasta Octubre, por lo tanto, los bolcheviques fueron el único partido unido en torno al anti-pactismo. Este hecho determinó la dinámica del sistema de partidos en 1917.

El pleno poder soviético solo fue posible cuando los dos aspectos de los consejos de Kautsky coincidieron, es decir, cuando los soldados y la mayoría campesina en el país giró hacia el anti-pactismo. Al menos, ese era el punto de vista de Lenin, como lo expresó en febrero de 1918. (En la cita siguiente de “Los oportunistas de Octubre” se refiere a Zinoviev y Kamenev. No se deben sacar conclusiones apresuradas del título, porque Lenin está simplemente adoptando el término utilizado por sus oponentes de entonces. Lo que puede legítimamente concluirse de la lectura del comentario de Lenin es un desafío al consenso trotskista / estalinista de que Zinoviev y Kamenev eran enemigos de la revolución y opuestos en principio al poder soviético. Desde el punto de vista de Lenin, el conflicto surgió de lecturas diferentes de la correlación de fuerzas s de dirigentes que luchaban por un objetivo idéntico) En palabras de Lenin:

“Tal y como estaban las cosas en Octubre, hicimos un balance preciso de la correlación de fuerzas de masas. No sólo creíamos, sino que sabíamos con certeza, a partir de la experiencia de las elecciones masivas a los Soviets, que en septiembre y a principios de octubre la inmensa mayoría de los obreros y soldados ya habían pasado de nuestro lado. Sabíamos, aunque sólo fuera por la votación en la Conferencia Democrática, que el apoyo a la coalición [de los socialistas moderados y los políticos “burgueses”] también se había derrumbado entre el campesinado, y eso significaba que nuestra causa ya había triunfado. 
Estas eran las condiciones objetivas para la insurrección de Octubre: 
(1) ya no pendía ninguna amenaza sobre las cabezas de los soldados, porque había sido derrocada en febrero de 1917 (Alemania todavía no había alcanzado “su” Febrero); 
(2) los soldados, como los trabajadores, ya habían experimentado lo suficiente la coalición y tras meditar detenidamente y de corazón le retiraron su apoyo. 
Esto, y sólo esto, determinó que la consigna “¡a la insurrección!” en Octubre fuera correcta. (La consigna hubiera sido incorrecta en julio, cuando no la planteamos). 
El error de los oportunistas de Octubre no fue que se “preocupaban demasiado” por las condiciones objetivas (sólo los niños podían pensar así), sino que evaluaron de forma incorrecta los hechos: se centraron en los detalles sin ver lo principal: que los sóviets habían pasado del pactismo [soglashatelstvo] a apoyarnos a nosotros”.

Tanto “leninistas” como anti-leninistas deben tener muy en cuenta lo que el propio Lenin dice aquí: sólo el apoyo de una “abrumadora mayoría” de la masa trabajadora-soldado-campesina soviética hizo políticamente correcta la acción armada en Octubre. Este apoyo se puede medir por el éxito electoral. El rechazo del pactismo es equivalente al apoyo a todo el poder a los sóviets. Estos hechos políticos establecidos por Lenin son abrumadoramente más importantes que si la “insurrección” tuvo lugar el día antes o el día después del Segundo Congreso de los Sóviets.

Lições da história, perguntas da história

Por desgracia, la historia no siempre proporciona lecciones útiles para aplicar hoy. A lo sumo, nos traslada algunas preguntas inquietantes. He aquí algunas que surgen del episodio que acabamos de considerar.

Para Rusia en 1917, el consejo de Kautsky sobre el anti-pactismo valía políticamente su peso en oro, y permitió a los bolcheviques tomar el poder. En Europa Occidental, el consejo de Kautsky era políticamente plomo, e hizo imposible a los posibles bolcheviques alcanzar el poder.

En mi opinión, ni Lenin ni Kautsky realmente entendieron por qué las tácticas anti-pactistas de Kautsky tuvieron resultados tan diferentes en Rusia y Europa. Una diferencia clave, quizás difícil de analizar a fondo para la tradición marxista: el colapso total y repentino de la autoridad estatal en Rusia, que no tuvo equivalente en Europa Occidental. En cualquier caso, esta deficiente comprensión se expresa tanto en las expectativas de los bolcheviques de una revolución socialista en Europa y en las polémicas, a menudo áridas, de Kautsky contra los bolcheviques.

