22 de fevereiro de 2025

A democracia está à beira do abismo na América Central

As frágeis estruturas democráticas liberais estabelecidas na década de 1990 após as guerras civis na Guatemala e em El Salvador estão há muito tempo esgotadas. O que está por vir em ambos os países é incerto e pode ser muito desastroso.

Hilary Goodfriend


O presidente salvadorenho Nayib Bukele discursa em 14 de janeiro de 2025, em San Salvador, El Salvador. (Alex Peña/Getty Images)

Os últimos quinze anos testemunharam uma tremenda agitação política na América Central. El Salvador caiu sob um regime repressivo e autoritário, enquanto Honduras se libertou de um; o presidente Daniel Ortega se isolou cada vez mais de antigos aliados sandinistas na Nicarágua; e na Guatemala, uma onda popular de indignação contra uma classe dominante entrincheirada viu um improvável social-democrata assumir a presidência.

Em meio a ditaduras de fato, reformistas sitiados e demandas populares por mudanças, a infraestrutura política instalada como parte da transição pós-guerra da América Central na década de 1990 perdeu amplamente a legitimidade. Essa exaustão liberal é indicativa de uma crise mais profunda, a da economia política neoliberal pós-guerra do istmo — que, como o neoliberalismo no âmbito global, desestabilizou e estagnou. Analiso abaixo essa crise através da perspectiva dos eventos políticos recentes em El Salvador e Guatemala. Para isso, começo com a transição para a democracia que se seguiu à derrota dos movimentos revolucionários da região na década de 1990.

A transição

Por décadas ao longo do final do século XX — trinta e seis anos no caso da Guatemala — as repúblicas da América Central foram abaladas por guerras civis brutais entre regimes militares anticomunistas apoiados pelos EUA e exércitos de libertação nacional lutando para libertar as massas empobrecidas do istmo da opressão oligárquica e da intervenção imperialista. Na década de 1990, no entanto, a região começou a transição das ditaduras para a democracia liberal e o regime de acumulação neoliberal. Na Nicarágua, a revolução sandinista de 1979 foi seguida por uma sangrenta “Guerra dos Contras” com paramilitares apoiados pelos EUA, que durou uma década, contra o governo recém-estabelecido, finalmente forçando uma eleição em 1990 que viu os sandinistas perderem o poder. Em El Salvador e na Guatemala, acordos de paz intermediaram o fim das lutas de libertação nacional em 1992 e 1996, respectivamente.

Como observa o historiador Greg Grandin, “o afastamento da América Latina em relação às ditaduras militares na década de 1980 foi menos uma transição do que uma conversão para uma definição particular de democracia”. De uma demanda amplamente concebida por autodeterminação, desenvolvimento econômico equitativo e bem-estar social, a democracia foi reduzida a uma questão legal de direitos políticos e liberdades de mercado. Em 1988, Franz Hinkelammert viu logo no início que a transição democrática era, essencialmente, um eufemismo para ajuste estrutural. Junto com o “Consenso de Washington” e prescrições políticas para privatização, desregulamentação e liberalização comercial, a democracia se tornou “um pacote de medidas a serem aplicadas”. Sob o paradigma imposto pelos Estados Unidos, seus instrumentos financeiros internacionais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, e elites locais que se beneficiaram da reestruturação, são “os negócios e o mercado [que] produzem liberdade, e a democracia a administra”. Essa nova direita tecnocrática descartaria seus esquadrões da morte fascistas e sua ditadura em favor do pragmatismo de aço do capital.

Em El Salvador e na Guatemala, a transição gerenciada após décadas de atrocidades estatais foi realizada por meio de um modelo de “verdade e reconciliação” modelo que foi aplicado primeiro no Cone Sul no início dos anos 1980 para pôr fim aos movimentos de guerrilha daquela região e às sangrentas campanhas contrarrevolucionárias apoiadas pelos EUA nas mãos de ditaduras militares implacáveis. Grandin mapeia como as primeiras comissões da verdade na Bolívia e na Argentina pretendiam levar a processos contra autoridades que perpetraram as piores atrocidades. No entanto, com os movimentos revolucionários derrotados, os militares vencedores dessas guerras de contrainsurgência mantiveram sua impunidade. Como resultado, a missão dessas comissões mudou, passando de responsabilizar legalmente os perpetradores pela violência política para questões aparentemente apolíticas de afirmação de valor, cura nacional e superação da polarização. No discurso oficial, as comissões da verdade foram transformadas em instrumentos para restaurar uma ordem liberal fraturada.

