15 de fevereiro de 2025

Livro notável explica por que Israel e Hamas estão longe da paz em Gaza

"Palestina" revê um século de guerras entre árabes e israelenses

Leonardo Avritzer
Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Um dos principais historiadores atuais sobre o Oriente Médio, Rashid Khalidi faz um relato sóbrio e ao mesmo tempo pessoal, vasculhando a decisiva participação de sua família nos acontecimentos, de um conflito que se arrasta por mais de cem anos entre israelenses e palestinos. Embora seu livro por vezes dê protagonismo excessivo à Grã-Bretanha e menospreze conquistas do movimento sionista, o historiador busca uma reavaliação esclarecedora, distante da polarização ideológica, das forças em disputa.

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A tradução, pela editora Todavia, do livro "Palestina: Um Século de Guerra e Resistência", do historiador Rashid Khalidi, professor da Universidade Columbia, constitui uma contribuição de peso à literatura sobre o tema disponível no Brasil.

Segundo o historiador israelense Benny Morris, se existe uma nova historiografia palestina sobre o conflito árabe-israelense, uma historiografia que se distancia das posições políticas e ideológicas e tenta analisá-lo a partir das ações e também dos erros estratégicos de cada um dos atores envolvidos, seu principal nome é o próprio Khalidi.

O autor está em uma posição única para realizar esse empreendimento, uma vez que sua família ocupa posições centrais na liderança palestina desde o final do século 19. Seu avô, seu pai, seu tio e ele mesmo foram personalidades centrais em momentos relevantes do conflito.

Palestinos caminham em meio à destruição causada pela guerra em Beit Hanun, no norte da Faixa de Gaza - Omar Al-Qattaa-12.fev.25/AFP

O avô de Khalidi, Yusuf Diya, ocupou diversos cargos como funcionário do governo otomano e foi também professor na Universidade de Viena. Em 1899, escreveu uma carta ao fundador do sionismo, Theodor Herzl.

Na mensagem, reproduzida na introdução ao livro, Diya expressa admiração por Herzl e deplora o antissemitismo europeu. Ao final, afirma: "quem poderia contestar o direito dos judeus na Palestina?" (página 18).

Khalidi ressalta um aspecto da carta: a percepção de que a Palestina "... é parte integral do Império Otomano e, mais grave, é habitada por outras pessoas". Em resposta, Herzl afirma que seu projeto era baseado "na maior tolerância com direitos totais para todos".

O debate entre Diya e Herzl poderia ter dado origem a uma configuração de tolerância e diálogo na relação entre palestinos e israelenses. Sabemos que não foi isso o que aconteceu —e sim o desencadear de seis fortes períodos de conflito, ou sete, se incluirmos o mais radical entre eles, iniciado em outubro de 2023 e ainda em curso.

Khalidi descreve os seis períodos como seis declarações de guerra, periodizados da seguinte maneira: 1917-1939; 1947-1948; 1967; 1982; 1987-1995 e 2000-2014. Apesar de os capítulos serem intitulados "declarações de guerra", os principais eventos analisados são simultaneamente políticos e militares, ou talvez mais políticos do que militares.

Os melhores capítulos são aqueles vivenciados diretamente pelo autor a partir de 1982, quando se encontrava no Líbano e participou logo em seguida da conferência de Madri e da proposta de criação da Autoridade Palestina.

O capítulo mais contraditório do livro é o que abre a obra, "Primeira Declaração de Guerra". Nele são discutidos dois momentos fundantes do conflito árabe-israelense, a declaração Balfour de 1917 e a revolta árabe de 1936-1939, assim como a proposta britânica de partilha e de interrupção da imigração judaica realizada pelos ingleses em 1937 e 1939.

A declaração Balfour foi uma carta emitida pelo setor de relações exteriores da Grã-Bretanha, na qual o chefe do departamento afirma "que o governo de sua majestade vê com bons olhos o estabelecimento de um lar nacional judaico na Palestina e irá envidar os melhores esforços para o alcance desse objetivo, entendendo-se claramente que nada será feito que possa atentar contra os direitos civis e religiosos das coletividades não judaicas existentes na Palestina...".

A declaração informa a concepção do autor de que "uma poderosa tríade formada por Grã-Bretanha, movimento sionista e mandato da Liga das Nações" deixava os palestinos com pouquíssimas opções.

Algumas observações cabem aqui em relação à análise do livro sobre o período. A principal é uma ampla superestimação do papel desempenhado pela Grã-Bretanha nesse período.