Nuestra última pregunta es acerca de la Revolución rusa y su destino. Fue formulada mejor por el propio Kautsky, al que debemos dar la última palabra. En marzo de 1917, inmediatamente después de la caída del Zar, antes de que la correlación de fuerzas política se hiciera evidente a los extraños, Kautsky recapituló su viejo argumento de que “el nuevo régimen revolucionario estará bien protegido contra una contrarrevolución, [porque] los campesinos se unirán a él y le permanecerán fieles”. A continuación, se preguntaba cuánto tiempo permanecería en vigor la alianza obrero-campesina, ya que “la dependencia del campesinado de la revolución no significa que vayan a apoyar un nuevo avance revolucionario del proletariado”. Por lo tanto, “el campesinado es la 'x', la variable desconocida, en la ecuación de la Revolución rusa. Todavía no somos capaces de insertar una cifra en esa ‘x’. Sin embargo, sabemos que esa cifra es la clave, lo decisivo. Por esta razón, la Revolución rusa puede y sin duda nos producirá tremendas sorpresas”.

Kautsky da justo en el blanco: la pregunta clave para la revolución y de hecho para toda la historia soviética, la ecuación que había que resolver, fue siempre la naturaleza de las relaciones obrero-campesinas. Ahora sabemos hasta que punto la historia fue trágica.

Notas:

[1] Lenin, Polnoe sobranie sochinenii, 5th ed., (PSS), 4:189 (1899).[2] Forthcoming on John Riddell’s blog.
[3] Lenin PSS, 33:104.
[4] Richard Day y Daniel Gaido, Witnesses to Permanent Revolution (Brill 2009), 580.
[5] Lenin, CW, 28: 295; para un comentario similar de Trotsky, ver el prefacio de 1922 a su libro 1905.
[6] Lenin, PSS, 26:143-44.
[7] Lenin, Collected Works, 21:403.

Sobre o autor
Lars T. Lih é um acadêmico que vive em Montreal. Seus livros incluem Bread and Authority in Russia, 1914-1921 e Lenin Rediscovered: “What is to be Done?” in Context.

17 de julho de 2014

O cadáver da Palestina

Salem H. Nasser


Waldir Troncoso Peres, o grande advogado criminalista, falando um dia sobre teses da defesa –aquelas razões que absolvem ou reduzem a pena– ofereceu esta frase lapidar: "A função do advogado de defesa é fazer os jurados esquecerem que existe um cadáver".

Em algo parecido acreditam, por motivos menos dignos, os que sustentam a inexistência do povo palestino, como fez nesta Folha Flavio Bierrenbach (Palestina, 6/7).

Não se trata aqui de responder àquele artigo que, francamente, contém pouco que mereça resposta e evidentemente foi escrito por quem não conhece o assunto –ninguém que inclua o Hizbullah entre os grupos da resistência armada palestina e o veja submetido em algum momento da história a Yasser Arafat pode se dizer conhecedor.

É a intenção por trás de advogar a tese que precisa ser exposta.

O artigo parece pedir um contexto –já que, significativamente, nem sequer são mencionados os últimos acontecimentos na faixa de Gaza e nos territórios ocupados. Talvez a explicação esteja em que, em 9 de julho, completaram-se os dez anos do parecer da Corte Internacional da Justiça, um dos principais órgãos da ONU, no qual 14 dos 15 juízes decidiram que a construção por Israel de um muro em territórios palestinos ocupados e, antes dele, a própria ocupação violam o princípio de não aquisição de territórios pela força, os direitos humanos dos palestinos, o direito humanitário –aplicável a conflitos armados– e, sobretudo, o direito de autodeterminação do povo palestino. O juiz americano, único a votar contra, não chegou a negar as violações, mas opôs-se a que a corte se manifestasse.

A efeméride talvez tenha urgido alguns a negarem a existência dos detentores dos direitos violados. Certamente, haveria mérito numa discussão acadêmica –como a que faz o historiador israelense Shlomo Sand em relação ao que chama de a invenção do povo judeu– sobre a medida em que os povos são de fato coisas inventadas que deitam suas raízes no mito.

Mas o exercício que fazem os negacionistas do povo palestino está longe de querer nos informar sobre o mundo das coisas humanas e sobre as ciências que o explicam.

