Richard Braude
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A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, dá uma entrevista coletiva em Roma, 11 de novembro de 2022. (Alberto Pizzoli/AFP via Getty Images) |
O ano começou com um estrondo: políticas de imigração racistas, agitação econômica, ataques do governo ao judiciário e repressão a ativistas. Mas esta não é os EUA de Donald Trump — é a Itália de Giorgia Meloni.
Não muito mais do que dois anos desde que sua coalizão de extrema direita chegou ao poder, o governo de Meloni é o mais duradouro da Itália em uma década. Para o horror da esquerda, ela inicialmente parecia ser a mulher forte e eficaz que a direita reacionária esperava. A economia parecia estável, apoiada pelos gastos pós-pandemia da União Europeia (UE), e ela conseguiu limpar a imagem de seu regime de fronteira xenófobo, vendendo-o como uma política de “senso comum” para um establishment da UE desesperado por estabilidade.
A chave para sua estratégia tem sido o Plano Mattei, uma manobra geopolítica para garantir novas fontes de energia em países africanos, enriquecer o capital italiano e fechar as rotas de migração. Particularmente no contexto de anos de flutuações no preço da energia devido à guerra na Ucrânia, o plano pareceu preencher todos os requisitos. Enquanto governos anteriores liderados por direitistas às vezes mancharam a aparência da Itália em um cenário global (por meio da intimidação grosseira de Matteo Salvini, por exemplo), Meloni se posicionou como uma parceira mais razoável para o establishment, consolidando laços com os conservadores da Europa enquanto forjava laços diplomáticos com líderes de muitos países africanos.
O plano evoca o nome de Enrico Mattei — o executivo anticolonial do petróleo que fechou acordos com países recém-independentes como a Argélia na década de 1960, antes de ser assassinado pela Máfia e pelo cartel do petróleo anglo-estadunidense. Mas o plano de Meloni tem mais semelhança com os acordos obscuros de figuras como Bettino Craxi e Silvio Berlusconi, cujas carreiras são lembradas mais por escândalos do que por estadismo.
Onde Mattei buscou parcerias enraizadas na solidariedade pós-colonial, a abordagem de Meloni é construída em pactos de bastidores com ditadores sangrentos para controlar a migração em nome da Europa. Depois que pogroms racistas na Tunísia forçaram milhares de negros a fugir do país norte-africano, a Itália ajudou a negociar um acordo bilionário do Fundo Monetário Internacional em troca de um controle violento de fronteiras no mar. A visita de Ursula von der Leyen à ilha de Lampedusa, no sul da Itália, no ano passado demonstrou a aprovação tácita do bloco, enquanto sessões de fotos sorridentes com Rishi Sunak e o subsequente premiê britânico Keir Starmer pareciam mostrar que o amor pelo controle de fronteiras pode superar divisões políticas.
Agora, essa estratégia está se desintegrando, e o governo de Meloni se recupera de uma série de escândalos interligados — de contribuir com criminosos de guerra a espionar de jornalistas e ativistas — enquanto a economia despenca.
Um jato particular para um senhor da guerra
Embora não esteja formalmente no Plano Mattei, são as negociações da Itália com a Líbia que se tornaram um ponto crítico. Desde a derrubada de Muammar Gaddafi apoiada pela OTAN em 2011, sucessivos governos italianos têm dado seu apoio ao instável governo de unidade da Líbia. As relações privilegiadas da Itália com a Líbia — que, em última análise, repousam em uma longa e violenta dominação colonial que só terminou com a derrota do fascismo — são úteis para uma elite europeia que prefere ficar longe da luta entre facções militarizadas que reinou por mais de uma década, mas está ansiosa para alistar o país do Norte da África como agentes de fronteira terceirizados. De fato, a agência de fronteira europeia, Frontex, se gaba da “história de sucesso” italiana nos últimos anos, com a chegada de migrantes por mar caindo em mais de 50%, graças aos acordos com os governos da Tunísia e da Líbia. Até mesmo o ex-ministro do Interior, de centro-esquerda, Marco Minniti — que negociou os acordos iniciais com os senhores da guerra líbios em 2016 — elogiou as políticas internacionais de Meloni.