Khalidi subestima as estruturas paraestatais criadas pelo assim chamado Yishuv (a comunidade judaica) na Palestina, atribuindo o sucesso dessa construção ao apoio que o Mandato Britânico (administração civil britânica na região, entre 1920 e 1948) ofereceu.

Nesse sentido, a criação de partidos, de uma central sindical e de universidades, entre outras instituições, é atribuída aos britânicos. O principal líder sionista do período, David Ben-Gurion, está praticamente ausente desse primeiro capítulo, substituído por nomes do movimento sionista em Londres, o que mostra que o livro desconsidera as formas de constituição do estado nação no território.

As maiores contradições da abordagem de Khalidi se centram na análise das ações da Grã-Bretanha entre 1939-1948, que por nenhuma perspectiva poderiam ser analisadas como ações de apoio ao movimento sionista.

A proposta de partilha da Palestina realizada pela Peel Commission em 1937, como resultado da revolta árabe iniciada no ano anterior, destinava aos palestinos mais de 70% da área originalmente reservada ao Mandato Britânico. Além disso, a emissão do Livro Branco de 1939 limitava severamente a emigração judaica para a região. Isso não parece corroborar a análise do autor, tal como observou Benny Morris em sua resenha do livro.

Khalidi tem sentimentos contraditórios em relação a esses dois fatos que predeterminaram a postura rejeicionista dos palestinos, o que se manifestou novamente em 1948 e em 2000. De um lado, ele analisa as oportunidades perdidas ao afirmar que "os palestinos podiam ter ganho uma vantagem, ainda que pequena, se tivessem aceitado o Livro Branco de 1939".

Sobre a proposta de partilha unanimemente rejeitada pelos palestinos, afirma o seguinte: "A revolta alcançou notáveis êxitos temporários, mas acabou produzindo resultados debilitantes para todos os palestinos" (pág. 66).

A conclusão parece um misto de condescendência e realismo baseada na avaliação de seu tio, Huysan al Khalidi, que participou da delegação palestina que foi ao Palácio de Saint James e rejeitou a primeira proposta de partilha realizada pelos ingleses em 1937.

Huysan, vendo a Segunda Guerra Mundial se aproximar, com as consequentes mudanças possíveis de hegemonia, tentou mudar de posição e foi derrotado pelo mufti (espécie de prefeito e líder religioso) de Jerusalém. Para Khalidi, o tio deplorava "a má-fé e a inépcia dos líderes dos estados árabes e dirigiu críticas equilibradas e sobretudo razoáveis aos fracassos da liderança palestina".

Aqui se inicia um ciclo que Khalidi presenciou e que fez com que uma situação de equilíbrio relativo entre Israel e os palestinos chagasse a resultados tão diferentes. Se a denúncia da ação dos ingleses aparece como central, Khalidi sabe também, tal como afirma em diversas passagens deste e de outros livros, que não é possível reduzir o sionismo a um movimento unicamente colonial. Para ele, o sionismo pode ser e foi um movimento simultaneamente nacional e colonialista.

Os capítulos mais importantes do livro são aqueles nos quais o autor mostra o amadurecimento da liderança palestina, em especial da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) durante o período que levou ao Tratado de Oslo (1993).

Os capítulos "Quarta Declaração de Guerra (1982)", "Quinta Declaração de Guerra (1987-1995)" e "Sexta Declaração de Guerra (2000-2014)" foram escritos sob panos de fundo políticos. O primeiro deles é a nova hegemonia da direita israelense —principalmente nos territórios palestinos ocupados por Israel em 1967.

Os capítulos mostram como a primeira intifada mudou a configuração do enfrentamento entre israelenses e palestinos devido a sua natureza fortemente civil. Khalidi relata a dificuldade inicial de Yasser Arafat, naquele momento fortemente isolado na Tunísia, em aceitar novas lideranças locais.

Ele argumenta, mais uma vez com conhecimento de causa, devido a seu envolvimento com a OLP em Beirute e na Tunísia, que muitos dos líderes da organização "não entendiam completamente a natureza do regime de ocupação ou a complexa situação social e política dos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza depois de duas décadas de dominação israelense" (pág. 236).


Apenas com a participação de importantes intelectuais palestinos, entre os quais Edward Said e Mahmoud Darwish, o Conselho Nacional da Palestina em Argel, em 1988, "abandonou formalmente a reivindicação da OLP sobre a totalidade da Palestina, aceitando os princípios da partilha, a solução de dois Estados e uma resolução pacífica para o conflito" (pág. 240).