O que se pretende é nos dizer que não existem os palestinos habitantes históricos da Palestina –"terra sem povo"–, que não existe o povo com direito à autodeterminação, que não existe o povo que habitava as aldeias sobre as quais sentam agora as cidades israelenses, que não existem os milhões de refugiados, os donos das casas destruídas, os donos das oliveiras derrubadas, que não existiram os pais dos órfãos nem existem os órfãos, que não existem as pessoas cercadas pelos muros e pelo arame farpado e, incidentalmente, que não existe quem esteja nestes dias sofrendo os bombardeios da aviação israelense.

O exercício nos diz que não há um cadáver, e é para que esqueçamos o crime. Por não poder, ainda, apagar a existência concreta das pessoas, o que se tenta fazer, ao negar a qualidade de "povo", é despir de significado essa existência –sutileza percebida por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém"– permitindo que contra esses seres humanos se possa tudo, da opressão à morte, passando pelo desterro.

Trata-se de um tipo especial de racismo, que não se basta com representar a sua vítima como torpe, vil, traiçoeira e naturalmente orientada para a violência, mas quer despi-la do direito de definir a sua identidade, negar-lhe o direito de ser, apagá-la da sua própria história.

SALEM H. NASSER, 46, é presidente do Instituto de Cultura Árabe e professor de direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo.

O cadáver da Palestina

Salem Nasser

Folha de S.Paulo

Waldir Troncoso Peres, o grande advogado criminalista, falando um dia sobre teses da defesa –aquelas razões que absolvem ou reduzem a pena– ofereceu esta frase lapidar: "A função do advogado de defesa é fazer os jurados esquecerem que existe um cadáver".

Em algo parecido acreditam, por motivos menos dignos, os que sustentam a inexistência do povo palestino, como fez nesta Folha Flavio Bierrenbach (Palestina, 6/7).

Não se trata aqui de responder àquele artigo que, francamente, contém pouco que mereça resposta e evidentemente foi escrito por quem não conhece o assunto –ninguém que inclua o Hizbullah entre os grupos da resistência armada palestina e o veja submetido em algum momento da história a Yasser Arafat pode se dizer conhecedor.

É a intenção por trás de advogar a tese que precisa ser exposta.

O artigo parece pedir um contexto –já que, significativamente, nem sequer são mencionados os últimos acontecimentos na faixa de Gaza e nos territórios ocupados. Talvez a explicação esteja em que, em 9 de julho, completaram-se os dez anos do parecer da Corte Internacional da Justiça, um dos principais órgãos da ONU, no qual 14 dos 15 juízes decidiram que a construção por Israel de um muro em territórios palestinos ocupados e, antes dele, a própria ocupação violam o princípio de não aquisição de territórios pela força, os direitos humanos dos palestinos, o direito humanitário –aplicável a conflitos armados– e, sobretudo, o direito de autodeterminação do povo palestino. O juiz americano, único a votar contra, não chegou a negar as violações, mas opôs-se a que a corte se manifestasse.

A efeméride talvez tenha urgido alguns a negarem a existência dos detentores dos direitos violados. Certamente, haveria mérito numa discussão acadêmica –como a que faz o historiador israelense Shlomo Sand em relação ao que chama de a invenção do povo judeu– sobre a medida em que os povos são de fato coisas inventadas que deitam suas raízes no mito.

Mas o exercício que fazem os negacionistas do povo palestino está longe de querer nos informar sobre o mundo das coisas humanas e sobre as ciências que o explicam.

O que se pretende é nos dizer que não existem os palestinos habitantes históricos da Palestina –"terra sem povo"–, que não existe o povo com direito à autodeterminação, que não existe o povo que habitava as aldeias sobre as quais sentam agora as cidades israelenses, que não existem os milhões de refugiados, os donos das casas destruídas, os donos das oliveiras derrubadas, que não existiram os pais dos órfãos nem existem os órfãos, que não existem as pessoas cercadas pelos muros e pelo arame farpado e, incidentalmente, que não existe quem esteja nestes dias sofrendo os bombardeios da aviação israelense.

O exercício nos diz que não há um cadáver, e é para que esqueçamos o crime. Por não poder, ainda, apagar a existência concreta das pessoas, o que se tenta fazer, ao negar a qualidade de "povo", é despir de significado essa existência –sutileza percebida por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém"– permitindo que contra esses seres humanos se possa tudo, da opressão à morte, passando pelo desterro.

Trata-se de um tipo especial de racismo, que não se basta com representar a sua vítima como torpe, vil, traiçoeira e naturalmente orientada para a violência, mas quer despi-la do direito de definir a sua identidade, negar-lhe o direito de ser, apagá-la da sua própria história.

