1 de fevereiro de 1996

Do foquismo ao reformismo: Castañeda e a esquerda latino-americana

Luís Fernandes


Jorge G. Castaneda, Utopia Unarmed: The Latin American Left after the Cold War
Knopf: New York 1993

"Nenhum plano sobrevive ao contato com o inimigo." Marechal Helmuth Carl Bernard von Molthe (1800-1891)

Em edição anterior (1), a New Left Review publicou uma resenha basicamente favorável do livro de Jorge Castañeda Utopia Desarmada. Esta resenha foi escrita por James Dunkerley, a partir de um enfoque predominantemente hispano-americano. Pouco depois da publicação desta, o livro de Castañeda foi lançado no Brasil com um subtítulo diferente da versão original (2). O próprio Castañeda veio ao Rio de Janeiro e São Paulo lançar a versão do seu livro em língua portuguesa. Apesar do eficiente esquema de divulgação, no entanto, o livro não chegou a provocar, nos meios acadêmicos e políticos brasileiros, o mesmo frisson polêmico que suscitou nos Estados Unidos e nos países de língua espanhola da América Latina.

Este fato em si é merecedor de maior atenção e reflexão. Em parte, pode ser decorrência da própria fragilidade da identidade latino-americana no Brasil, da perspectiva eurocêntrica adotada por grande parte da sua elite intelectual, bem como da aguda consciência nacional sobre o “excepcionalismo brasileiro” no continente. Estas atitudes foram reforçadas pela imagem excessivamente genérica e indiferenciada da América Latina apresentada pelo próprio Castañeda – apesar de repetidas declarações em contrário. De fato, quando examinadas mais de perto, inúmeras informações veiculadas sobre o Brasil no livro são um tanto bizarras (3). Para além destas inconsistências, no entanto, o livro de Castañeda aborda, de forma corajosa e aberta, os problemas programáticos, estratégicos e táticos mais cruciais que se apresentam para a esquerda latino-americana à luz da derrota de seus próprios intentos revolucionários e do colapso do socialismo no Leste.

Utopia Desarmada procura levar às suas últimas conseqüências (políticas e teóricas) o processo de reorientação político-ideológica atualmente empreendida por grande parte da esquerda do continente, destacando o grau de ruptura que esta reorientação implica para com concepções e práticas do passado – algo que muitos dos seus líderes não conseguem ou não querem fazer. Deste ponto de vista, trata-se – um século depois – de um equivalente latino-americano do trabalho clássico de Eduard Bernstein, Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-Democracia. Castañeda certamente levanta questões pertinentes e fundamentais. Mas, será que nos apresenta um marco apropriado e viável para confrontá-las? A minha avaliação é que não. Sustentar esta apreciação exige um exame mais detido da construção do seu argumento no livro.

As lentes do Castañeda
O argumento central de Utopia Desarmada é o de que, face à dupla impossibilidade da revolução e do socialismo, a esquerda latino-americana tem de mudar de curso. Este argumento é explorado em duas partes inter relacionadas. Na primeira, um ambicioso painel histórico do desenvolvimento e das derrotas da esquerda no continente ao longo deste século aponta para o esgotamento de perspectivas centradas na “revolução”. Na segunda, Castañeda procura compor uma agenda alternativa para a esquerda latino-americana centrada na “reforma”, já que o colapso do bloco soviético teria revelado a inviabilidade do seu paradigma socialista anterior (4).

A resenha histórica do livro cobre o desenvolvimento tanto da esquerda “política” quanto “social”, mas seu foco principal de análise recai mesmo sobre as “intrigas, dilemas e promessas” (5) das quatro principais correntes da “esquerda política” continental: os partidos comunistas, os movimentos “populistas”, as organizações político-militares inspiradas pela revolução cubana e a “nova esquerda reformista”. Castañeda enfoca esta resenha por um ângulo muito específico: o da ascensão, crise e derrota (ou conversão) de duas grandes "ondas" de movimentos guerrilheiros inspirados (e, em geral, apoiados) por Cuba um conjunto bastante heterogêneo de organizações marcadas por uma fixação quase que obsessiva com a questão da luta armada, a que se convencionou chamar de foquistas, fidelistas ou castristas. Não por acaso, a narrativa histórica do livro toma como ponto de partida os montoneros argentinos, que são apresentados como experiência arquetípica da esquerda latino-americana. A adoção desta perspectiva introduz um viés particular à narrativa, com implicações importantes para a sua análise.

Imigrantes ilegais
A primeira consequência da adoção deste viés é a desqualificação algo ligeira e superficial das duas correntes que precederam o advento das organizações revolucionárias “político-militares” na esquerda continental: a dos partidos comunistas e a dos movimentos e regimes “populistas”. Os primeiros são apresentados como um produto “não enraizado nas circunstâncias locais” – “uma variedade importada” de “natureza congenitamente estrangeira” (p. 37). Isto explicaria o seu “lento e silencioso esvaziamento” em meados dos anos 1980. Embora tanto Castañeda quanto Dunkerley procurem sustentar essa apreciação em considerações desenvolvidas por Alan Angell (6), o fato é que eles simplesmente generalizam e reproduzem um dos preconceitos mais antigos lançados contra a esquerda pela elites mais conservadoras da América Latina preconceito este que não se sustenta diante de uma análise objetiva e conscienciosa da trajetória dos partidos comunistas mais importantes da região.

