Em 2004, um ano antes da retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, Dov Weissglass, eminência parda de Ariel Sharon, explicou o propósito da iniciativa a um...
Mouin Rabbani
London Review of Books
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Vol. 36 No. 15 · 31 July 2014 |
Em 2004, um ano antes da retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, Dov Weissglass, eminência parda de Ariel Sharon, explicou o propósito da iniciativa em uma entrevista ao jornal Haaretz:
Em 2006, Weissglass era igualmente franco sobre a política de Israel para os 1,8 milhão de habitantes de Gaza: "A ideia é pôr os palestinos em regime de restrição de comida, não matá-los de fome." Ele não estava falando metaforicamente: soube-se depois que o Ministério da Defesa de Israel havia feito uma pesquisa detalhada sobre como pôr em prática seu projeto, e chegou ao número limite de 2.279 calorias por pessoa por dia – cerca de 8% menos que um cálculo anterior, porque a equipe de pesquisa havia esquecido, da primeira vez, de considerar os fatores “cultura e experiência”, no cálculo para determinar as “linhas vermelhas” nutricionais.
Este não era um exercício acadêmico. Depois de aplicar uma política de integração entre 1967 e o final da década dos 1980, a política israelense deu uma guinada no rumo da separação durante os levantes de 1987-1993, e da fragmentação durante os anos de Oslo. Para a Faixa de Gaza, área do tamanho da Grande Glasgow, essas mudanças implicaram gradual rompimento e separação do mundo exterior, com a entrada e saída de pessoas e bens para dentro e para fora do território já cada vez mais difíceis.
Os parafusos foram sendo apertados cada vez mais durante o levante de 2000-2005, e em 2007 afinal a Faixa de Gaza foi efetivamente fechada para o mundo. Todas as exportações foram proibidas e só 131 caminhões de comida e alguns produtos essenciais podiam entrar, por dia. Israel também controlava rigorosamente que produtos podiam e não podiam ser importados. Itens proibidos incluíam papel A4, chocolate, coentro, lápis de cera, geleia, macarrão, shampoo, sapatos e cadeiras de rodas.
Em 2010, comentando sobre esta degradação premeditada e sistemática da humanidade de uma população inteira, David Cameron caracterizou a Faixa de Gaza como uma "prisão" e – pela primeira vez – não suavizou a avaliação acrescentando-lhe um comentário sobre o direito de os carrascos defenderem-se contra o “perigo” que seus prisioneiros e vítimas representariam.
Tem-se repetido que a razão pela qual Israel sempre torna cada vez mais violento o seu regime de castigo coletivo seria derrubar o Hamas, que chegou ao poder em 2007, em Gaza. A afirmação não resiste a uma análise séria. Remover o Hamas do poder é objetivo dos EUA e da União Europeia desde o dia em que o movimento venceu as eleições parlamentares de 2006; e os esforços combinados daquelas forças para derrubar o Hamas do poder ajudou a preparar o cenário para que Israel se dedicasse a aprofundar o cisma palestino.
A agenda de Israel é bem diferente. Se quisesse pôr fim ao poder do Hamas, já o teria feita e até bem facilmente, sobretudo antes, enquanto o Hamas ainda consolidava seu controle sobre Gaza em 2007, a sem necessariamente reverter a retirada de 2005. Mas, não. Israel viu o cisma entre o Hamas e a Autoridade Palestina como uma oportunidade para aprofundar suas políticas de separação e fragmentação, e para aliviar a crescente pressão internacional para pôr fim a uma ocupação da Palestina que já durara meio século.
Os ataques massivos de Israel contra a Faixa de Gaza em 2008-9 (Operação Chumbo Derretido) e em 2012 (Operação Pilar de Defesa), além dos incontáveis ataques individuais entre uma grande guerra e outra, foram, nesse contexto, exercício para o que os militares israelenses chamaram de “aparar a grama”: enfraquecer o Hamás e ampliar os poderes “de contenção” de Israel. Como o Relatório Goldstone de 2009 e outras investigações demonstraram, às vezes em detalhes horrivelmente dolorosos, a “grama” é gente, pessoas, civis palestinos não combatentes, tomados como alvos humanos da artilharia indiscriminada dos israelenses.