SALEM H. NASSER, 46, é presidente do Instituto de Cultura Árabe e professor de direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo

Como devemos pensar sobre o Califado?

Em muitos aspectos, o Isis é uma organização muito moderna. O folheto detalhando suas atividades de 2012-13 é como um relatório corporativo de última geração.

Owen Bennett-Jones

London Review of Books

Vol. 36 No. 14 · 17 July 2014

Em seu recente vídeo de propaganda, Clanging of the Swords: Part 4, o Estado Islâmico do Iraque e Levante (EIIL) apresentou uma série bem editada de execuções grotescas. Trinta e oito pessoas foram filmados sendo mortos: um homem assassinado quando corria pelo deserto, tentando escapar de pistoleiros numa pick-up 4x4; outro, baleado no próprio carro; um, morto em casa, quando o EIIL invadiu o quarto e o degolou. Difícil acreditar que o que se vê na tela realmente aconteceu, até que a desumanidade sem fim é interrompida por um momento ocasional. A certa altura, um pistoleiro anda por uma de uma fileira de jovens ajoelhados, com as mãos atadas às costas. Faz mira com uma pistola na nuca de cada um, atira, vê o corpo tombar à frente numa poça de sangue, anda para o seguinte e repete o movimento. Então, um dos ajoelhados tem a ideia de tentar salvar-se se antecipando ao tiro e, um microssegundo antes do tiro, atira-se para a frente, fingindo-se de morto. Escusado será dizer que o artifício não funciona.. Há também imagens de pistoleiros do EIIL dirigindo por uma cidade, quando, sem motivo aparente, põem as Kalashnikovs para fora das janelas do carro e atiram contra dois homens que andam pela calçada. Um deles é atingido e cai. O carro avança, e os atiradores do EIIL continuam atirando até que os dois estejam imóveis no chão. Presumivelmente, queriam ter certeza de que os dois estão mortos. Depois que se afastam, o segundo homem – surpreendentemente ainda ileso – corre por sua vida em outra direção.

Você poderia supor que um filme que mostra a própria organização matando gente ao acaso pelas ruas não atrairia novos recrutas. Mas os vários spots que o EIIL distribuiu alcançaram dois objetivos. Primeiro, aterrorizaram o exército do Iraque, minando o desejo dos soldados de defenderem o estado iraquiano. Mensagens ameaçadoras enviadas diretamente para telefones celulares reforçam o efeito. Segundo, o EIIL rapidamente abriu caminho até converter-se em imagem global. Até há poucas semanas, só leitores especializados os conheciam. Não tinham sequer nome fixado: uns diziam EIIS, outros diziam EIIL. A distinção já não importa, porque, agora, a organização se rebatizou como Estado Islâmico; e Abu Bakr al-Baghdadi é seu califa. Chame-se como for, o apelo deles está nas imagens de jovens com cabelos e barbas ao vento, em cenários desértico-rurais, livres da parafernália da vida moderna – exceto os rifles de assalto e a munição cruzada no peito. A conversa é toda sobre dever, sacrifício e martírio.

Mas em vários aspectos, o EIIL é organização muito moderna. A brochura em que detalham as atividades de 2012-2313 é um relatório perfeito, moderno, das atividades de uma empresa comercial privada. A página mais impressionante, graficamente impactante, mostra 15 ícones em silhueta – bombas-relógio, algemas, um carro, um homem correndo – cada um representando um campo de atividades: bombas plantadas em acostamentos de estradas, prisioneiros resgatados, carros-bomba, casas saqueadas de apóstatas. Ao lado da imagem de uma pistola, a palavra “assassinatos” e o número 1.083: são os assassinatos predefinidos [“targeted killings”] que o EIIL diz ter consumado no ano ao qual corresponde o relatório técnico. Foram 4.465 bombas em acostamentos; 160 ataques-suicidas e mais de uma centena de apóstatas que se arrependeram. E essas estatísticas impressionantes relacionam-se ao período anterior ao maior feito jihadi desde o 11/9: a conquista, pelo EIIL, da segunda maior cidade do Iraque, Mosul. O EIIL é também o primeiro grupo jihadi a ocupar terra contígua em dois países. Pode-se argumentar que a al-Qaeda fez o mesmo em áreas de fronteira no Afeganistão-Paquistão, mas só sobrevivia porque permanecia nas sombras. O EIIL, ao contrário, movimenta-se pelo nordeste da Síria e por vastas áreas do norte do Iraque em quase completa liberdade. Sempre houve algum braço do Islã com aspirações globais acima das fronteiras nacionais: agora o Estado Islâmico quer pôr aquelas ideias em prática. Um dos primeiros atos do califa foi mandar tanques destruir todos os postos de fronteira entre o Iraque e a Síria.