Na leitura de Grandin, a Guatemala resistiu a esse molde. Ele argumenta que a determinação da Comisión de Esclarecimiento Histórico (CEH, comissão da verdade da Guatemala de 1999) de que a campanha de terror estatal apoiada pelos EUA que tirou a vida de centenas de milhares de indígenas guatemaltecos atingiu o limiar do genocídio foi uma postura inequivocamente política, levando em consideração a história de extrema desigualdade do país para condenar a classe dominante racista e pedir uma ampla reestruturação do Estado. Mas o Estado guatemalteco enfrentou as conclusões da CEH com silêncio, protegendo os perpetradores e negando sistematicamente justiça às suas vítimas. Como mostra a acadêmica guatemalteca Gabriela Escobar Urrutia, a memória do conflito na Guatemala se estabeleceu amplamente nos mesmos padrões desmobilizadores que prevaleciam em outros lugares, promovendo uma noção de vítimas despolitizadas e passivas de uma violência irracional e deshistoricizada.

O derramamento de sangue na Guatemala atingiu uma escala nunca amtes vista no hemisfério. O conflito seguiu o golpe apoiado pela CIA contra o presidente Jacobo Arbenz em 1954, uma das intervenções seminais de mudança de regime dos EUA do século XX, que derrubou a revolução democrática iniciada com a eleição de Juan José Arévalo em 1944 e, com ela, um projeto social de reforma agrária e democratização em favor do governo militar anticomunista e do terror de Estado para manter a economia agrária exportadora profundamente racializada do país. Quando a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) assinou um acordo com o governo em 29 de dezembro de 1996, a guerra havia causado um dano espantoso. A comissão da verdade de 1999 relatou 150.000 execuções extrajudiciais e 45.000 desaparecimentos, 93% deles executados pelo Estado, e determinou que o ataque deliberado e indiscriminado às comunidades indígenas maias por operações de terra arrasada entre 1981 e 1983, sob o comando do general Efraín Ríos Montt, equivalia a genocídio.

O conflito na Guatemala foi prolongado e difuso, e os insurgentes estavam frequentemente divididos e dispersos por um território grande e diverso. Na pequena e densamente povoada El Salvador, o exército rebelde tinha cerca de dez mil homens, ocupou importantes faixas de território liberado no campo e executou uma grande ofensiva na capital no final de 1989 que ajudou a forçar as negociações. No entanto, ambas as nações sofreram com campanhas de contrainsurgência apoiadas pelos EUA que arrasaram aldeias inteiras, massacraram civis, torturaram e executaram dissidentes e promoveram um espetáculo grotesco de violência estatal. Em El Salvador, a comissão da verdade de 1993 contabilizou cerca de 75.000 mortes e dez mil desaparecimentos, atribuindo apenas 5% da violência às guerrilhas.

Em relação à URNG, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador entrou nas negociações de paz a partir de uma posição de força. Os insurgentes reivindicaram os Acordos de 1992 como uma vitória, conquistando a desmilitarização do Estado, a desmobilização dos insurgentes e uma tênue infraestrutura liberal para a democracia representativa. A FMLN se tornou um partido político bem-sucedido, ganhando uma parcela crescente de legisladores e prefeituras ao longo das décadas de 1990 e 2000. Mas o período revolucionário do Terceiro Mundo havia arrefecido, e a contrarrevolução neoliberal estava em ascensão. Reformas socioeconômicas para tratar as causas estruturais da guerra civil, como distribuição de terras e política industrial progressiva, foram deixadas de fora da mesa de negociações e, enquanto a FMLN ganhou experiência e apoio nas urnas, quatro governos consecutivos de direita implementaram devastadoras reformas liberalizantes.