O atual ataque de Israel contra a Faixa de Gaza, que começou dia 6 de julho/2014, com invasão também por terra iniciada dez dias depois, é mais uma ação na mesma agenda. As condições foram consideradas maduras no final de abril. Negociações que se arrastavam há nove meses começaram a parar quando o governo israelense não cumpriu o compromisso de libertar vários palestinos mantidos encarcerados desde antes dos Acordos de Oslo de 1993; e pararam, mesmo, quando Netanyahu anunciou que não mais negociaria com Mahmoud Abbas, “porque” Abbas acabava de assinar acordo de reconciliação com o Hamas. Nessa ocasião, em atitude em tudo diversa da “normal”, o Secretário de Estado dos EUA John Kerry explicitamente culpou Israel pelo rompimento das conversações. O enviado especial dos EUA, Martin Indyk, profissional lobbyista pró-Israel, também culpou o insaciável apetite de Israel por terras palestinas e pela expansão continuada das colônias, e demitiu-se.
O desafio aqui para Netanyahu é claro. Se até mesmo os americanos estão dizendo ao mundo que Israel não está interessado em paz, os mais diretamente investidos num acordo com vistas a uma solução de Dois Estados – como a União Europeia, que já começou a excluir entidades israelenses ativas nos Territórios Palestinos Ocupados, de participação em acordos bilaterais – podem começar a pensar em novos meios para empurrar Israel de volta para dentro das fronteiras de 1967. As negociações sobre nada são planejadas para garantir cobertura política à odiosa política israelense de anexação. Agora que novamente fracassaram, o patrimônio estratégico que é a opinião pública norte-americana pode começar a perguntar-se por que o Congresso dos EUA é mais leal a Netanyahu que o Knesset israelense. Kerry trabalhou a valer para conseguir acordo amplo: pegou praticamente todas as exigências de Israel e enfiou-as pela goela abaixo de Abbas. Pois mesmo assim Netanyahu continuava a reclamar. Além de se recusar a especificar futuras fronteiras israelenses-palestinas durante os nove meses de negociação, os líderes israelenses levantaram tais acusações contra Washington, tão violentas – de encorajar o extremismo, socorrer terroristas – que quase se poderia concluir que o Congresso dos EUA apoia o Hamas, não Israel! E ao custo de US$ 3 bilhões anuais.
Israel recebeu outro golpe no dia 2 de junho de 2014, quando um novo governo da Autoridade Palestina foi inaugurado, depois do acordo de reconciliação de abril entre os partidos Hamas e Fatah. O Hamas apoiou o novo governo apesar de não receber postos no Gabinete e de a composição e o programa do governo serem virtualmente idênticos aos do governo anterior. Praticamente sem protesto dos islamistas, Abbas repetiu e proclamou que o governo aceitava as demandas do “Quarteto do Oriente Médio”: reconhecia Israel, renunciava à violência e aderia a acordos anteriores. Anunciou também que as forças de segurança na Cisjordânia continuariam a colaborar com Israel. Quando Washington e Bruxelas sinalizaram a intenção de cooperar com o novo governo, todos os sinais de alarme dispararam em Israel. O que Israel repetiu sempre, que os negociadores palestinos falam cada um só por si próprio – e que, por isso, nenhum acordo seria jamais cumprido – começara a perder sentido: a liderança palestina não apenas podia dizer que representa a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, como, também, conseguira cooptar o Hamás para que apoiasse um acordo negociado para Dois Estados, quase, praticamente, no contexto de Oslo. Sem demora, começariam as pressões sobre Israel para que negociasse a sério com Abbas. O formol começava a evaporar.
Nesse ponto, Netanyahu aproveitou o desaparecimento no dia 12 de julho de 2014 de três jovens israelenses na Cisjordânia como um homem se afogando agarra a um salva-vidas. Apesar das provas que recebeu das forças de segurança de Israel de que os três já estavam mortos, e não há até hoje prova alguma de que o Hamas tivesse tido qualquer envolvimento nesses eventos, Netanyahu imediatamente acusou diretamente o Hamas e, na sequência, lançou vasta campanha para “resgatar os reféns” em toda a Cisjordânia. Foi, de fato, operação de assalto e saque militar. Incluiu o assassinato de pelo menos seis palestinos, nenhum dos quais acusado de participação no desaparecimento dos três israelenses; prisões em massa, inclusive de deputados do Hamas e a recaptura de prisioneiros libertados em 2011; demolição de muitas casas e invasão e saque de outras; e variedade enorme de depredações do tipo que Israel elevou à posição de uma das belas artes ao longo de décadas de ocupação. Netanyahu desencadeou festival de fogos de artifício demagógicos contra todos os palestinos; o sequestro seguido de assassinato – foi queimado vivo – de um jovem palestino em Jerusalém não pode ser e não será separado dessa mesma campanha de incitamento ao ódio.