Houve muitos comentários sobre os voluntários estrangeiros atraídos pela ideologia pan-islãmica de Baghdadi. Pode-se pensar que recrutas da Europa Ocidental, principalmente, poderiam ser mais problema que ajuda: muitos não falam árabe e foram criados com tais confortos que terão dificuldade para se adaptar a vida jihadi. Mas também têm vantagens. Podem ser bem-educados, trazem a dedicação junto com os passaportes ocidentais. Podem servir como suicidas-bombas. A abertura do EIIL a combatentes estrangeiros já rendeu dividendos, embora a imprensa ocidental esteja mais preocupada, mesmo, é com o problema que eles serão quando retornarem às sociedades que os criaram e alimentaram e educaram. Autoridades britânicas dizem que 500 muçulmanos do Reino Unido estão hoje lutando na Síria e no Iraque; e que os que sobreviverem e retornarem serão numerosos demais para que os serviços de segurança consigam vigiá-los de perto. Mas, de fato, não há nada nem remotamente semelhante a ameaça existencial contra o Reino Unido. Muitos dos jovens que foram para o Oriente Médio fizeram-no precisamente porque não consideram que o inimigo seja o Reino Unido e não têm interesse em atacar alvos britânicos. E um dos aprendizados que se extraíram dos vários programas de desradicalização que existem agora por todo o mundo é que, por mais que os jihadis tenham ar feroz, quase sempre são indivíduos de vontade muito frágil. É fácil persuadi-los a lutar, mas também é bem fácil persuadi-los a parar. Estima-se que no passado apenas um, de cada nove combatentes estrangeiros, continuou a fazer sua jihad depois que retornou à terra natal.

Apesar de todas as inovações, o Estado Islâmico é descendente direto da al-Qaeda – especificamente, da al-Qaeda no Iraque. Quando os EUA invadiram o Iraque em 2003, bin Laden tinha toda uma nova frente contra a qual combater. A Al-Qaeda no Iraque foi organizada sob a liderança de Abu Musab al-Zarqawi, criminoso menor, furiosamente sedento de sangue, que permitia que praticamente qualquer um no seu grupo – tivesse ou não tivesse educação religiosa – decidisse sobre se alguém era ou não era muçulmano certo. A organização ficou famosa por postar filmes em YouTube nos quais se assistia à decapitação de qualquer um que não tivesse atendido aos critérios. A liderança central da Al-Qaeda tentou explicar a Zarqawi que o subtítulo que ele usava – Xeique Degolador – não ajudava a causa, mas Zarqawi manteve-se fiel a si mesmo até que, em 2006, os norte-americanos encontraram seu rastro e o mataram.

Nem por isso foi o fim. Os remanescentes muito endurecidos em batalha da al-Qaeda no Iraque, unidos a outros grupos de militantes que haviam combatido contra a ocupação norte-americana, decidiram recomeçar e se renomearam Estado Islâmico do Iraque. O novo grupo progrediu muito depois que os EUA retiraram-se em 2011, e no início desse ano, sob a liderança de Baghdadi, tomaram quase toda a área de duas cidades que os EUA muito se esforçaram para tornar seguras: Fallujah e Ramadi. Foram grandes vitórias simbólicas que ajudaram a fixar a reputação de Baghdadi como mais destacado líder jihadi do mundo. Diferente de Zawahiri da al-Qaeda, Baghdadi vencia batalhas em campo.

As coisas também estavam avançando na Síria. No verão de 2011, quando parecia que o regime de Assad em Damasco talvez não sobrevivesse, Baghdadi mandou homem do Estado Islâmico no Iraque, Abu Mohammed al-Joulani, para montar loja na porta ao lado. A oposição democrática a Assad estava exaurida; em questão de meses, al-Joulani já estava invadindo e ocupando áreas no norte da Síria. Em janeiro de 2012 anunciou publicamente a existência do que chamou de Jabhat al-Nusra, Frente al-Nusra. Por um ano a Frente al-Nusra acumulou ganhos, em parte porque o regime de Assad deu-se conta de que, se deixasse os jihadis ganhar territórios, o ocidente mudaria de ideia sobre o conflito sírio. Foi quando as forças do governo sírio passaram a concentrar seu fogo contra o Exército Sírio Livre, não contra os jihadis.