Apoiar o governo de unidade líbio consequentemente também significa apoiar seu braço armado, as Forças Especiais de Dissuasão (SDF), um grupo que supostamente se envolveu em tudo, desde tortura e tráfico de pessoas até a supressão violenta de uma conferência de quadrinhos. Entre os líderes das SDF está Osama Al-Masri, um homem que é acusado de uma longa lista de atos horríveis de violência e extorsão, mas que, no entanto, está foragido.
Muito acostumado a viagens de negócios e passeios, em 6 de janeiro, Al-Masri voou de Trípoli para Londres. Após paradas na Alemanha e em Bruxelas, ele chegou a Turim para assistir a uma partida de futebol da Juventus. Em 18 de janeiro, no entanto, após uma verificação de rotina na fronteira, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão para Al-Masri, acusando-o de crimes de guerra, assassinato, escravidão e crimes contra a humanidade. A polícia italiana o prendeu no dia seguinte — mas a vitória durou pouco. Apenas três dias depois, o governo o libertou aparentemente por um detalhe técnico, alegando que a Interpol não havia notificado o Ministério da Justiça. Al-Masri não só foi libertado, como o governo italiano providenciou um jato do serviço secreto para levá-lo de volta a Trípoli, onde ele foi recebido por seus apoiadores como um herói.
O escândalo desencadeou uma tempestade política. O Ministro do Interior Matteo Piantedosi tentou fazer tudo passar como uma deportação de rotina de um imigrante ilegal perigoso, mas acusações criminais foram apresentadas contra Meloni e o Ministro da Justiça Carlo Nordio por seu papel na libertação de Al-Masri, e os partidos de oposição acabaram pedindo um voto de desconfiança.
O Parlamento foi suspenso extraoficialmente por vários dias enquanto a União Europeia condenava a Itália por violar o mandado do TPI. Enquanto isso, ativistas que sobreviveram aos centros de detenção da Líbia se apresentaram com depoimentos angustiantes, implicando diretamente a administração de Meloni no apoio a um torturador conhecido. O tribunal em Haia também abriu uma investigação sobre potenciais consequências criminais das ações do governo italiano. Papagaio de Trump, o partido de Meloni atacou os “juízes vermelhos” na Itália e em Haia que estariam perseguindo-a.
Empresas de tecnologia, espionagem e resgate de migrantes
Enquanto o escândalo Al-Masri ainda se desenrolava, foi revelado que, há meses, dezenas de jornalistas e ativistas foram contatados por plataformas de tecnologia, alertando-os de que seus telefones foram infectados com um spyware de uso militar da Paragon. Uma empresa de tecnologia israelense-estadunidense que também foi exposta no ano passado por ter um contrato com a ICE, o spyware da Paragon permite acesso total ao dispositivo de um alvo em tempo real.
O primeiro a falar foi Husam El Gomati, um ativista líbio que vive na Suécia e há muito critica o papel da Itália na Líbia e o atual governo do país africano. Logo depois. Francesco Cancellato — o editor do Fanpage.it que ganhou destaque no ano passado após uma investigação sobre fascistas na ala jovem do próprio partido de Meloni — afirmou que também havia sido espionado. Em seguida, vieram os membros do navio de resgate da ONG Mediterranea, alguns dos maiores críticos das políticas da Itália na Líbia, que até foram alvejados pela Guarda Costeira da Líbia (financiada pela Itália) enquanto conduziam operações de resgate de migrantes. Luca Casarini, um membro do Mediterranea e ativista de longa data nos movimentos sociais da Itália, descobriu que seu telefone foi infiltrado pela primeira vez no início de 2024. David Yambio também expôs seu caso — o mesmo ativista e refugiado sudanês que acusou pessoalmente Al-Masri de tortura. Foi revelado que o capelão do navio também foi espionado por mais de um ano, com questões levantadas sobre se o Papa ficou a salvo da espionagem do governo. A Mediterranea oficializou uma notificação de um crime aos promotores públicos, assim como o sindicato dos jornalistas, defendendo Cancellato.