É ponto passivo, hoje, o reconhecimento de que os comunistas latino-americanos tenderam a subscrever uma concepção limitada e unilateral do socialismo baseada no “modelo soviético”. Não foram, no entanto, os únicos a fazê-lo, quer entre as correntes de esquerda na região ou entre os partidos comunistas do resto do mundo. Também são conhecidos os traumas e prejuízos causados aos partidos comunistas da região pela implementação de mudanças bruscas e erráticas nas suas respectivas linhas políticas, de forma a adaptá-las às cambiantes exigências da política externa soviética (7). Isto está longe de significar que estes partidos constituíam uma força essencialmente exógena, descolada das circunstâncias locais. Alguns deste partidos – como os de Cuba, Chile, Brasil e Uruguai – exerceram, durante décadas, um papel bastante decisivo e influente na vida política dos seus respectivos países, apesar de serem constantemente discriminados, perseguidos e reprimidos. Isto seria impensável no caso de organizações políticas não enraizadas em necessidades e demandas locais (8). Ademais, a acusação de 'não-latino-americanismo' formulada por Castañeda – e reforçada por Dunkerley – toca uma nota teórica e política anti-universalista, que me parece francamente incompatível com qualquer projeto de emancipação humana (9).

Se os pontos levantados acima são válidos, resta a seguinte questão: por que a influência política da maioria dos partidos comunistas latino-americanos minguou? A resposta para esta indagação não é simples ou direta, e demanda séria pesquisa e debate. O ponto principal levantado por Castañeda é o de que a natureza exógena desses partidos tolheu, de forma irremediável, os seus credenciais reformistas. Sugiro uma explicação diferente: a de que a perda de influência possa ser decorrência da descaracterização política e ideológica que acometeu esses partidos ao assumirem o protagonismo do mesmo tipo de aggiornamento que Castañeda nos propõe hoje (10). Não estou argumentando, aqui, contra a renovação das práticas e concepções da esquerda, mas apenas enfatizando de que variados cursos de aggiornamento são possíveis – e que cabe pesar cuidadosamente os limites, os riscos e as potencialidades de cada um (empreendimento do qual Castañeda se esquiva, por enfraquecer a argumentação em defesa do tipo especifico de renovação que ele propõe).

O "populismo" nacionalista
O tratamento dado aos movimentos e regimes “populistas” pelo livro é, em geral, mais favorável. Estes são vistos como integrantes de uma corrente "profundamente enraizada na história e na tradição do hemisfério" (p. 54). Castañeda se esquiva dos problemas analíticos e conceituais gerados pela própria utilização da categoria 'populismo' – um tema muito polêmico nos Círculos políticos e intelectuais latino-americanos, pois envolve um determinado posicionamento (crítico) diante de importantes partidos, movimentos e lideranças da região no presente e no passado. O mínimo que se pode dizer é que se trata de um conceito carregado e impreciso, que engloba fenômenos bastante heterogêneos, tanto por sua orientação política, quanto por sua base social: desde o trio “original” Vargas-Péron-Cárdenas, até as experiências mais recentes de Alan Garcia no Peru e Leonel Brizola no Brasil, passando por Victor Paz Estenssoro na Bolívia e Ornar Torrijos no Panamá.

Castañeda desqualifica os partidos comunistas e os regimes “populistas”
Uma característica básica comum a todos estes movimentos e regimes era a sua ênfase na afirmação nacional e o seu recurso ao intervencionismo estatal como instrumento crucial para a promoção do desenvolvimento econômico e social. Nesta base, eles desempenharam um papel central na configuração e consolidação de estruturas fundamentais dos aparatos estatais dos seus respectivos países, estruturas estas que são o alvo prioritário da atual ofensiva neoliberal no continente (11).

Por este mesmo motivo, poderá ser precipitada, também, a proclamação do "fim do populismo na América Latina" feita por Castañeda no livro (12). Dadas as implicações antinacionais desta ofensiva, é bem possível que determinadas correntes “populistas” possam se transformar em leitos importantes de resistência contra a agenda neoliberal (13). Ademais, em diversos países, essas correntes constituem uma expressão política legítima dos setores mais excluídos, marginalizados e miseráveis da população, que se encontram alijados das organizações sociais e políticas enraizadas no “setor formal” das suas respectivas economias (14). Como o peso destes setores nas sociedade latino-americanas vem aumentando sob o impacto social negativo das políticas ortodoxas de ajuste, a base social urbana do “populismo” pode mesmo se ampliar.