Depois de ver os ganhos de Joulani na Síria, Baghdadi decidiu aparecer, ele próprio. Em abril de 2013 mudou o nome do Estado Islâmico no Iraque, para Estado Islâmico no Iraque e Síria (“Levante”). Logo depois anunciou a fusão entre o ISIL e a Frente al-Nusra. Para Joulani, foi movimento de hostilidade, não de fusão. Há várias versões sobre por que os dois homens romperam, desde um choque de egos, até diferenças políticas irreconciliáveis. Segundo uma das histórias que circulam, Baghdadi ordenou que Joulani explodisse um hotel na Turquia onde se reuniam alguns líderes da oposição democrática síria. Temeroso de que suas linhas turcas de abastecimento fossem comprometidas, Joulani recusou-se a cumprir a ordem; e Baghdadi ficou ressentido. A política para o Irã foi outra área de dissenso. Alguns altos membros do ISIL reclamaram que a al-Qaeda sempre tivera política de não atacar o Irã; a Frente al-Nusra aceitava, mas o ISIL não. Fossem quais fossem as razões precisas, os desacordos levaram a disputas internas entre o ISIL e a Frente al-Nusra, e Joulani apelou a Ayman al-Zawahiri, líder da al-Qaeda, para que decidisse. Zawahiri declarou que a Frente al-Nusra era filial oficial da al-Qaeda na Síria, e que oISIL havia rompido seus laços com a al-Qaeda. Ordenou que o grupo se limitasse a lutar no Iraque – sugestão que o ISIL rejeitou imediatamente. Hoje, talvez Zawahiri lamente o que fez, mas ele também sabe que Baghdadi pode, sim, fracassar; se por mais não for, porque só confia na violência mais extrema.

Essa foi lição que a al-Qaeda aprendeu pela via mais difícil. 11/9 pôs muito alta a barra a ultrapassar e ficou difícil imaginar, para os anos seguinte, algo tão espetacular quanto os ataques da al-Qaeda que derrotaram New York; a organização descobriu que teria de usar cada vez mais violência (dado que não havia mais talento à disposição), para conseguir manter-se nas manchetes da imprensa-empresa planetária. A estratégia de escalada afinal revelou-se em novembro de 2005, quando suicidas-bombas atacaram três hotéis em Amã. No tempo de poucos minutos, mais de 50 pessoas foram mortas, incluindo convidados que participavam de uma festa de casamento. Dia seguinte, houve protestos nas ruas: os manifestantes condenavam a matança e cantavam slogansa favor do rei Abdullah. Zawahiri extraiu disso a conclusão óbvia, mas outros jihadis não conseguiram entender o valor da moderação. Cada vez que um movimento jihadista ganhou poder, ele perdeu popularidade porque não deu às pessoas comuns o que elas desejam: paz, segurança e empregos. No Afeganistão, por exemplo, os Talibã tiveram considerável apoio popular quando chegaram ao poder em 1996, depois de anos de guerra civil: muitos afegãos gostaram da estabilidade que os Taleban trouxeram. Mas o governo do Mulá Omar foi tão violento e tão pouco preocupado com questões mundanas que, em 2001, já muitos festejaram a partida dele. Outros governos jihadistas enfrentaram problemas semelhantes. Em 2009, o atual líder dos Talibã no Paquistão, Mulá Fazlullah, obteve o controle do Vale do [rio] Swat, a poucas horas de distância, de carro, de Islamabad. Sua prática de matar os oponentes e deixar os cadáveres apodrecendo na praça principal da maior cidade do vale, Mingora, tanto horrorizou a população local, que passaram a apoiar uma ofensiva do exército contra os militantes. Eventos similares verificaram-se no Norte da África, onde nenhum movimento jihad conseguiu manter-se no poder.