Por sua parte, Abbas falhou mais uma vez e não se opôs à operação israelense; até ordenou que suas forças de segurança continuassem a cooperar com Israel na caçada ao Hamas. O acordo de reconciliação foi posto sob grave pressão. Na noite de 6 de julho de 2014, um ataque aéreo israelense resultou na morte de sete militantes do Hamas. O Hamas respondeu com fogo sustentado de foguetes que invadiram o centro do território israelense; e escalaram novamente depois que Israel lançou campanha de massacre massivo. Ao longo do último ano, o Hamas esteve sempre em posição precária: perdeu suas instalações em Damasco e o status preferencial de que gozava no Irã, efeito de o grupo ter-se recusado a declarar apoio ao regime sírio; e enfrentou níveis sem precedentes de hostilidade, pelo novo regime militar egípcio. A economia subterrânea dos túneis entre Egito e Gaza foi sistematicamente atacada pelos egípcios, e pela primeira vez desde que passou a controlar politicamente o território, em 2007, o Hamas não conseguiu pagar em dia os salários das dezenas de milhares de funcionários públicos. O acordo de reconciliação com o partido Fatah foi a tentativa de trocar o próprio programa político pela sobrevivência imediata: em troca de conceder a arena política a Abbas, o Hamas conservaria o governo da Faixa de Gaza, com seus funcionários incluídos na folha de pagamentos da Autoridade Palestina e a passagem de fronteira com o Egito reaberta.
No evento, a troca que o Hamas esperava ver realizada não aconteceu; e, segundo Nathan Thrall do International Crisis Group, “a vida em Gaza piorou”. “A escalada real”, Thrall escreveu, “é resultado direto de Israel e o Ocidente terem se oposto à implementação do acordo de reconciliação entre os palestinos, de abril de 2014”. Ou, dito de outro modo: os que, dentro do Hamas, viram a crise como uma oportunidade para pôr fim ao governo de Weissglass, passaram a controlar o partido. Até agora, parecem ter com eles a maioria da população – porque preferem morrer sob fogo dos F-16, do que morrer mergulhados em formol.
Entre todos os uivos hipócritas - desta vez incluindo um covarde Cameron - sobre o direito de Israel à auto-defesa, e em face da rejeição categórica do direito equivalente dos palestinos, o ponto fundamental de que este é um ataque ilegítimo é muitas vezes perdido. Como argumentou com muita pertinência o advogado Noura Erakat, “Israel não tem qualquer direito de autodefesa, nos termos da lei internacional, contra território palestino ocupado”. O argumento de Israel, de que já não estaria ocupando a Faixa de Gaza, foi descartado por Lisa Hajjar, da Universidade da Califórnia, como uma autoemitida “licença para matar”.
Mais uma vez, Israel está a “aparar a grama” com impunidade, visando civis não-combatentes e infra-estrutura civil. Dada a afirmativa repetida dos israelenses de que usam as armas mais precisas disponíveis e miram atentamente os alvos, é impossível não concluir que os assassinatos são deliberadamente mirados. Segundo agências da ONU, mais de ¾ dos mais de 260 palestinos mortos até agora são civis, e mais de ¼ desses são crianças. A maioria foi “mirada’ e morta dentro das próprias casas: não podem ser apresentados como “dano colateral”, seja qual for a definição dessa expressão. Claro que os militantes palestinos miram cruelmente os centros israelenses mais populosos, embora seus ataques só tenham produzido uma única morte: um israelense que oferecia doces a soldados que pulverizavam a Faixa de Gaza. A Human Rights Watch criticou ambos os lados, mas, fiel à forma, acusou apenas os palestinos de crimes de guerra.