A principal crítica formulada por Castañeda às correntes “populistas” é o de que elas abrigam fortes tendências autoritárias e são reformistas muito tímidos e hesitantes (dado o seu temor de um ativismo político repentino e descontrolado por parte das “massas de pobres”). O balanço, aqui, também não é tão simples e unívoco. Como líder da Revolução de 1930, por exemplo, Getúlio Vargas – apesar do lapso do Estado Novo, de 1937 a 1945 – foi responsável pela introdução de reformas democráticas fundamentais no Brasil, como o sistema de representação proporcional, o voto secreto, a extensão do sufrágio para as mulheres, o estabelecimento de uma justiça eleitoral independente, além da introdução de direitos sociais básicos. Mais fundamental do que este balanço, entretanto, é o fato de Castañeda não ter abordado a raiz do reformismo tênue e inconsequente do “populismo”: a relutância deste em confrontar e transformar as estruturas de propriedade altamente concentradas prevalecentes na América Latina. O problema é que a agenda alternativa proposta em Utopia Desarmada reproduz esta mesma relutância básica. Voltaremos a isto mais adiante.

As limitações teóricas e políticas do Foquismo
Ao passar para o seu principal foco de interesse na história da esquerda latino-americana – a evolução das variadas organizações “político-militares” inspiradas pela Revolução Cubana desde os anos 1960 – Castañeda destaca que estas organizações foram constituídas a partir de uma falsa contraposição teórica entre “luta armada” e “via pacífica”. Esta oposição genérica e indiferenciada desconsiderava o estudo mais sério das condições concretas de luta em cada país e, de fato, em todo o continente (p. 71). Uma vez mais, me parece que o balanço histórico, aqui, é um tanto mais complexo e contraditório.

A apreciação de Castañeda é certamente apropriada para a safra original de organizações (foquistas) de guerrilha urbana e rural, que se espalharam pelo hemisfério entre meados dos anos 1960 e 1970. Mesmo com todas as suas idiossincrasias, os montoneros argentinos são bastante representativos das concepções e práticas desta "safra". Praticamente todos estes grupos foram dizimados ou se desintegraram, conseguindo pouco mais do que a não-desejada legitimação do terror contra-revolucionário dos regimes militares. Mas inúmeras organizações revolucionárias – sobretudo na América Central – souberam superar estas limitações e vincular a sua luta armada a formas amplas de luta política e social legal, desempenhando um papel crucial na democratização dos seus respectivos países. Basta lembrar os papéis desempenhados pela FSLN na Nicarágua e pela FMLN em El Salvador (15).

Os eventos de Chiapas, é claro, voltaram a colocar a questão da luta armada na agenda política latino-americana. Devemos nos precaver da tentação de generalizar lições políticas e estratégicas do levante zapatista para toda a esquerda do continente – sobretudo por se tratar de um movimento de base indígena. As condições de Chiapas tem pouco a ver com a de outros países onde as populações indígenas foram, basicamente, exterminadas (como o Brasil e os países do Cone Sul). Utopia

Desarmada foi escrito antes da rebelião no México, mas a edição brasileira foi preparada depois. Castañeda escreveu um prefácio especial para esta, em que argumenta que os comentadores que viam uma refutação do seu livro nos eventos de Chiapas não haviam entendido o seu argumento básico. Ele não havia descartado a possibilidade da luta armada de esquerda na região, e sim a idéia da revolução. O zapatismo não passaria, na sua opinião, de um movimento armado reformista. Esta linha de argumentação parece um tanto estranha, sobretudo se levarmos em conta o próprio título do livro e a sua condenação de todas as experiências anteriores de luta armada de esquerda na América Latina. Mas vamos analisá-la nos seus próprios termos.

A distinção entre luta armada e revolução parece válida
A distinção conceitual estabelecida por Castañeda entre a luta armada (uma questão tática relacionada às formas de luta adequadas para condições históricas determinadas) e a revolução (um programa estratégico de transformações estruturais sociais, econômicas e políticas) me parece válida. Ela nos ajuda a superar a confusão estabelecida entre as duas questões na teoria e na prática do foquismo. Mas no coração desta inadequada contraposição entre “luta armada” e “via pacífica” no pensamento foquista estava uma outra contraposição, igualmente problemática: a que opunha, de forma genérica, a “reforma” à “revolução”. Castañeda não só deixa de examinar criticamente esta segunda (e fundamental) polarização, como a constitui no pilar central de toda a sua linha de argumentação.

A questão da relação entre reforma e revolução não é, evidentemente, uma problemática nova: há muito ela ocupa lugar central nas agudas polêmicas da esquerda em todo o mundo sobre estratégia e tática.