Na Guatemala, o acordo veio ainda mais tarde. Naquela época, a poeira do colapso da União Soviética havia baixado, e muitos movimentos de esquerda haviam trocado suas aspirações revolucionárias por organizações sem fins lucrativos, empresas socialmente responsáveis ​​e uma preocupação abstrata com os direitos humanos. Os Acordos de Paz levaram à desmobilização insurgente e à participação na vida cívica, à restauração de eleições democráticas e ao reconhecimento de identidades e direitos indígenas. Mas, assim como em El Salvador, desigualdades materiais fundamentais permaneceram sem solução. A esquerda política da Guatemala — e os partidos políticos em geral — assumiram formas institucionais mais fracas e provisórias.

O resultado em ambas as nações foi um cenário de vasta desigualdade e empobrecimento. A reestruturação neoliberal criou um novo papel subordinado para a região em uma economia globalizada dominada pelos EUA, fornecendo mão de obra barata para fábricas de montagem e matérias-primas para exportação. As indústrias agroexportadoras e extrativas continuaram sendo um pilar da acumulação na Guatemala, onde a concentração, a contaminação ambiental e as desapropriações no campo para dar lugar a megaprojetos de mineração e energia e monoculturas continuam sendo uma fonte constante de conflito e deslocamento. A maior parte da população, no entanto, foi excluída desse modelo. Em 2010, cerca de 60% dos salvadorenhos e 75% dos guatemaltecos trabalhavam fora dos mercados formais de trabalho em atividades como vendas ambulantes, serviços, construção e agricultura, sem acesso a benefícios ou garantias de salário mínimo.

As crescentes reservas de jovens da classe trabalhadora excluídos e despossuídos por esse modelo predatório de acumulação foram empurrados para as faixas mais baixas do mercado de trabalho dos EUA como trabalhadores migrantes criminalizados ou encontraram subsistência nos crescentes mercados ilícitos da região, cada vez mais dominados por gangues criminosas nascidas em prisões dos EUA e bairros de imigrantes da classe trabalhadora e exportados para a América Central por meio de políticas de deportação em massa ao longo da década de 1990. E, apesar dos ganhos políticos de atores como a FMLN de El Salvador e diversos movimentos sociais para se defender contra os novos cercamentos, o poder executivo e judicial permaneceram firmemente nas mãos da burguesia oligárquica.

Esta é a economia política do pós-guerra que finalmente cedeu no final dos anos 2000, quando a hegemonia neoliberal sofreu um golpe crítico com a crise financeira global e a recessão subsequente. Em seu rastro, a política, como de costume, foi virada de cabeça para baixo em ambas as nações, preparando o caminho para as crises democráticas que cada uma enfrenta hoje.

El Salvador

A vitória presidencial da FMLN em 2009 representou uma primeira ruptura da ordem do pós-guerra, uma rejeição retumbante das políticas predominantes de austeridade, dependência e corrupção em favor de uma alternativa social-democrata em um momento de política de esquerda ascendente em todo o hemisfério. Começando no final da década de 1990, a “Maré Rosa” de governos progressistas foi eleita democraticamente na América Latina, respondendo aos fracassos do neoliberalismo com gastos sociais robustos e políticas redistributivas. Ao longo de dois mandatos (2009–2014 e 2014–2019), a FMLN promulgou grandes investimentos sociais e reformas democráticas: removeram taxas de serviço para hospitais públicos e criaram uma rede nacional de clínicas comunitárias gratuitas e voltadas à medicina preventiva; apoiaram cooperativas agrícolas nacionais; forneceram refeições e uniformes escolares públicos gratuitos e de origem local; estabeleceram serviços e proteções para grupos historicamente excluídos, incluindo mulheres, crianças, comunidade LGBTQIAPN+ e salvadorenhos indígenas; mecanismos de transparência governamental obrigatórios; e muito mais. Mas a sagacidade política que permitiu ao partido alcançar o poder presidencial contribuiria para sua queda. Em 2019, a FMLN foi ultrapassada por um desertor ambicioso apoiado por uma coalizão ascendente de interesses burgueses que a própria FMLN havia fortalecido em um esforço para enfraquecer o partido tradicional de direita e seus patrocinadores oligárquicos.