O significado do plano de retirada é o congelamento do processo de paz ... E quando se congela aquele processo, você impede-se o estabelecimento de um estado palestino e que se discuta a questão dos refugiados, as fronteiras e Jerusalém. Efetivamente, todo esse pacote chamado o estado palestino, com tudo que implica, foi removido por prazo indefinido, de nossa agenda. E isso tudo com... as bênçãos do presidente dos EUA e a ratificação das duas casas do Congresso.... O desengajamento é, de fato, formol. Fornece a quantidade necessária de formol para que não haja processo político algum com os palestinos.
Em 2006, Weissglass era igualmente franco sobre a política de Israel para os 1,8 milhão de habitantes de Gaza: "A ideia é pôr os palestinos em regime de restrição de comida, não matá-los de fome." Ele não estava falando metaforicamente: soube-se depois que o Ministério da Defesa de Israel havia feito uma pesquisa detalhada sobre como pôr em prática seu projeto, e chegou ao número limite de 2.279 calorias por pessoa por dia – cerca de 8% menos que um cálculo anterior, porque a equipe de pesquisa havia esquecido, da primeira vez, de considerar os fatores “cultura e experiência”, no cálculo para determinar as “linhas vermelhas” nutricionais.
Este não era um exercício acadêmico. Depois de aplicar uma política de integração entre 1967 e o final da década dos 1980, a política israelense deu uma guinada no rumo da separação durante os levantes de 1987-1993, e da fragmentação durante os anos de Oslo. Para a Faixa de Gaza, área do tamanho da Grande Glasgow, essas mudanças implicaram gradual rompimento e separação do mundo exterior, com a entrada e saída de pessoas e bens para dentro e para fora do território já cada vez mais difíceis.
Os parafusos foram sendo apertados cada vez mais durante o levante de 2000-2005, e em 2007 afinal a Faixa de Gaza foi efetivamente fechada para o mundo. Todas as exportações foram proibidas e só 131 caminhões de comida e alguns produtos essenciais podiam entrar, por dia. Israel também controlava rigorosamente que produtos podiam e não podiam ser importados. Itens proibidos incluíam papel A4, chocolate, coentro, lápis de cera, geleia, macarrão, shampoo, sapatos e cadeiras de rodas.
Em 2010, comentando sobre esta degradação premeditada e sistemática da humanidade de uma população inteira, David Cameron caracterizou a Faixa de Gaza como uma "prisão" e – pela primeira vez – não suavizou a avaliação acrescentando-lhe um comentário sobre o direito de os carrascos defenderem-se contra o “perigo” que seus prisioneiros e vítimas representariam.
Tem-se repetido que a razão pela qual Israel sempre torna cada vez mais violento o seu regime de castigo coletivo seria derrubar o Hamas, que chegou ao poder em 2007, em Gaza. A afirmação não resiste a uma análise séria. Remover o Hamas do poder é objetivo dos EUA e da União Europeia desde o dia em que o movimento venceu as eleições parlamentares de 2006; e os esforços combinados daquelas forças para derrubar o Hamas do poder ajudou a preparar o cenário para que Israel se dedicasse a aprofundar o cisma palestino.
A agenda de Israel é bem diferente. Se quisesse pôr fim ao poder do Hamas, já o teria feita e até bem facilmente, sobretudo antes, enquanto o Hamas ainda consolidava seu controle sobre Gaza em 2007, a sem necessariamente reverter a retirada de 2005. Mas, não. Israel viu o cisma entre o Hamas e a Autoridade Palestina como uma oportunidade para aprofundar suas políticas de separação e fragmentação, e para aliviar a crescente pressão internacional para pôr fim a uma ocupação da Palestina que já durara meio século.
Os ataques massivos de Israel contra a Faixa de Gaza em 2008-9 (Operação Chumbo Derretido) e em 2012 (Operação Pilar de Defesa), além dos incontáveis ataques individuais entre uma grande guerra e outra, foram, nesse contexto, exercício para o que os militares israelenses chamaram de “aparar a grama”: enfraquecer o Hamás e ampliar os poderes “de contenção” de Israel. Como o Relatório Goldstone de 2009 e outras investigações demonstraram, às vezes em detalhes horrivelmente dolorosos, a “grama” é gente, pessoas, civis palestinos não combatentes, tomados como alvos humanos da artilharia indiscriminada dos israelenses.