A Paragon anunciou que rescindiu o contrato com a Itália por causa de uma violação nos termos de serviço — o que significa que a Itália usou o software ilegalmente para espionar ativistas e jornalistas. O equivalente italiano da CIA, embora negasse que espionou ativistas e jornalistas, na verdade admitiu usar o spyware. Luca Ciriani, que é líder da Fratelli d’Italia no Senado, foi ainda mais longe, não apenas alegando que o contrato ainda está ativo e que o governo não espionou jornalistas, mas também ameaçando tomar medidas legais contra qualquer um que dissesse isso — o que, em termos de liberdades democráticas, é indiscutivelmente tão ruim quanto.
Membros do governo — notavelmente o vice-premiê Salvini —se esforçam para construir uma narrativa diferente, transferindo a culpa para uma disputa de poder dentro dos serviços secretos italianos, mas instituições que vão dos tribunais à polícia prisional podem estar igualmente envolvidas. Na semana passada, Meloni se recusou a ser questionada no parlamento sobre o assunto, citando a lei de segredos de Estado — mesmo quando Nordio rompeu as fileiras, fornecendo suas próprias respostas em uma tentativa de eximir seu Ministério da Justiça das acusações.
Iniciando uma guerra comercial sem proteção alguma
Esses escândalos não são apenas crises internas ou deslizes burocráticos — eles expõem a profunda cumplicidade entre o capital italiano e os piores aspectos do poder imperial. Para a classe trabalhadora internacional — particularmente para os migrantes que enfrentaram os brutais centros de detenção da Líbia — essas são questões de vida ou morte.
Embora os parceiros europeus de Meloni possam ficar felizes em apoiar a posição da Itália como guarda de fronteira do Mediterrâneo, isso deve prosseguir sem que qualquer cumplicidade em crimes de guerra venha à tona. A chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tenta manter um pacto difícil entre os liberais e a direita no novo parlamento europeu diante do desrespeito descarado de Trump pelo direito internacional e pela diplomacia. O apoio da Itália a Trump em seus ataques ao Tribunal Penal Internacional agora parece embaraçoso e egoísta, dado que o próprio governo de Meloni está sendo investigado.
Além disso, a crise interna atinge o cerne da política fundamental de Meloni precisamente no momento em que a economia italiana se mostra menos robusta do que parecia inicialmente. Após um período inicial de crescimento do PIB, os últimos seis meses registraram crescimento quase zero, com 2024 fechando em 0,5% — e as projeções oficiais do governo para o próximo ano são apenas um pouco melhores (0,9%). Estatísticas muito alardeadas sobre a queda do desemprego estão se mostrando otimistas demais, encobrindo uma realidade de pobreza e precariedade. Se o emprego aumentou ligeiramente para 62%, com alguns pequenos incrementos no salário médio, isso não foi suficiente para afastar os efeitos da inflação: os salários reais caíram 5% em média desde que o governo de Meloni chegou ao poder.
A má gestão crônica na administração pública tem frustrado as esperanças de que os fundos de estímulo europeus pós-COVID-19 possam dar um impulso ao consumo. E apesar dos objetivos de longo prazo de facilitar os preços do gás por meio das manobras geopolíticas descritas acima, os preços da energia estão realmente em alta, com um efeito cascata na já sofrida indústria italiana, especialmente a indústria automobilística. Mais importante ainda, salários reais deprimidos e manufatura instável são as piores circunstâncias para começar uma guerra comercial com os Estados Unidos, quando o consumo interno pode muito bem se tornar a chave para criar demanda e incentivar o investimento interno.
Meloni tentou se posicionar como uma “ponte” entre o establishment europeu e o radicalismo de extrema direita de Trump. No entanto, isso também abre uma nova série de problemas, não apenas sobre a guerra na Ucrânia, mas também para as próximas eleições na Albânia — outro ator-chave na jogada geopolítica de Meloni, mas onde o círculo de Trump parece apoiar o candidato rival. De qualquer forma, a capacidade da Itália de se mover independentemente da Europa durante uma guerra comercial com os Estados Unidos é extremamente limitada: as opções são liderar o bloco europeu ou ficar para trás. Ainda veremos até que ponto a classe capitalista europeia estará disposta a fechar os olhos para auxiliar criminosos de guerra e espionar refugiados e grupos da sociedade civil ainda. Se o governo de Meloni não consegue nem garantir o crescimento econômico, pode ser que uma brecha esteja aparecendo na armadura dos pós-fascistas.
Colaborador
Richard Braude é um tradutor, escritor e organizador baseado em Palermo, Itália.
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