O presidente Nayib Bukele, um publicitário da geração Y e ex-prefeito pelaa FMLN cuja família de ascendência palestina fazia parte de uma fração favorecida do capital comercial, habilmente se posicionou como um outsider insurgente. Ele capitalizou a agressiva campanha de desestabilização da direita contra a governança de esquerda para desacreditar ambos os lados, traçando falsas equivalências e se autointitulando um salvador em meio a um establishment político irremediavelmente corrupto. Onde a FMLN falhou em transformar a vida cotidiana de muitos salvadorenhos no que diz respeito a insegurança econômica e a violência social, Bukele prometeu pessoalmente a libertação.

A eleição de Bukele provou ser a segunda ruptura com a ordem do pós-guerra. Ele desdenhou dos Acordos de Paz afirmando que eram uma “farsa”, classificando-os como um pacto cínico projetado para beneficiar vilões conspiradores — em sua narrativa, tanto as guerrilhas quanto a extrema direita — às custas de uma população civil desamparada, apolítica e vitimizada. Na prática, ele reverteu de maneira constante seus modestos ganhos. Em seu primeiro ano como presidente, invadiu a legislatura com os militares para forçar uma votação sobre um pacote de empréstimos para financiamento de segurança. Ele aproveitou a pandemia de COVID-19 para declarar um Estado de exceção militarizado, desencadeando uma crise constitucional prolongada enquanto a Suprema Corte buscava conter os excessos do executivo. Depois de garantir a maioria legislativa nas eleições de meio de mandato em 2021, seu partido demitiu e substituiu ilegalmente o procurador-geral e todos os cinco magistrados da Câmara Constitucional do tribunal superior, juntamente com centenas de juízes de tribunais inferiores. Quando o acordo secreto de Bukele com as principais gangues criminosas do país para reduzir a taxa de homicídios entrou em colapso em março de 2022 e os assassinatos aumentaram horrivelmente, seu partido ordenou outro Estado de exceção, suspendendo os direitos constitucionais ao devido processo legal, representação legal, presunção de inocência, liberdade de associação e muito mais. Desta vez, ele não encontrou oposição dos tribunais. O Estado de exceção segue em vigor desde então.

A “guerra contra as gangues” de Bukele viu cerca de 80.000 pessoas presas em buscas massivas e indiscriminadas somente nos dois primeiros anos. A repressão militarizada expulsou muitos dos gangsters de rua de suas esquinas, proporcionando um apreciado alívio às comunidades da classe trabalhadora alvos de pequenas extorsões e assoladas por violentas guerras territoriais. Esse sucesso aparente, que esconde a cumplicidade da administração com o narcotráfico de alto nível e o crime organizado, rendeu a Bukele boa vontade suficiente para engajá-lo em uma tentativa de reeleição que desafiava a constituição em fevereiro de 2024. Ao mesmo tempo, ele colocou suas habilidades publicitárias para funcionar, projetando uma imagem internacional de linha dura no combate ao crime e aprimorando sua marca como um ícone de extrema direita. Ele foi a atração principal da Conservative Political Action Conference (CPAC) em fevereiro de 2024, concedeu várias entrevistas a Tucker Carlson e cortejou agressivamente o grupo MAGA dos EUA, recebendo Carlson, Donald Trump Jr. e o congressista Matt Gaetz, que logo cairia em desgraça, para sua posse em junho de 2024 que marcou o início de um segundo mandato inconstitucional; Gaetz mais tarde estabeleceu o “US-El Salvador Caucus” no Congresso para promover a agenda e a imagem de Bukele em Washington.

Neste período, El Salvador obteve a maior taxa de encarceramento do mundo. Muitos prisioneiros foram mantidos por quase três anos sem julgamento, sem acesso a advogados, visitas familiares, cuidados médicos e até mesmo comida suficiente, enquanto alguns são submetidos à violência e tortura pelas autoridades. Grupos de direitos humanos identificaram pelo menos 26.000 inocentes entre os detidos, com mais de 360 ​​mortes confirmadas atrás das grades, muitas devido a negligência médica, outras indicando homicídio. Ordens judiciais para libertação por motivos humanitários ou outros são rotineiramente ignoradas pelas autoridades prisionais.

