Como ficaria Campos Neto se a lei que deu autonomia operacional ao BC criminalizasse o descumprimento das metas de inflação?
André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Após a digestão inicial do projeto de lei que regulamenta o "regime fiscal sustentável", a Faria Lima se ressentiu da eliminação da punição criminal (ou enforcement), se a meta fiscal for descumprida. Traduzindo: "Se não conseguir reduzir os privilégios fiscais, o governo deverá cortar gastos para fechar as contas, sob pena de responder por crime de responsabilidade".
Criminalizar o descumprimento de meta fiscal é uma má ideia; além de gerar apagão das canetas, distorce a definição de metas fiscais, como ocorreu durante a vigência do teto de gastos.
O governo Temer elevou o gasto primário antes de aplicar a regra do teto para não sofrer sua incidência efetiva. Já o governo Bolsonaro violou a regra constitucional em cerca R$ 800 bilhões, bem como adotou metas fiscais baixas para surpreender positivamente. Nem o calote dos precatórios, nem a alienação acelerada (e questionável) de ativos do Estado, nem o uso eleitoreiro da política fiscal em 2022 geraram clamores moralizantes por parte do mercado financeiro.
Imaginemos que a LC 179/2021, que conferiu autonomia operacional ao BC, fosse detalhada como a Lei de Responsabilidade Fiscal, incluindo-se a criminalização do descumprimento da meta anual de inflação. Como ficaria a situação de Campos Neto ao descumprir, pelo terceiro ano consecutivo, a meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional?
A ficha corrida do atual presidente do BC o condenaria sumariamente: atuação político-eleitoral, manifestação sobre política fiscal e agenda de governo eleito, substituição arbitrária da missão de fomentar o pleno emprego (prevista em lei) pela ambígua "fomentar o bem-estar econômico da sociedade"; omissão de dados de expectativas de desemprego do boletim Focus, adoção de meta implícita (ao alegar que atingir a meta em 2023 levaria a Selic a 26,5%) e extensão do horizonte relevante da política monetária, ambos sem a autorização do Conselho Monetário Nacional, e por aí vai.
Dentre os motivos para pedir a demissão de Campos Neto não está o descumprimento a meta de inflação porque se entende (corretamente) que o BC não controla plenamente os preços da economia. A mesma régua deve valer para a política fiscal.
O Ministério da Fazenda não tem controle total sobre as contas públicas. As receitas dependem de variáveis incontroláveis, como atividade econômica, mercado de trabalho e cenário externo. O controle sobre gastos depende da correlação de forças no Congresso e da não ocorrência de eventos imprevistos, como a pandemia ou desastres naturais, que reclamam atuação do setor público.
O descumprimento de meta serve para orientar a ação do gestor público. Em vez de criminalizar, o novo arcabouço fiscal prevê duas punições corretivas: um Orçamento mais apertado no ano seguinte para corrigir o desequilíbrio; e o custo reputacional (explicações ao Senado) que pode minar a credibilidade da autoridade fiscal, contaminar expectativas e dificultar a realização das intenções da política fiscal.
Nesse sentido, uma "lei de responsabilidade monetária" (sem criminalização de desvio de meta) ajudaria a coordenar as políticas econômicas. Afinal, a calibragem da taxa Selic e a política cambial do BC (gestão das reservas cambiais e das operações de swap) afetam a trajetória da dívida pública que o Copom toma como um "dado" da política fiscal em seus modelos. Que tal tornar o BC corresponsável pelo controle da dívida pública? Ou estabelecer metas de substituição de operações compromissadas por depósitos voluntários?
O uso de dois pesos e duas medidas tem claro viés ideológico e serve para que nossa elite financeira invista contra a democracia sempre que o resultado das urnas não lhe agradar.
Criminalizar a política econômica é editar, mais uma vez, a crônica do golpe anunciado.
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