Não tenho a intenção de retomar mais aprofundadamente essa discussão aqui. Quero apenas destacar um fato básico: todas as experiências revolucionárias vitoriosas da era moderna – incluindo a própria revolução cubana – tem em comum processos de ruptura política comandados pela exigência de reformas, que os antigos regimes não queriam ou não podiam atender. A exigência de reformas relacionadas à conquista ou afirmação da sua soberania nacional foi o impulso fundamental de todas as revoluções sociais que varreram as regiões mais atrasadas do mundo capitalista ao longo do Século XX. Isto sugere que contrapor genericamente “revolução” e “reforma” como opostos mutuamente exclusivos – é uma perspectiva simplista e limitada. O verdadeiro desafio teórico e político para a esquerda é o de tentar unir e mobilizar o leque mais amplo possível de forças sociais em torno de bandeiras reformistas capazes de colocar em xeque as estruturas prevalecentes de desigualdade e opressão. Mas isto exige uma visão estratégica alternativa que comece por questionar e confrontar essas mesmas estruturas.

Ao insistir que reforma e revolução são “opções incompatíveis” (p. 362), Castañeda reproduz a mesma limitação conceitual básica do foquismo. Como a revolução é considerada, por ele, uma opção inviável, não restaria à esquerda latino-americana outra alternativa a não ser abandonar qualquer pretensão a “transformações” ou “rupturas” revolucionários, e abraçar com toda força o credo reformista. Isto implica a esquerda deve se resignar ao fato de que o futuro não será mais do que uma versão intensificada do presente (p. 207). Tomando como referência as experiências políticas recentes da esquerda na região, a segunda parte do livro trata de elaborar as bases de uma agenda reformista alternativa. A agenda alternativa de Castañeda

Castañeda apresenta propostas políticas muito concretas e pertinentes para a composição de um curso de desenvolvimento alternativo à ortodoxia neoliberal dominante. Muitas das suas sugestões podem ajudar a esquerda latino-americana a sair de uma posição excessivamente defensiva para tomar a iniciativa política em várias frentes. Sua recuperação da “questão nacional” como elemento central da agenda de esquerda – entrelaçada com as questões “social” e “democrática” – é um ponto importante, muitas vezes incompreendido por intelectuais marxistas ou progressistas na Europa e nos Estados Unidos (16). Me parecem igualmente válidas a sua defesa conscienciosa da integração horizontal latino-americana (o que implica a rendição voluntária de soberania para organismos federais) e da necessidade de explorar com inteligência as contradições sociais, políticas e econômicas da sociedade norte-americana.

Estas propostas, no entanto, não estão inseridas em um confronto estratégico com as estruturas altamente concentradas de propriedade privada no continente. Esta me parece ser a verdadeira “linha divisória”, hoje, entre agendas políticas “reformistas” e “revolucionárias” na região. A não ser por algumas ligeiras referências à reforma agrária, Utopia Desarmada não apresenta qualquer proposta política mais consistente para confrontar esta questão crucial. Mesmo quando defende a persistente relevância da intervenção estatal para a industrialização, Castañeda argumenta que esta intervenção deve se limitar aos setores da economia em que os capitalistas privados ainda não sejam fortes o suficiente para se responsabilizar por tudo (p. 385).

O livro justifica esta agenda reformista com um argumento com fortes ecos de Fukuyama: não existiria qualquer curso alternativo de desenvolvimento no mundo de hoje para além das fronteiras de uma economia de mercado onde o setor privado desempenhe papel central (p. 382), e de uma concepção liberal-processual de democracia (p. 272). No âmbito destes contornos, no entanto, variados cursos de desenvolvimento seriam possíveis, com arranjos institucionais distintos entre estados, mercados e empresas. Castañeda passa em revista os diferentes modelos de desenvolvimento capitalista em "oferta", e conclui que, ao invés de aceitar o modelo anglo-saxão de livre mercado, a América Latina deveria gerar um paradigma endógeno inspirado nos modelos europeu (especificamente, renano) e japonês, que preservam um papel regulatório importante para o Estado em relação aos mercados e às empresas.

A questão da relação entre reforma e revolução não é uma problemática nova
Castañeda deixa fora do seu balanço, no entanto, o grande sucesso econômico deste final de século: a China. O fato é que a experiência chinesa não se encaixa no seu argumento. Experimentando com variadas formas de propriedade (embora mantendo a predominância de formas sociais e coletivas), a China tem sustentado índices impressionantes de desenvolvimento econômico ao longo dos últimos quinze anos (17). Isto indica que existem, sim, experiências vitoriosas e viáveis de desenvolvimento não capitalista no mundo, que tem de ser levadas a sério e estudadas com cuidado. A China, assim, passa na "prova do mapa" que Utopia Desarmada toma emprestado de um líder guerrilheiro salvadorenho: "se um modelo é materializado em algum país do mundo, ele é válido e útil, se não está, não é" (18).

