29 de dezembro de 2019

Uma década perdida para a desigualdade

Não há meritocracia sem nivelar as oportunidades

Pedro H. G. Ferreira de Souza


Crianças brincam em local próximo a restos de lixo no prédio que antes abrigava sede do IBGE na favela da Mangueira, no Rio Felipe. (Dana/Associated Press)

Os anos 2010 foram mais uma década perdida para o Brasil. Graças a uma recessão brutal e a uma recuperação anêmica, chegaremos a 2020 com PIB per capita real menor que o de dez anos atrás. Não à toa, muitos debruçam-se diariamente sobre indicadores econômicos à procura de sinais de vida.

Nosso atoleiro possui, no entanto, um lado muito menos discutido, mas tão sombrio quanto a estagnação econômica: do ponto de vista do combate à desigualdade de renda, os anos 2010 foram mais perdidos ainda. A acanhada redistribuição vivida antes não só chegou ao fim como foi revertida.

Quase todos sofreram com a crise, porém quem mais perdeu foram os mais vulneráveis. Em 2018, os 50% mais pobres ainda estavam afundados na crise, com renda menor do que em 2015, já que o crescimento do período ficou quase todo nas mãos dos 10% mais ricos.

A concentração de renda no topo segue inabalável como um dos nossos traços mais marcantes. Em todas as comparações internacionais, o Brasil permanece entre os países mais desiguais do mundo, acompanhado por nações do Oriente Médio, vizinhos sul-americanos e outros suspeitos de sempre.

Há quem diga que nada disso é um problema. A desigualdade seria irrelevante, e nosso foco deveria recair apenas na erradicação da pobreza ou na promoção da igualdade de oportunidades (bom, até o momento ninguém defende publicamente a desigualdade de oportunidades.)

O argumento é descabido porque apenas a redução da desigualdade permitiria a realização desses objetivos. No primeiro caso, os motivos são óbvios. Tributar os mais ricos e transferir recursos para os mais pobres é sempre receita segura para diminuir a pobreza —e hoje sabemos que as consequências dessas medidas para a economia são bem menos graves do que se temia há 30 anos.

Raciocínio análogo vale para as oportunidades: países mais igualitários possuem maior mobilidade social entre gerações, e vice-versa. Faz sentido: quando a desigualdade é muito alta, os recursos que os ricos investem em seus filhos são tão superiores aos dos pobres que se torna impossível falar seriamente em meritocracia. Afinal, como esperar que a educação pública nivele oportunidades quando as mensalidades das melhores escolas privadas custam mais do que o dobro do PIB per capita, como é o nosso caso?

Por que então é tão difícil reduzir a desigualdade? Há motivos históricos e econômicos, mas os principais obstáculos são políticos. É difícil impedir que o poder econômico se converta em influência política quando a concentração de renda é alta. As assimetrias de poder expressam-se na capacidade de lobbies, bancadas e corporações de pautar a agenda política, reivindicar vantagens e vetar mudanças, sempre embalando benefícios privados na retórica grandiloquente do desenvolvimento nacional.

Em algum grau, isso ocorre em todas as democracias. Nunca é fácil promover redistribuição em condições normais. Não por acaso, nove entre dez governantes apostam no crescimento para diluir os conflitos sociais, o que nem sempre dá certo, como atestam exemplos recentes. Só que nosso caso é dramático porque a desigualdade é extrema e persistente, e o crescimento é decepcionante há décadas.

Sair dessa encruzilhada é muito mais difícil do que propor políticas e programas específicos. O debate sobre reforma tributária serve como exemplo: há abundantes evidências de que podemos aumentar muito a arrecadação e a progressividade do imposto de renda e diminuir a tributação sobre bens e serviços, o que beneficiaria a maior parte da população sem prejuízo da atividade econômica.

Politicamente, no entanto, não avançamos nessa direção há décadas, pelo contrário. Nenhuma das duas (boas) propostas de reforma em discussão no Congresso toca no assunto, preocupando-se apenas com a racionalização e desburocratização dos tributos indiretos.

Não há atalhos se quisermos ser menos desiguais. Como nem começamos a fazer o dever de casa, temos que correr contra o relógio para que os anos 2020 não sejam mais uma década perdida no aspecto distributivo.

* As opiniões aqui emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista do Ipea

Sobre o autor

Doutor em sociologia (UnB), pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e autor de 'Uma História de Desigualdade: A concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, ganhador do Prêmio Jabuti 2019 nas categorias 'Humanidades' e 'Livro do Ano' (ed. Hucitec/Anpocs)

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