20 de fevereiro de 2025

Donald Trump está desmantelando o internacionalismo liberal

A crença dos Estados Unidos de que pode ser militarmente dominante em todas as principais regiões parece estar enfraquecendo. Mas, sem concorrentes à altura, a perda de convicção dos republicanos no internacionalismo liberal poderá se cristalizar em um autoritarismo global ainda mais perigoso.

Uma entrevista com
Daniel Bessner


Donald Trump discursando em 18 de fevereiro de 2025, em Palm Beach, Flórida. (Joe Raedle / Getty Images)

Entrevista por
John-Baptiste Oduor

Na semana passada, o vice-presidente J. D. Vance fez um discurso para uma plateia chocada na Conferência de Segurança de Munique, atacando o internacionalismo liberal e defendendo uma série de partidos de extrema direita na Europa. Embora suas alegações sobre a supressão da liberdade de expressão no continente — focadas quase exclusivamente na extrema direita e ignorando os ataques a protestos pró-Palestina e partidos de esquerda — tenham sido cínicas e desonestas, ele conseguiu tocar em um ponto sensível.

Por décadas, líderes europeus e americanos estiveram comprometidos com uma visão de cooperação em segurança internacional que, em grande parte, serviu para promover os interesses do establishment da política externa dos EUA. Diante da ascensão da China, os Estados Unidos agora decidiram mudar as regras do jogo, ameaçando voltar as costas para a Europa após fomentar décadas de dependência.

Em entrevista à Jacobin, o cientista político Daniel Bessner explica como devemos interpretar esse novo momento nas relações entre os EUA e a Europa. Donald Trump deve ser visto como alguém que tenta desmantelar o império americano ou seu afastamento do internacionalismo liberal é simplesmente a adoção de uma ordem global mais autoritária?

John-Baptiste Oduor

O discurso que J. D. Vance fez na Conferência de Segurança de Munique na semana passada, assim como os comentários do Secretário de Defesa Pete Hegseth afirmando que os Estados Unidos buscarão reduzir sua presença na Europa, causaram choque entre os liberais. Você poderia contextualizar essa reação? Que influência as garantias de segurança americanas realmente tiveram sobre a política externa europeia no período imediato do pós-guerra e após o colapso da União Soviética?

Daniel Bessner

Essa é, obviamente, uma boa pergunta, mas, me perdoe, vou fazer o que os historiadores gostam de fazer. Há uma piada de que a resposta deles para qualquer pergunta é dizer: “Bem, tudo começou antes e foi mais complicado.” Gostaria de seguir esse caminho aqui porque acho importante entender a trajetória das relações entre os EUA e a Europa.

Quando George Washington fez seu discurso de despedida em 1796 — que, curiosamente, não foi um discurso, mas sim uma carta publicada —, ele alertou contra o que os historiadores chamam de “enredamentos estrangeiros”. Mas o que Washington realmente estava advertindo era sobre se envolver política e militarmente com o velho mundo. Assim, embora os EUA, no início de sua história, tenham tido uma aliança com a França, a não interferência foi a norma até a Primeira Guerra Mundial, que, como você deve lembrar, os Estados Unidos entraram como uma potência associada, e não como um aliado formal. Isso obviamente mudou totalmente na Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos, por uma variedade de razões complexas, decidiram adotar uma estratégia que hoje chamamos de primazia, ou seja, hegemonia militar e econômica global. A Europa foi crucial para esse projeto de hegemonia global americana.

John-Baptiste Oduor

E isso criou um senso compartilhado de propósito entre o establishment de segurança europeu e americano?

Daniel Bessner

Sim, pode-se até imaginar o mundo do Atlântico Norte como uma única entidade política, no sentido de que ele tem — ou imagina ter — uma herança cultural compartilhada. Afinal, essas são as principais potências coloniais. Elas trabalharam contra si mesmas, mas também, de certa forma, contra o Sul Global, por cerca de quinhentos anos.

Os formuladores da política externa americana determinaram, no pós-guerra, que os Estados Unidos precisavam ter controle e/ou influência sobre as principais bases industriais do mundo. Obviamente, isso incluía os próprios Estados Unidos, mas também a Europa Central e Ocidental e o Japão. Essa foi a estratégia geopolítica essencial da hegemonia americana: controlar essas bases industriais para garantir segurança e prosperidade.

A Segunda Guerra Mundial foi uma demonstração do que acontece quando os Estados Unidos não atuam como hegemônicos. Claro, houve precedentes para o envolvimento dos EUA no continente desde os anos 1920. O Plano Dawes, o Plano Young e o Pacto Kellogg-Briand foram todos acordos multilaterais estabelecidos para evitar a reemergência da guerra na Europa. Mas nada disso se comparou ao nível de envolvimento militar e político dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.