Após a vitória presidencial de Bukele em 2019, importantes interesses oligárquicos se bandearam para seu campo, enquanto os políticos de direita que se recusaram foram levados ao exílio ou presos. Mas o verdadeiro inimigo de Bukele sempre foi a esquerda. Ele começou com processos gerais de ex-membros do gabinete da FMLN, autoridades eleitas e líderes partidários por acusações forjadas de corrupção. Sob o Estado de exceção, o alcance se ampliou para atingir ex-combatentes e líderes de movimentos sociais, incluindo comunidades organizadas defendendo seus territórios de investidores apoiados pelo governo e empreendimentos extrativos.

À medida que a administração carente de dinheiro avança com demissões em massa e austeridade, os líderes sindicais do setor público foram recebidos com repressão e prisão; mais de 22.000 trabalhadores foram demitidos desde 2019 e pelo menos dezesseis líderes sindicais foram presos desde 2022. Junto com os vendedores ambulantes informais, esses setores estão na linha de frente da estratégia do regime de acumulação por desapropriação. Tendo falhado em projetar uma economia em torno do Bitcoin após tornar a volátil criptomoeda em moeda legal em 2021, ele está usando seu Estado policial para tirar os pobres do litoral e dos centros urbanos do país para abrir caminho para a especulação imobiliária, o turismo internacional e a exploração de recursos naturais. Após a recente visita do Secretário de Estado Marco Rubio, Bukele lançou um novo, embora improvável, empreendimento: alugar seu sistema penal para os Estados Unidos armazenarem deportados de qualquer nacionalidade e até mesmo cidadãos americanos.

Bukele responde aos críticos apontando para sua popularidade persistente, tendo garantido sua reeleição em fevereiro de 2024 com 83% dos votos. Embora a estratégia incomparável de comunicação e publicidade internacional do presidente sem dúvida desempenhe um papel importante na sustentação de seu apoio, grande parte da população estava disposta a tolerar a repressão em troca de um alívio dos tormentos das gangues. Esse apoio, no entanto, não é incondicional. Nas eleições gerais de fevereiro de 2024, os legisladores e prefeitos de Bukele receberam significativamente menos votos do que ele, mesmo depois de reescreverem todo o sistema eleitoral do pós-guerra para favorecer seu partido e efetivamente eliminar a oposição. Desde então, seu partido “Novas Ideias”, que detém uma supermaioria na legislatura e 64% dos governos municipais, tem sido atormentado por escândalos de corrupção, enquanto o descontentamento aumenta diante de uma crise crescente com o aumento do custo de vida e a recente decisão imprudente e impopular de anular a histórica proibição de mineração de metais do país em 2017. No entanto, até agora, resta pouco de qualquer via democrática para um desafio eleitoral.

Guatemala

Os anos 2010 viram uma série de desafios a décadas de silêncio estatal, supressão e negação das atrocidades da guerra, e ao governo racista e corrupto da elite na Guatemala. Talvez o mais emblemático, esses desafios incluíram o julgamento de 2013 do General Ríos Montt por genocídio e as mobilizações em massa de 2015 que derrubaram o presidente Otto Pérez Molina em meio a um escândalo de corrupção metastático. Ambos os eventos foram conquistas históricas contra a impunidade no país, ao mesmo tempo em que revelaram os limites nítidos da justiça sob o sistema do pós-guerra. Essas contradições culminaram com a presidência de Bernardo Arévalo, eleito em 2023.