A lição deveria ser de que, deixados entregues aos seus próprios meios, governos jihadistas sempre fracassam. Mas há sinais, porém, de que Baghdadi ou, pelo menos, alguns de seus comandantes, começaram a avaliar a importância dessa questão. Em algumas cidades sírias, o ISIL conseguiu restaurar algum grau de normalidade, não só por garantiram a segurança mediante sistema de justiça nua e crua, mas também graças à introdução de controle de preços sobre mercadorias básicas; e, inclusive, porque começaram a dar conta de serviços públicos simples, como organizar e controlar a distribuição de números de chapa para veículos automotores. Gasolina e comida gratuita – sempre em embalagens com a grife ISIL – são frequentemente distribuídas aos necessitados. Por hora, essas tentativas de conquistar as populações locais têm sido derrotadas não só pelos métodos violentos de Baghdadi, mas, também, pela insistência dele em regras impopulares, de inspiração religiosa, sobre uso de bebidas alcoólicas, de cigarros, de roupas femininas e da música. Mas tão logo o Estado Islâmico aprenda a governar tão bem como luta e vence batalhas, o apoio popular com que conta com certeza aumentará muito. No momento, as suas possibilidades têm sido comprometidas pelo muito que o Estado Islâmico ainda confia no medo. Mas há outra razão pela qual se deve crer que, no longo prazo, o Estado Islâmico não é tão perigoso quanto muitos creem. Depois da queda de Mosul, o governo de Nouri al-Maliki declarou que o ISIL teria de 4 a 6 mil combatentes no Iraque. Outros entendem que esse número é muito maior. Seja como for, é claro que exército tão diminuto não poderia ter ocupado superfície tão extensa e tão depressa, sem ajuda. O fato é que o ISIL não é o monólito de pensamento único que parece ser. É só a face pública de uma coalizão de ex-jihadistas, oficiais militares baathistas e vários líderes tribais desiludidos com o governo de Maliki. Várias diferentes milícias lutaram ao lado do ISIL, inclusive o Exército Islâmico do Iraque, liderado pelo Xeique Ahmad al-Dabash, homem que não partilha as ideias de Baghdadi sobre um califado. "O Iraque pode permanecer sob sistema único,mas com três regiões – curdos, sunitas e xiitas – separadas. Não há melhor solução que essa", disse al-Dabash recentemente. Os eventos estão andando nesse rumo.

O Iraque já está mais perto de ser três estados, que um. Dada a profundidade da desconfiança entre as comunidades, é provável que as divisões se tornem mais agudas: pode acontecer de a própria Bagdá ser esquartejada. Os curdos, que reagiram contra a tomada de Mosul, tomando o controle de Kirkuk, não cederão facilmente. Alguns xiitas estão começando a achar que um estado xiita pode ser preferível a um estado iraquiano, e há sunitas, também, que começam a achar que preferem tomar conta, eles mesmos, da própria vida. A desintegração do Iraque encaixa-se em tendências maiores que desafiam a ordem estabelecida no Oriente Médio; não são só os jihadistas a comandar todas as mudanças. Num desenvolvimento que seria inimaginável há alguns anos, empresas ocidentais estão comprando petróleo dos curdos, apesar da oposição do governo central em Bagdá. Na Síria, o ISIL controla alguns poços de petróleo, mas muito petróleo continua a chegar ao mercado. Quanto às fronteiras, já não é fora de propósito pensar na possibilidade de um reduto alawita no oeste da Síria e de autogoverno dos curdos: uma independência de fato, que mudaria, não só o Iraque, mas também Turquia, Síria e Irã. Israel e as potências ocidentais já estão mostrando preocupação sobre o que possa vir a acontecer na Jordânia. Não há dúvidas de que resistirão contra qualquer demanda de que reconheçam mudanças tentadas em limites nacionais. Mas isso pode levar a crescente divergência entre os sistemas que regulam as relações nacionais entre estados, e a realidade em campo.

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A promessa da Primavera Árabe está extinta, em grande medida. Esperanças de mudança democrática foram substituídas por medos de ditaduras e califatos. O principal desapontamento é a região do Egito, onde os ideais da Praça Tahrir terminaram em governo de ditador militar, ainda mais autoritário que Mubarak. A Fraternidade Muçulmana – que venceu todas as eleições às quais concorreu depois da Primavera Árabe – foi declarada organização terrorista, com centenas dos seus principais líderes já condenados à morte. E tudo isso aconteceu com apoio do ocidente: o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, entregou recentemente mais de meio bilhão de dólares ao regime golpista do general Sisi. E a situação na Síria tem levado alguns a pensar se, comparado aos jihadistas, o regime do presidente Assad não será, afinal, a melhor opção. O ocidente dá sinais de estar mais do que apenas tentado a apoiar qualquer ditador que apareça no Iraque, se der sinais de que conseguirá manter sob controle o Estado Islâmico. Em outras palavras, o Ocidente já está revertendo à sua tradicional política para o Oriente Médio, de apoiar regimes autoritários que mantenham sob rédea curta sejam os islamistas radicais sejam os democratas liberais.