Portanto, essa foi uma transformação gigantesca na política externa dos EUA no pós-guerra, realmente uma transformação épica. Os Estados Unidos queriam fazer duas coisas: garantir que a União Soviética não invadisse a Europa Ocidental — pois os soviéticos tinham muito mais tropas no terreno —, desenvolver armas nucleares e, basicamente, incorporar a Grã-Bretanha, a França e o que estava se tornando a Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha) em uma aliança ocidental.

Os principais países da Europa Ocidental, é claro, têm longas e orgulhosas tradições militares, mas são os Estados Unidos que realmente entram em cena sob a bandeira da OTAN para, supostamente, garantir a segurança europeia. Lord Ismay, o primeiro secretário-geral da OTAN, descreveu famosamente os objetivos da organização como triplicados: manter os americanos dentro, os alemães sob controle e os soviéticos fora. E esses objetivos essencialmente permaneceram os mesmos durante toda a Guerra Fria.

Esse estado de coisas tem sido bom para a Europa Ocidental no sentido de que, enquanto anteriormente grande parte de sua atividade econômica tinha sido voltada para corridas armamentistas — a corrida armamentista naval da Grã-Bretanha e da Alemanha no final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial é um excelente exemplo — a Europa conseguiu reorientar recursos, particularmente na França e na Alemanha Ocidental, e também na Grã-Bretanha, até certo ponto, para programas de bem-estar social.

John-Baptiste Oduor

Nas discussões tradicionais, há duas interpretações dominantes da incapacidade da Europa de desenvolver sua própria infraestrutura de segurança independente. Uma, avançada por republicanos realistas, é que os europeus têm levado a América para um passeio, subsidiando seu estado de bem-estar social evitando gastos com defesa. E a segunda é que uma ala atlantista de estados europeus construiu uma coalizão com a ala liberal do Departamento de Estado para minar ativamente o desenvolvimento de uma política de defesa europeia independente, de modo a vincular o continente aos EUA. Qual é a sua interpretação?

Daniel Bessner

Sim. Quer dizer, acho que a história realista de direita e a atlantista estão corretas. Fundamentalmente, o estado de segurança nacional americano é um projeto liberal entre aspas, e sua busca por hegemonia é entendida nesses termos. A hegemonia que os EUA buscaram buscar essencialmente sob todos os presidentes até Donald Trump foi motivada pelo desejo de criar uma ordem mundial mais progressiva, ou uma ordem mundial mais humana. E o argumento avançado pelos defensores da hegemonia liberal foi que a Segunda Guerra Mundial demonstrou que isso só poderia ser feito com base na proteção de segurança dos Estados Unidos para garantir a existência contínua da ordem capitalista global.

Se você é um líder da Europa Ocidental e os Estados Unidos vão garantir sua segurança, por que você não desviaria recursos para o bem-estar social? E então há também o projeto ideológico do que você acabou de se referir como o atlantista. Essas são pessoas que acreditam, genuinamente acreditam, que a segurança global, uma ordem mundial global liberal que seja estável e próspera depende, efetivamente, da primazia militar e econômica dos EUA. O estado de segurança nacional, o império americano, é um império liberal, que é uma das razões pelas quais Trump se opõe tão fortemente a ele. O que ele está fazendo é retornar a uma visão quase do século XIX da política de grandes potências. Tarifas e ameaças de aquisição territorial parecem tão estranhas e incomodam tantos liberais porque são formas de geopolítica descartadas pelo internacionalismo liberal. Elas são coisas da era pré-Segunda Guerra Mundial.

John-Baptiste Oduor

Isso também explica por que ele é tão hostil às relações multilaterais e ignorou as negociações com a UE em favor de falar diretamente com a Rússia.

Daniel Bessner

O multilateralismo é parte integrante do racionalismo liberal. Isso faz parte da ideologia progressista do século XX sobre a maneira de acabar com as guerras: unir todos os estados porque isso permitirá que eles troquem ideias racionalmente e cheguem a acordos compartilhados. Na prática, essa política de consenso internacional se transforma ao longo da primeira metade do século XX em uma forma de imperialismo liberal americano que realmente começa com Woodrow Wilson, continua com [Franklin D. Roosevelt] e é então institucionalizada por Harry Truman no final dos anos 1940.

John-Baptiste Oduor

Há apenas uma década, a linha do governo Obama, apesar das sanções leves à Rússia após a invasão de Donbass e a tomada da Crimeia, era assumir uma posição realista sobre a Rússia. A Rússia tem "domínio de escalada" na Europa era a frase recorrente. O que mudou entre 2014 e 2022 para fazer o governo Biden se sentir tão confiante quanto estava em enviar ajuda militar à Ucrânia?