Mesmo em relação às experiências alemão e japonesa, Castañeda desconsidera um dos aspectos cruciais do seu sucesso (e que vale também para as experiências da Coréia do Sul e de Taiwan): dado o temor da "ameaça comunista", as forças de ocupação ocidentais deflagraram reformas fundamentais nas estruturas de propriedade desses países no pós-guerra (sobretudo na propriedade fundiária), reformas estas que não constavam da agenda política das classes dominantes endógenas (19). A ocupação militar desses países cumpriu, assim, papel análogo ao de uma “revolução”. Na Coréia do Sul, por sua vez, o setor bancário, nacionalizado inicialmente durante a ocupação japonesa, voltou a ser nacionalizado em 1961 e desempenhou papel central no “milagre econômico” do país nos anos 1960 e 1970 (20). Mesmo no Chile – a experiência neoliberal de maior sucesso econômico na América Latina – a opção adotada foi a de preservar (e não a de reverter) transformações fundamentais nas estruturas de propriedade implementadas pelo governo socialista anterior de Salvador Allende, como a reforma agrária e a nacionalização da indústria estratégica do cobre (21).

As inadequações políticas e estruturais do reformismo de Castañeda
A questão crítica que emerge, então, é se uma agenda alternativa de esquerda que não confronta as estruturas de propriedade predominantes na América Latina pode ser viável e/ou efetiva do ponto de vista social, político e econômico. Castañeda argumenta que sim, se ela incluir uma política agressiva de legislação social, uma profunda reforma fiscal e uma estratégia nacional de crescimento industrial orientada para a exportação (p. 373-74). Dada a escala de desigualdade social, exclusão e miséria existente na região, no entanto, uma abordagem desta natureza pode se revelar incapaz de reverter a tendência ao agravamento da polarização social, hoje amplamente dominante na região (22).

A persistência de estruturas de propriedade privada extremamente concentradas tende a agravar a destituição de amplas parcelas da população, para além do alcance das políticas compensatórias mais bem intencionadas. Ao mesmo tempo, a intensificação da mobilidade do capital – via a integração global de mercados financeiros e monetários – aumenta a capacidade de resistência dos investidores privados a qualquer tentativa de elevação da sua carga fiscal, com fins redistributivos. Os investidores privados sempre tem aberta para si a opção de simplesmente se retirar do país em questão, e se deslocar para outro(s) que oferece(m) condições mais atraentes de retorno. Como resultado, os mercados nacionais que operam numa lógica que privilegia o setor privado acabam por sofrer severas restrições que impedem a sua capacidade de sustentar, a longo prazo, esforços industrializadores que sejam, simultaneamente, promotores de maior integração social.

Não estou argumentando, aqui, a favor de uma agenda de socialização global e indiferenciada para a esquerda. Os limites desta alternativa já foram evidenciados pelo colapso do antigo “campo socialista” no Leste – e são ainda mais agudos nas condições de relativo atraso prevalecentes na América Latina. Estou convencido, no entanto, de que qualquer alternativa de esquerda na região, se quiser ser eficiente e viável, tem de incluir tanto a extensão de políticas sociais progressistas, quanto a multiplicação de diversas formas de propriedade social nos marcos de economias mistas que preservem uma participação importante para o setor privado. Castañeda enfatiza que a esquerda tem de ancorar as suas políticas redistributivas em capacidades fiscais e produtivas reais. Ele critica, nesta base, o “keynesianismo irresponsável” das experiências “populistas” e reformistas no hemisfério. Isto me parece um ponto pertinente e válido. Mas cabe destacar que a adoção de medidas inflacionárias desta natureza foi, em parte, um meio de promover maior integração e justiça social sem confrontar de maneira mais séria os poderosos interesses empresariais e latifundiários dominantes (23). O problema é que a agenda alternativa apresentada em Utopia Desarmada também se abstém de confrontar esses interesses e as estruturas sócio-econômicas que os sustentam. Neste contexto, a reiterada insistência do livro na “austeridade fiscal” e nas “capacidades produtivas” pode acarretar o efeito perverso de minimizar e/ou adiar indefinidamente reformas sociais urgentemente necessárias.

É ponto passivo que a América Latina precisa implementar urgentes reformas administrativas e fiscais para tornar a ação estatal mais racional e eficiente. Mas, em meio a iniqüidades sociais tão agudas, o fato é que os estados latino-americanos são "gastadores" relativamente avaros em comparação com seus colegas mais industrializados. No final dos anos 1980, os gastos estatais dos principais países da região oscilava entre 27% do PNB na Venezuela e 36,4% no Chile, contra um leque entre os 31,2% dos Estados Unidos e os 64,5% da Suécia para os países capitalistas centrais (24). Ademais, no Brasil (cujos gastos estatais no levantamento acima equivaliam a 31,2% do seu PNB), mais da metade do orçamento nacional (55,1% para ser exato) são destinados a pagamentos das dívidas interna e externa (25).

Qualquer tentativa mais séria de combinar a reversão da desigualdade social com a austeridade fiscal (de forma a escapar da ameaça da hiperinflação) terá de se confrontar com esta sangria de recursos públicos, redirecionando-os para investimentos efetivos em serviços públicos, iniciar as estratégicas de desenvolvimento e políticas redistributivas ampliadoras do mercado interno. Mas isto esbarra em interesses financeiros muito poderosos acostumados a uma promíscua e íntima relação com os poderes públicos. A esquerda, portanto, não pode deixar de considerar a perspectiva da nacionalização parcial ou integral destes interesses como parte integrante de uma estratégia global de desenvolvimento alternativo.