O atual ataque de Israel contra a Faixa de Gaza, que começou dia 6 de julho/2014, com invasão também por terra iniciada dez dias depois, é mais uma ação na mesma agenda. As condições foram consideradas maduras no final de abril. Negociações que se arrastavam há nove meses começaram a parar quando o governo israelense não cumpriu o compromisso de libertar vários palestinos mantidos encarcerados desde antes dos Acordos de Oslo de 1993; e pararam, mesmo, quando Netanyahu anunciou que não mais negociaria com Mahmoud Abbas, “porque” Abbas acabava de assinar acordo de reconciliação com o Hamas. Nessa ocasião, em atitude em tudo diversa da “normal”, o Secretário de Estado dos EUA John Kerry explicitamente culpou Israel pelo rompimento das conversações. O enviado especial dos EUA, Martin Indyk, profissional lobbyista pró-Israel, também culpou o insaciável apetite de Israel por terras palestinas e pela expansão continuada das colônias, e demitiu-se.
O desafio aqui para Netanyahu é claro. Se até mesmo os americanos estão dizendo ao mundo que Israel não está interessado em paz, os mais diretamente investidos num acordo com vistas a uma solução de Dois Estados – como a União Europeia, que já começou a excluir entidades israelenses ativas nos Territórios Palestinos Ocupados, de participação em acordos bilaterais – podem começar a pensar em novos meios para empurrar Israel de volta para dentro das fronteiras de 1967. As negociações sobre nada são planejadas para garantir cobertura política à odiosa política israelense de anexação. Agora que novamente fracassaram, o patrimônio estratégico que é a opinião pública norte-americana pode começar a perguntar-se por que o Congresso dos EUA é mais leal a Netanyahu que o Knesset israelense. Kerry trabalhou a valer para conseguir acordo amplo: pegou praticamente todas as exigências de Israel e enfiou-as pela goela abaixo de Abbas. Pois mesmo assim Netanyahu continuava a reclamar. Além de se recusar a especificar futuras fronteiras israelenses-palestinas durante os nove meses de negociação, os líderes israelenses levantaram tais acusações contra Washington, tão violentas – de encorajar o extremismo, socorrer terroristas – que quase se poderia concluir que o Congresso dos EUA apoia o Hamas, não Israel! E ao custo de US$ 3 bilhões anuais.
Israel recebeu outro golpe no dia 2 de junho de 2014, quando um novo governo da Autoridade Palestina foi inaugurado, depois do acordo de reconciliação de abril entre os partidos Hamas e Fatah. O Hamas apoiou o novo governo apesar de não receber postos no Gabinete e de a composição e o programa do governo serem virtualmente idênticos aos do governo anterior. Praticamente sem protesto dos islamistas, Abbas repetiu e proclamou que o governo aceitava as demandas do “Quarteto do Oriente Médio”: reconhecia Israel, renunciava à violência e aderia a acordos anteriores. Anunciou também que as forças de segurança na Cisjordânia continuariam a colaborar com Israel. Quando Washington e Bruxelas sinalizaram a intenção de cooperar com o novo governo, todos os sinais de alarme dispararam em Israel. O que Israel repetiu sempre, que os negociadores palestinos falam cada um só por si próprio – e que, por isso, nenhum acordo seria jamais cumprido – começara a perder sentido: a liderança palestina não apenas podia dizer que representa a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, como, também, conseguira cooptar o Hamás para que apoiasse um acordo negociado para Dois Estados, quase, praticamente, no contexto de Oslo. Sem demora, começariam as pressões sobre Israel para que negociasse a sério com Abbas. O formol começava a evaporar.
Nesse ponto, Netanyahu aproveitou o desaparecimento no dia 12 de julho de 2014 de três jovens israelenses na Cisjordânia como um homem se afogando agarra a um salva-vidas. Apesar das provas que recebeu das forças de segurança de Israel de que os três já estavam mortos, e não há até hoje prova alguma de que o Hamas tivesse tido qualquer envolvimento nesses eventos, Netanyahu imediatamente acusou diretamente o Hamas e, na sequência, lançou vasta campanha para “resgatar os reféns” em toda a Cisjordânia. Foi, de fato, operação de assalto e saque militar. Incluiu o assassinato de pelo menos seis palestinos, nenhum dos quais acusado de participação no desaparecimento dos três israelenses; prisões em massa, inclusive de deputados do Hamas e a recaptura de prisioneiros libertados em 2011; demolição de muitas casas e invasão e saque de outras; e variedade enorme de depredações do tipo que Israel elevou à posição de uma das belas artes ao longo de décadas de ocupação. Netanyahu desencadeou festival de fogos de artifício demagógicos contra todos os palestinos; o sequestro seguido de assassinato – foi queimado vivo – de um jovem palestino em Jerusalém não pode ser e não será separado dessa mesma campanha de incitamento ao ódio.