Esse movimento criou o espaço para a conferência de Madri e os Acordos de Oslo. À medida que todos esses elementos avançavam, Arafat percebeu que havia um prêmio em jogo há muito tempo ambicionado por ele: um lugar à mesa nas negociações internacionais enquanto representante legítimo do povo palestino.


A ideia de uma Autoridade Autônoma Interina Palestina foi elaborada, nesse período, por esses mesmos intelectuais com dois objetivos: fornecer jurisdição autônoma em todas as questões envolvendo terra, água e ar e, ao mesmo tempo, "constituir um esforço genuíno de vislumbrar uma transição da ocupação para a independência...’ (pág. 262).


Assim, é possível apontar o período entre 1985 e 2000 como o mais positivo na relação dos dois povos, tendo caminhado para um acordo no qual a proposta palestina de uma autoridade autônoma foi implementada e reconheceram-se os direitos de autodeterminação de israelenses e palestinos.


Ainda assim, sabemos que, tal como as promessas mútuas de direitos recíprocos, realizadas um século antes entre Theodor Herzl e Yusuf Dyia, as promessas entre Yitzhak Rabin e Arafat tampouco prevaleceram.


Provavelmente, Rabin cedeu demais à direita de Israel ao não incluir no Acordo de Oslo a retirada total das colônias israelenses dos territórios ocupados, e Arafat cedeu demais a Rabin em aceitar a divisão da Cisjordânia em áreas cujo controle seria paulatinamente cedido aos palestinos, o que jamais ocorreu.


Khalidi analisa o Acordo de Oslo como "uma transação peculiar, pela qual um movimento de libertação nacional obtivera reconhecimento formal dos seus opressores, sem alcançar a libertação..." (pág. 267). Essa situação, que perdura até hoje, levou a uma maior radicalização nos dois projetos que emergiram desde então, o da direta israelense de incorporação dos territórios ocupados por Israel e o do Hamas de voltar a reivindicações maximalistas a serem alcançadas pela força.


A conclusão do livro, escrita antes da atual Guerra de Gaza e complementada por uma entrevista recente na revista New York Review of Books, deixa claro porque Khalidi é o grande intérprete realista do conflito. "Embora a natureza fundamentalmente colonialista do encontro palestino-israelense deva ser reconhecida, há agora dois povos na Palestina, não importando como surgiram, e o conflito entre eles não pode ser resolvido enquanto a existência nacional de cada um deles for negada pelo outro" (pág. 332), escreveu.


Em sua entrevista na "New York Review of Books", por ocasião da sua aposentadoria na Universidade Columbia no final do ano passado, ele ressalta a nova dinâmica de violência desencadeada pelo Hamas no 7 de outubro de 2023 e exponenciada por Israel desde então.


Segundo ele, o Hamas não impediu "que as pessoas entrassem pelas aberturas da cerca e fizessem o que faziam". "Além disso, parece ter havido uma sede de vingança por parte de muitas das pessoas que cometeram este ataque. E isso levou a atrocidades, brutalidades e ataques a civis. Você não pode dizer que eles não pretendiam fazer isso. Se voltarmos no tempo e ouvirmos a declaração de Mohammed Deif, chefe da ala militar do Hamas, na manhã do ataque, ele está falando de ataques a civis. Parece ter havido um desejo de vingança, embora obviamente com meios mais limitados do que os que Israel possui", completou.


Assim, podemos entender a trajetória de Khalidi e a maneira como ele vê o desfecho ainda incerto de um conflito que ultrapassa os 100 anos. A história é sempre a mesma: momentos de negociação seguidos por enfrentamento militar intenso.

A possibilidade de uma solução negociada foi representada por uma curta janela entre a primeira intifada (1987-1993) e o ano 2000. Desde então, a direita israelense tem prevalecido com seu projeto para a região, e o fortalecimento do Hamas não abriu qualquer perspectiva nova para o conflito.

Khalidi tem clareza sobre este diagnóstico: "’As principais estratégias de ambas as principais facções políticas, Fatah e Hamas, não deram em nada, algo que fica evidenciado pela aceleração do controle israelense sobre toda a Palestina".

Nada indica que essa situação mudou para melhor desde outubro de 2023. Apenas a mudança na dinâmica do conflito, com a volta da Autoridade Palestina para Gaza com prerrogativas ampliadas e a mudança de governo em Israel, poderá modificar esse panorama.

Palestina: Um Século de Guerra e Resistência (1917-2017)
Preço R$ 114,90 (432 págs.); R$ 69,90 (ebook) Autoria Rashid Khalidi Editora Todavia Tradução Rogerio W. Galindo

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