Em 2001, comunidades sobreviventes e organizações de direitos humanos entraram com uma ação judicial contra o General Efraín Ríos Montt, cujo mandato sangrento como presidente de fato da Guatemala de 1982 a 1983 foi encerrado por golpes militares. A ação judicial citou o assassinato de 1.771 indígenas Maya Ixil guatemaltecos e o deslocamento forçado de dezenas de milhares de outros mais sob sua liderança como comandante-chefe, pelo qual o Presidente Ronald Reagan lamentou que o general estava “tendo uma má reputação”. Mas Ríos Montt foi protegido de processo como um congressista em exercício com o partido de extrema direita Frente Republicana Guatemalteca que ele fundou em 1989. Foi somente após o término de seu mandato em 2012 que a Procuradora Geral Claudia Paz y Paz apresentou uma acusação contra ele por genocídio e crimes contra a humanidade. O caso foi a julgamento em 2013.

A acusação, que também teve como alvo o ex-diretor de inteligência militar José Mauricio Rodríguez Sánchez, foi um evento dramático e decisivo na história da Guatemala, um acerto de contas há muito buscado pelas comunidades e organizações que enfrentaram o peso do terror estatal e um momento radicalizante para uma geração mais jovem do pós-guerra confrontando sua história pela primeira vez. Em 10 de maio de 2013, Ríos Montt, de oitenta e sete anos, foi condenado e sentenciado a oitenta anos de prisão. Mas a vitória durou pouco. Dez dias depois, o Tribunal Constitucional anulou os procedimentos. O novo julgamento finalmente começou em janeiro de 2015, mas não havia sido concluído na época da morte do ditador em abril de 2018.

Naquele momento, o país havia experimentado outro triunfo agridoce. Em 2015, uma investigação da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG, em espanhol), apoiada pela ONU, revelou uma elaborada conspiração de fraude alfandegária que acabou implicando tanto a vice-presidente Roxana Baldetti quanto o presidente Otto Pérez Molina, um ex-membro das forças especiais Kaibiles treinadas pelos EUA que perpetraram notórios massacres e atrocidades nos tempos de guerra. A indignação pública foi galvanizada no maior movimento de protesto em massa do país desde a Revolução de Outubro de 1944. Em meio a semanas de mobilizações históricas, tanto Baldetti quanto Pérez Molina foram sucessivamente destituídos de imunidade, presos, julgados e, eventualmente, condenados por fraude, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito.

Comentaristas anunciaram uma “Primavera Guatemalteca”, e a capital estava eufórica com a celebração. Mas o enquadramento liberal anticorrupção do movimento, que era liderado por guatemaltecos de classe média, ladinos (identificação não indígena) em grande parte urbanos, limitou as direções nas quais a energia popular poderia ser canalizada. Implícita nos apelos para a expulsão das maçãs podres estava a noção de um sistema funcional que precisava apenas ser expurgado de seus elementos nefastos para restaurar a governança adequada. Essa visão contrastava fortemente com os apelos dos movimentos indígenas contemporâneos para a refundação da Guatemala como um Estado plurinacional por meio de uma assembleia constituinte popular, no estilo do Equador ou da Bolívia. Depois que as multidões se dispersaram, os eleitores elegeram um comediante apoiado pelos militares, Jimmy Morales, para substituir Pérez Molina. Quando a CICIG abriu investigações sobre Morales por financiamento ilícito de campanha, ele se recusou a renovar o mandato da comissão.

Os anos seguintes viram uma reação massiva contra juízes, promotores, jornalistas e ativistas. A procuradora-geral María Consuelo Porras, cujo primeiro mandato começou em 2018 e foi renovado em 2022, desmantelou a infraestrutura anticorrupção existente e perseguiu dissidentes. Dezenas de trabalhadores do ramo jurídico e da mídia fugiram para o exílio, enquanto outros, como o veterano repórter e editor Rubén Zamora, foram presos. Foi nesse clima de crescente censura, criminalização e repressão que Bernardo Arévalo foi eleito presidente em 2023.