A política de uma alternativa de esquerda efetiva
Dadas as limitações estruturais indicadas acima, a viabilidade política da “agenda alternativa' proposta por Castañeda se sustenta em pouco mais do que em inglês se chama de wishful thinking (“pensar com meros desejos”): a esperança de que, com o fim da Guerra Fria, o stablishment norte-americano ficará mais tolerante em relação a mudanças progressistas na América Latina (dado o seu temor de um “efeito bumerangue” múltiplo na era da globalização) e a comunidade empresarial da região ficará mais sensível à necessidade de reformas sociais (dado o seu temor de que a iniquidade social e a miséria predominantes detonem uma espécie de “efeito Sendero Luminoso” na região). Esta esperança não apenas subestima os vínculos entre a política dos Estados Unidos para a América Latina e os interesses de empresas norte-americanas na região, como se baseia em uma lógica que se auto derrota: se a esquerda adotar a perspectiva sugerida por Castañeda, os interesses dos grandes empresários e latifundiários locais não terão qualquer ameaça política fundamental pela frente para despertar e/ou aguçar a sua sensibilidade reformista. Assim, a nova perspectiva que o livro sugere para a esquerda latino-americana condena esta a um papel de “sócio minoritário” em coalizões dominadas por forças sociais que já se revelaram incapazes de gerar e/ou sustentar um curso de desenvolvimento alternativo ao que é hoje dominante.

Um confronto estratégico deve atacar a alta concentração da propriedade privada
Em contraposição a esta linha de raciocínio, sustento que uma alternativa de esquerda só poderá ser efetiva se conseguir gerar um deslocamento significativo no bloco de forças que comandam os estados na região (isto é, se conseguir gerar, em termos gramscianos, um novo “bloco histórico”). Para tal, me parece crucial a adoção de um estratégia política orientada para estender o atual impulso democratizante para além das limitadas fronteiras processuais em que tem ficado confinado desde os anos 1980 (26). As propostas de reforma política formuladas em Utopia Desarmada, no entanto, se mantém estritamente nos limites das atuais formas liberais-democráticas. Isto não significa que as proposições apresentadas – a defesa do pluralismo político e da representação proporcional, da expansão do sufrágio, do fortalecimento dos órgãos legislativos, do estabelecimento de uma justiça eleitoral independente para coibir fraudes, do respeito de direitos humanos e cívicos, etc. – sejam improcedentes ou inválidas. A esquerda latino-americana aprendeu, a duríssimas penas – via aprisionamento, tortura, exílio e dor pela perda de familiares e entes queridos – a valorizar a importância crucial de se preservar práticas e instituições democráticas. Estas vem sofrendo novas restrições nos últimos anos, dado a sua ameaça potencial para a continuidade das políticas ortodoxas de ajuste (27).

A visibilidade política de Utopia Desarmada se sustenta em pouco mais do que “pensar com meros desejos”
Mas isto não significa que a esquerda deva esmorecer sua apreciação crítica do viés de classe específico materializado neste tipo de institucionalidade democrática, ou deixar de formular proposições concretas para superá-lo, ampliando o controle democrático sobre todas as dimensões da vida social – incluindo o “mundo da produção”. Acredito, mesmo, que a contribuição particular e decisiva da esquerda para a democracia na América Latina origina-se da sua consciência aguda de que as próprias formas liberais-democráticas são permanente ameaçadas pela miséria e destituição social prevalecentes na região. Assim, para confrontar a estas, temos de superar aquelas.

O sucesso político do neoliberalismo
Quero fazer um último comentário sobre o impacto político da hiperinflação e da estabilidade monetária no hemisfério. O advento dos governos Salinas no México, em 1988, Menem na Argentina, em 1989, e Collor de Melo no Brasil e Fujimori no Peru, ambos em 1990, marcaram o deslocamento do grosso da América Latina para a adoção de políticas neoliberais de ajuste ortodoxo, inspiradas no chamado “Consenso de Washington”. Apesar das conseqüências sociais negativas que este deslocamento acarretou, candidatos identificados com sua continuidade obtiveram acachapantes triunfos eleitorais nesses mesmos países cinco ou seis anos depois. No caso do Peru e da Argentina, inclusive os mesmo indivíduos foram eleitos para os cargos de presidente. Não podemos menosprezar a importância política destes resultados. Nesta última safra de eleições, as campanhas dos candidatos vitoriosos foram conduzidos com um apelo claro à continuidade dos programas de estabilização.

Curiosamente, pesquisas de opinião pública apontavam para uma significativa insatisfação com aspectos essenciais destes programas, como a restrição de direitos previdenciários e sociais, a privatização de serviços sociais básicos etc. Por que, então, a população conferiu a esses governantes um mandato eletivo para continuar esses programas?

