Em 1878, a guerra russo-turca estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro do music-hall, cantava seu número que deu à língua inglesa (e outras) a palavra “ufanismo”. Como McDermott dizia, “nós combatemos esse Urso antes” e “temos os navios, os homens, e também o dinheiro”.
Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante. Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda (Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como “o governo da Ucrânia”, seu ministro das Relações Exteriores é festejado no Europolo. A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russófonos e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.
Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país. Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.
A reunião da União Europeia na quinta-feira sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Não há surpresas. Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA. Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.
Sem os meios para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa. Sebastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos. A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy fez na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, ao contrário de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.
Com a displicente falta de perspectiva histórica que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na televisão nessa semana que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais. No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (conhecidos, um pouco incongruente, como "o homem doente da Europa"), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em Berlim, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da “Rumélia Oriental” no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo eslavo. Durou sete anos inteiros.
O que quer o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem promovido com tanto sucesso nos últimos anos? Como a Spectator disse alguns anos depois de Berlim: "o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da 'Rumélia Oriental' é desastroso fracasso".
Sobre o autor
Glen Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na Bélgica. Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophyna Keele University, Staffordshire, England. Membro proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui figuras como Bernard Williams, John N. Gray, e Raymond Geuss.
Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante. Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda (Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como “o governo da Ucrânia”, seu ministro das Relações Exteriores é festejado no Europolo. A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russófonos e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.
Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país. Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.
A reunião da União Europeia na quinta-feira sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Não há surpresas. Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA. Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.
Sem os meios para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa. Sebastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos. A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy fez na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, ao contrário de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.
Com a displicente falta de perspectiva histórica que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na televisão nessa semana que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais. No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (conhecidos, um pouco incongruente, como "o homem doente da Europa"), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em Berlim, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da “Rumélia Oriental” no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo eslavo. Durou sete anos inteiros.
O que quer o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem promovido com tanto sucesso nos últimos anos? Como a Spectator disse alguns anos depois de Berlim: "o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da 'Rumélia Oriental' é desastroso fracasso".
Sobre o autor
Glen Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na Bélgica. Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophyna Keele University, Staffordshire, England. Membro proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui figuras como Bernard Williams, John N. Gray, e Raymond Geuss.
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