Filho do primeiro presidente democraticamente eleito do país, Arévalo concorreu como um candidato improvável pelo pequeno partido Semilla, de centro-esquerda. Depois que a concorrente popular favorita Thelma Cabrera, uma candidata indígena Maia Mam que concorreu em uma plataforma para uma Assembleia Constitucional popular e plurinacional, foi impedida de concorrer pelas mesmas práticas de lawfare que têm como alvo ativistas, jornalistas e juristas, a chapa do Semilla venceu facilmente no primeiro e no segundo turnos, impulsionada pela profunda ressonância histórica do nome Arévalo. A base do Semilla era composta em grande parte por eleitores jovens e urbanos, incluindo muitos politizados pelo julgamento de Ríos Montt, mas o partido também ganhou apoio em setores rurais e indígenas. Esse apoio se mostrou crítico quando Porras liderou esforços para minar os resultados e suspender as credenciais do partido. Poderosas organizações indígenas — que, juntamente com organizações camponesas, que são geralmente atores políticos mais relevantes na Guatemala do que os sindicatos convencionais — convocaram uma greve nacional por tempo indeterminado, mobilizando bloqueios de estradas por todo o país e se reunindo na capital para apoiar o presidente eleito quando legisladores da oposição planejaram uma última tentativa de impedir a posse.

Agora no cargo, Arévalo enfrenta obstrução deliberada e desestabilização por um procurador-geral inimigo que ele até agora não conseguiu remover, uma Suprema Corte adversa e um exército inquieto. Com minoria no Congresso e o poder judiciário capturado pela direita e seus elementos criminosos associados, o primeiro ano da presidência do Semilla foi caracterizado por uma sensação de paralisia. Em vez disso, Porras intensificou seus ataques, acelerando acusações contra políticos do partido, incluindo ordenando a prisão de um membro do gabinete e fazendo uma cruzada para banir o Semilla. O governo que prometeu transformação parece cada vez mais incerto e anêmico.

A encruzilhada

Em ambos os países, a tênue estrutura democrática liberal estabelecida pelos Acordos de Paz dos anos 1990 está exausta há muito tempo. A FMLN, apesar de todos os seus esforços políticos para deter o avanço das reformas neoliberais, assistiu impotente enquanto seu mandato era corroído por bloqueios de direita na legislatura e obstrução nos tribunais. Bukele não teve tais dúvidas. Ao contrário, ele refez unilateralmente o sistema político de El Salvador a seu favor de cima para baixo. Seja qual for sua popularidade, seu projeto é profundamente antipopular para colher ganhos e glória pessoais às custas das maiorias trabalhadoras de El Salvador.

À medida que a crise constitucional da Guatemala atinge uma conjuntura crítica, Arévalo também se vê diante dos limites do sistema do pós-guerra. Em sua imaginação, o presidente está lutando para recuperar a democracia da Guatemala da captura pelas elites. Como o movimento anticorrupção que o precedeu, sua lealdade à constituição e à ordem liberal limita seus repertórios de resposta quando confrontado com uma burocracia hostil e os compromissos antiliberais da extrema direita. Se permanecer relutante em desafiar as estruturas construídas para favorecer o capital e seus cães de guarda, ele será vítima delas. A democracia da Guatemala não pode ser restaurada de cima. Em vez disso, como muitos dos líderes indígenas do país há muito entenderam, ela deve ser refeita coletivamente a partir de baixo.

Os sistemas políticos instalados na região foram o produto do equilíbrio de forças prevalecente entre movimentos de libertação nacional, elites oligárquicas e capital transnacional ascendente. Como resultado, eles favoreceram a reprodução das desigualdades impostas com a reestruturação neoliberal. No presente período de crise prolongada, essas estruturas estão sendo remodeladas novamente. Para o bem ou para o mal, a forma que elas tomarão será o resultado da luta.

Este dilema não é exclusivo da América Central. Nos escombros do neoliberalismo, as respostas às crises globais convergentes colocam movimentos coletivos e libertadores que defendem os comuns contra formas reacionárias e pré-liberais que estão cada vez mais arrastando o centro irresponsável para sua órbita. A tarefa da esquerda é olhar além das instituições fracassadas do presente e imaginar futuros mais justos e inclusivos. Como mostra o exemplo de El Salvador, o custo do fracasso é alto.

Colaborador

Hilary Goodfriend é doutoranda em Estudos Latino-Americanos na Universidad Nacional Autónomo de México (UNAM) na Cidade do México.

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