Acredito que a solução para este enigma reside na legitimidade conferida a esses programas e a essas administrações por terem revertido ou evitado quadros de hiperinflação. Até o momento, o capital político gerado pela relativa estabilização monetária vem rendendo mais do que a insatisfação popular com outros aspectos e conseqüências dos programas de ajuste. Isto tem resultado, inclusive, na desqualificação a priori de outros cursos possíveis de estabilização monetária. As eleições presidenciais de 1994 no Brasil dão evidência gráfica disto: todos os estudos de opinião pública convergem para apontar a implementação da reforma monetária (o “Plano Real”) como fator decisivo para inversão da vantagem que o candidato Lula mantinha em relação ao candidato Fernando Henrique Cardoso na corrida para a presidência, ao provocar o deslocamento da preocupação central da população brasileira do tema da “injustiça social” para o da “inflação” (28). É interessante notar que esta legitimação política, por via indireta, das políticas ortodoxas de livre mercado, ocorreu tanto nos países em que a sua adoção se seguiu a uma ruptura política aberta com administrações anteriores (Argentina e Peru), quanto nos países em que se tratou de uma mudança de política implementada por forças já no poder (México e Brasil).

Vistos de uma perspectiva mais ampla, os resultados eleitorais de 1994-95 marcam a consolidação de um novo projeto hegemônico entre as elites latino-americanas, orientado para o lançamento de um novo ciclo de desenvolvimento econômico na região via o desmonte de instituições, estruturas e práticas de intervencionismo estatal erguidas na fase anterior de industrialização via substituição de importações. Dada a escala e a profundidade da atual ofensiva neoliberal no hemisfério, a esquerda enfrenta o desafio de formular uma alternativa em termos igualmente gerais e estratégicos. Os contornos mais precisos desta alternativa dependem das condições existentes em cada país. Mas sem esta perspectiva estratégica, a esquerda carecerá dos sentidos de propósito e direção necessários para se constituir na coluna vertebral de uma ampla frente de resistência, que agrupe os variados interesses econômicos, sociais e políticos negativamente afetados pelas políticas atuais de ajuste, de forma a acumular forças suficientes para redirecionar o desenvolvimento da região.

As propostas de reforma política em Utopia Desarmada são liberal-democráticas
Uma alternativa efetiva de esquerda tem de confrontar seriamente as estruturas de propriedade extremamente concentradas predominantes na América Latina. Não fazê-lo é a limitação básica do marco alternativo proposto em Utopia Desarmada (e aceito, hoje, por grande parte da esquerda continental). Enquanto tal, esse marco simplesmente reproduz a limitação crucial que determinou, no passado, o fracasso das experiências "populistas" e reformistas na região. Partindo da perspectiva de uma geração de revolucionários que fez da passagem das "armas da crítica" para a "crítica das armas" a sua razão de ser, acredito que Castañeda acaba por desarmar a crítica necessária para a construção de uma alternativa efetiva de esquerda.