Quando George Bush e Tony Blair invadiram o Iraque, promoveram a ideia de que o ocidente estaria enfrentando ameaça jihadista global comandada pela al-Qaeda. Toda a Guerra Global ao Terror foi feita contra um único inimigo: o Islã radical. De início, cada manifestação dessa ameaça foi atacada com força massiva, a começar no Afeganistão. Mais recentemente, as ofensivas do ocidente têm sido menos consistentes. Os jihadistas no Mali foram atacados, mas al-Shabaab não foi incomodada na Somália. Para alguns, o não agir em alguns casos sinalizaria fraqueza ocidental. “O ponto de partida é identificar a natureza da batalha: é batalha contra o extremismo islamista. A batalha é essa” – escreveu Tony Blair em ensaio publicado em sua página internet, redigido como resposta aos avanços do ISIL no Iraque. Na sequência, recomendou outra – possivelmente ilegal – intervenção militar. Outros, menos comprometidos com o passado, fazem análise diferente: ao mesmo tempo em que os jihadistas estão envolvidos em várias lutas contemporâneas, os vários conflitos envolvem teia complicada de muitos outros fatores. Já não há um único inimigo – se é que algum dia houve inimigo único – dedicado a atacar o ocidente. Há várias forças separadas, cada uma com agenda própria e seus próprios motivos, que têm a ver, principalmente, com inimigos locais. Cada conflito tem sua própria história e sua própria dinâmica. No Iraque, a atual rebelião é movida, não por antiamericanismo ou hostilidade contra o ocidente em geral, mas, mais, pelo sectarismo, a corrupção e a incompetência do governo Maliki. Os xiitas iraquianos e seus apoiadores iranianos, ao lado dos sunitas moderados e até de curdos, todos têm agora um interesse comum em se opor a al-Baghdadi – o que eles mesmos podem fazer com muito maior eficácia que o exército dos EUA. De fato, tropas dos EUA deslocadas para lá serão como fantoches nas mãos de al-Baghdadi e Zawahiri.

Em fins de junho, David Cameron disse à Casa dos Comuns do Parlamento que o ISIL poderia tomar o controle do norte do Iraque e instalar lá um governo: “O pessoal que chefia aquele governo, além de aspirar a tomar território, também planeja nos atacar aqui em nossa casa, no Reino Unido”. É declaração temerária, altamente belicosa, que ultrapassa em muito o que o governo de Obama tem dito. Nos últimos meses, os Republicanos desenvolveram com sucesso uma narrativa segundo a qual a relutância de Obama em usar a força na região teria dado lugar a uma percepção de fraqueza dos EUA. A pressão doméstica sobre Obama, para que seja mais agressivo no uso da força militar tem sido considerável. Apesar disso, o presidente dos EUA parece tem conseguido conter as demandas – que agora estão partindo de uma improvável aliança entre Maliki e a direita norte-americana – de que envie tropas dos EUA para o Iraque. “Os sunitas que tomaram cidades iraquianas”, disse Obama, representam “ameaça de médio e longo prazo” para os EUA. Mas, acrescentou ele, “não podemos pensar que estamos brincando de pega-pega e mandar soldados dos EUA para ocupar vários países, cada vez que essas organizações aparecem no mundo”. “E seja como for”, disse ele, “as populações locais rejeitam o ISIL por causa da violência deles”. É um evento muito raro: Downing Street, Londres, ainda mais falcão-linha-dura que a Casa Branca, Washington; mas talvez seja um evento sem consequências. Em uma frase na qual articula de modo excepcionalmente claro a subserviência de Londres a Washington, William Hague disse, em resposta aos avanços do ISIL: "Apoiaremos os EUA em qualquer coisa que resolvam fazer."

A relutância de Obama, que não interveio na Síria pode parecer fracassada. Mas estaria por acaso garantido que mais dinheiro do ocidente entregue ao Exército Sírio Livre teria resultado na emergência de alguma espécie de estado liberal democrático? O fracasso da Primavera Árabe em outros pontos não sugere que essa possibilidade se concretizaria. Políticos ocidentais estão tendo de reajustar-se à novidade de sua própria crescente incapacidade para dominar o mundo. Se se consideram as alternativas, a inação de Obama parece boa ideia, que é criticado pela direita e pela esquerda, pelos seus muitos erros e fracassos. Mas o mais provável é que dentro de alguns anos, quando ele já não estiver na Casa Branca, tenhamos muitas saudades de Obama.

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