Daniel Bessner

Quando você olha apenas para o que alguém como o Secretário de Defesa Lloyd Austin estava dizendo, ou o Secretário de Estado Antony Blinken estava dizendo em público, eles literalmente apenas dizem, pensamos que Kiev seria invadida em semanas. Quando não foi invadida e os ucranianos montaram uma defesa, percebemos que poderíamos simplesmente dar-lhes armas para atolar a Rússia, basicamente enquanto os ucranianos pudessem continuar lutando. Então, é literalmente apenas usar a Ucrânia como uma peça de xadrez em um jogo de xadrez de política de grande potência. É literalmente isso.

John-Baptiste Oduor

Como devemos entender o desmantelamento da USAID [a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] dentro dessa narrativa mais ampla do ataque da direita republicana ao internacionalismo liberal?

Daniel Bessner

A USAID é um programa da era Kennedy e a maneira de pensar sobre isso é como parte desse projeto mais amplo que se estendeu, aproximadamente, do final dos anos 1940 ao início dos anos 1960. Esse foi o grande momento de construção institucional na política de segurança nacional americana, e a USAID, o Peace Corps e a International Development Association fizeram parte disso. Elas foram essencialmente instituídas por Kennedy — o presidente liberal da Guerra Fria por excelência — para reforçar as garantias de segurança da OTAN com uma promessa econômica de desenvolvimento e modernização. E, claro, desenvolvimento e modernização se tornam particularmente cruciais quando se trata do envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã.

Essencialmente, a USAID é uma espécie de rosto sorridente do domínio imperial americano. E quero enfatizar que isso não quer dizer que a USAID nunca tenha feito um trabalho positivo. Ela fez, com certeza. Mas ela precisa ser vista como parte dessa estrutura imperial maior, porque é exatamente isso que ela é.

John-Baptiste Oduor

Qual você acha que é a alternativa ao internacionalismo liberal? Mesmo na esquerda, a abordagem dominante para pensar sobre política externa é perguntar o que os EUA devem fazer sobre o comportamento do país X, Y e Z. O dilema me parece ser que ou aceitamos uma versão de uma ordem internacional liderada pelos EUA ou revertemos para uma doutrina de esferas de influência do início do século XX. Quais são as formas alternativas de pensar sobre como os estados devem se relacionar uns com os outros?

Daniel Bessner

Tenho uma posição filosófica sobre essa questão, e as pessoas que discordam dela provavelmente não ficarão convencidas com minha defesa. Mas acho que, falando de modo geral, temos mais probabilidade de obter um mundo justo e humano se os países e regiões puderem descobrir por si mesmos que tipo de arranjo de ordenação internacional desejam ter. Isso não quer dizer que o poder não importa. Claramente, por exemplo, no Leste Asiático, a China será a potência mais influente a moldar o que acontece naquela região. Mas ainda acho que, filosoficamente, é realmente melhor para as potências regionais moldarem as ordens regionais do que para os Estados Unidos viajarem milhares de quilômetros de distância e tentarem moldar os assuntos dos países ao longo das linhas americanas.

O desejo de moldar algo a milhares de quilômetros de distância está fadado ao fracasso. A geografia não pode ser ignorada. Então, por exemplo, acho que os Estados Unidos acabarão sendo forçados a deixar sua posição hegemônica no Leste Asiático. Idealmente, isso acontece pacificamente e sem guerra, mas se não planejarmos, há uma boa chance de que isso possa resultar em uma guerra real entre os EUA e a China. Então, a alternativa para mim — e sei que nem todos na esquerda concordam — é se opor ao império em todas as suas formas e forçar os Estados Unidos a se conterem.

Isso significa que a América deve fechar as centenas de bases militares que tem ao redor do mundo. Precisa permitir que outros regimes monetários surjam. Precisa parar de enviar armas para o exterior. Então, minha posição fundamental é que as potências regionais, os estados regionais, devem determinar seu futuro, que os Estados Unidos não podem fazer isso e, além disso, que você simplesmente nunca obterá as partes boas do império sem as partes ruins do império. Elas andam juntas.

Então, por essas duas razões, acho que a posição anti-imperialista de esquerda deve exigir que, com o tempo, os Estados Unidos reduzam seu império. Agora, não deve fazer isso à toa. Não deve fazer isso do nada. Os Estados Unidos assumiram obrigações com as pessoas. Financiou, por exemplo, a defesa da Europa Ocidental por um longo tempo. Vários países do Leste Asiático, você poderia dizer a mesma coisa. Então, deve haver uma transição gerenciada. Mas precisamos nos concentrar naquele momento de transição para longe da dominação imperial. E quase nunca o fazemos.

Colaboradores

Daniel Bessner é professor associado em Estudos Internacionais na Universidade de Washington. Ele é um membro não residente do Quincy Institute for Responsible Statecraft e editor colaborador da Jacobin.

John-Baptiste Oduor é editor da Jacobin.

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