Por sua parte, Abbas falhou mais uma vez e não se opôs à operação israelense; até ordenou que suas forças de segurança continuassem a cooperar com Israel na caçada ao Hamas. O acordo de reconciliação foi posto sob grave pressão. Na noite de 6 de julho de 2014, um ataque aéreo israelense resultou na morte de sete militantes do Hamas. O Hamas respondeu com fogo sustentado de foguetes que invadiram o centro do território israelense; e escalaram novamente depois que Israel lançou campanha de massacre massivo. Ao longo do último ano, o Hamas esteve sempre em posição precária: perdeu suas instalações em Damasco e o status preferencial de que gozava no Irã, efeito de o grupo ter-se recusado a declarar apoio ao regime sírio; e enfrentou níveis sem precedentes de hostilidade, pelo novo regime militar egípcio. A economia subterrânea dos túneis entre Egito e Gaza foi sistematicamente atacada pelos egípcios, e pela primeira vez desde que passou a controlar politicamente o território, em 2007, o Hamas não conseguiu pagar em dia os salários das dezenas de milhares de funcionários públicos. O acordo de reconciliação com o partido Fatah foi a tentativa de trocar o próprio programa político pela sobrevivência imediata: em troca de conceder a arena política a Abbas, o Hamas conservaria o governo da Faixa de Gaza, com seus funcionários incluídos na folha de pagamentos da Autoridade Palestina e a passagem de fronteira com o Egito reaberta.
No evento, a troca que o Hamas esperava ver realizada não aconteceu; e, segundo Nathan Thrall do International Crisis Group, “a vida em Gaza piorou”. “A escalada real”, Thrall escreveu, “é resultado direto de Israel e o Ocidente terem se oposto à implementação do acordo de reconciliação entre os palestinos, de abril de 2014”. Ou, dito de outro modo: os que, dentro do Hamas, viram a crise como uma oportunidade para pôr fim ao governo de Weissglass, passaram a controlar o partido. Até agora, parecem ter com eles a maioria da população – porque preferem morrer sob fogo dos F-16, do que morrer mergulhados em formol.
Entre todos os uivos hipócritas - desta vez incluindo um covarde Cameron - sobre o direito de Israel à auto-defesa, e em face da rejeição categórica do direito equivalente dos palestinos, o ponto fundamental de que este é um ataque ilegítimo é muitas vezes perdido. Como argumentou com muita pertinência o advogado Noura Erakat, “Israel não tem qualquer direito de autodefesa, nos termos da lei internacional, contra território palestino ocupado”. O argumento de Israel, de que já não estaria ocupando a Faixa de Gaza, foi descartado por Lisa Hajjar, da Universidade da Califórnia, como uma autoemitida “licença para matar”.
Mais uma vez, Israel está a “aparar a grama” com impunidade, visando civis não-combatentes e infra-estrutura civil. Dada a afirmativa repetida dos israelenses de que usam as armas mais precisas disponíveis e miram atentamente os alvos, é impossível não concluir que os assassinatos são deliberadamente mirados. Segundo agências da ONU, mais de ¾ dos mais de 260 palestinos mortos até agora são civis, e mais de ¼ desses são crianças. A maioria foi “mirada’ e morta dentro das próprias casas: não podem ser apresentados como “dano colateral”, seja qual for a definição dessa expressão. Claro que os militantes palestinos miram cruelmente os centros israelenses mais populosos, embora seus ataques só tenham produzido uma única morte: um israelense que oferecia doces a soldados que pulverizavam a Faixa de Gaza. A Human Rights Watch criticou ambos os lados, mas, fiel à forma, acusou apenas os palestinos de crimes de guerra.
Mouin Rabbani é coeditor da Jadaliyya e pesquisador não residente do Centro de Estudos Humanitários e de Conflitos.