Notas
(1) DUNKERLEY, James. "Beyond Utopia: The State of the Left in Latin America", New Left Review, n. 206, 1994.
(2) O subtítulo da versão em inglês era The Latin American Left after the Cold War (a esquerda latino-americana depois da Guerra Fria). A versão em português, editada em 1994 pela Companhia das Letras, vinha com um subtítulo mais "picante" Intrigas, Dilemas e Promessas da Esquerda Latino-Americana. Todas as indicações de número de página neste artigo referem-se à edição brasileira.
(3) Como apresentar as eleições para o governo municipal no Rio de Janeiro em 1982 como um "marco" (p. 30-31), quando se sabe que estas só vieram a ser restabelecidas em 1985: identificar a Luiz Carlos Prestes como "Lendário fundador do PCB" (p. 208), quando este só ingressou no Partido doze anos depois da sua fundação; ou atribuir ao Partido Verde (PV) 10% dos votos no Rio de Janeiro (p. 197), quando este nunca conseguiu mais de 1%.
(4) Esta linha de raciocínio começa no Capítulo 8 do livro que, sintomaticamente, se intitula La Guerre est Finie.
(5) Este, por sinal, é o subtítulo da edição brasileira do livro.
(6) ANGELL, Alan. "The Left in Latin America”, in BETHELL, Leslie. Cambridge History of Latin America, vol. 9.
(7) Como o abandono das políticas nacionais de "frente única contra o fascismo” depois da assinatura do Pacto Molotov-Ribentrop em 1939. Os problemas e constrangimentos que isto causou para os comunistas brasileiros podem ser vistos no livro de Joel Silveira e Geneton Moraes Neto, Hitler/Stalin: O Pacto Maldito, Rio de Janeiro, Record, 1989.
(8) Apesar de dividido organicamente em duas alas desde os anos 1960, o Partido Comunista (fundado em 1922) é a organização política mais antiga entre as que se encontram em atividade no Brasil. Os comunistas foram responsáveis pela introdução ativa do movimento operário na vida política nacional, rompendo com o arraigado apoliticismo das correntes anarquistas que lhe antecederam. O Partido Comunista foi responsável, igualmente, pela introdução de inúmeros temas cruciais na agenda política nacional, entre os quais os da reforma agrária e da autonomia sindical.
(9) Vale registrar que o próprio Castañeda não é consistente no seu regionalismo/particularismo, já que a agenda alternativa que propõe para a esquerda latino-americana busca inspiração no "modelo alemão" da "economia social de mercado".
(10) Vale lembrar que, no imediato pós-guerra, as idéias do dirigente comunista norte-americano, Earl Browder, sobre a dissolução dos partidos em amplas frentes democráticas tiveram muito trânsito entre os comunistas sul-americanos, que as consideravam um desdobramento "natural" das políticas de "união nacional contra o fascismo" adotadas durante a Segunda Guerra.
(11) No seu discurso de despedida do Senado brasileiro, em 14 de dezembro de 1994, o presidente-eleito Fernando Henrique Cardoso justificou a adoção de amplas medidas de privatização e desregulação com base no argumento de que os mecanismos, práticas e instituições remanescentes da "era Vargas" constituem o principal obstáculo para a modernização do país.
(12) Para fundamentar esta proclamação, Castañeda faz referência ao artigo de Alan Touraine, "El Fin de los populismos en Latin America", El País, edição de 6 de agosto de 1989.
(13) No Brasil, por exemplo, lideranças "populistas" como Brizola e Arraes tem tendido a assumir uma oposição mais forte do que outras correntes da esquerda (incluindo o próprio PT) a temas da agenda neoliberal que implicam em perda significativa de soberania nacional. (14) A base social do PDT de Leonel Brizola no Rio de Janeiro é uma expressão disto.
(15) Em ambos, por sinal, a condução da luta armada foi combinada com a organização de frentes políticas muito amplas, como a Frente Patriótica, na Nicarágua, e a Frente Democrática Revolucionária, em El Salvador.
(16) A justificativa teórica apresentada para este ponto, no entanto, não me parece muito consistente. Além de subestimar o papel central desempenhado pelo poder de Estado nos processo de formação de estados nacionais unificados na Europa e nos Estados Unidos, a noção de que o conjunto da América Latina é afligida por um processo comum de "formação nacional incompleta" (p. 229) tende a generalizar para o conjunto da região uma realidade específica aos países que foram berço de importantes civilizações pré-colombianas (na América Central e na região andina), onde persistem fortes comunidades e identidades indígenas. As identidades nacionais de países como o Brasil ou os do Cone Sul da América do Sul são tão ou mais "completas" e consolidadas do que dos Estados Unidos ou de qualquer país europeu. Emprego o termo "completo" com certa relutância, pois ele pode implicar uma concepção reificada (estática e finita) de identidade nacional.
(17) A New Left Review publicou, no seu número 208, artigos muito interessantes de Paul Bowles, Xiaoyuan Dong, Roberto Mangabeira Unger e Zhiyuan Cui sobre o "milagre chinês".
(18) Castañeda comete uma omissão análoga em relação a Cuba quando afirma que nenhum pais latino-americano alguma vez conseguiu combinar crescimento econômico e distribuição eqüitativa de renda (p. 326).
(19) Sobre isto, ver Bruce Cunnings, "The Abortive Abertura: South Korea in the Light of the Latin American Experience", New Left Review, n. 173, 1989 e Alice Amsden, "Third World Industrialization: 'Global Fordism' or a New Model?", New Left Review, n. 182, 1990.
(20) G. van Liemt, Bridging. The Gap: Four Newly Industrialising Countries and the Division of Labour, Genebra, OIT.
(21) Ver Manuel Riesco, "Honour and Eternal Glory to the Jacobins!", New Left Review, n. 212, 1995.
(22) Confirmando os resultados de estudos anteriores, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1994 do Banco Mundial classifica as nações latino-americanas no topo da lista dos países com maior desigualdade de renda no mundo. O Brasil tem a maior concentração de riquezas entre os 71 países computados pelo estudo: os 10% mais ricos da população se apropriavam de mais de 51% de toda a renda familiar (contra 46% em 1983). Nos anos 1980, a concentração de propriedade fundiária no Brasil, medida pelo índice Gini, alcançava 0,923, contra 0,7 para a Índia e o Paquistão; 0,4 para os Estados Unidos e a Austrália; e 0,3 para a Bélgica, a Holanda e a Noruega (Rodolfo Hoffman, "Evolução da Desigualdade da Distribuição da Posse da Terra no Brasil no Período 1966-1980", Boletim da ABRA, n. 6). O Índice Gini varia de 0 (distribuição perfeitamente igualitária entre todos os membros de uma população) a 1 (concentração de
todos os atributos em um único membro da população). Este quadro foi mantido ao longo da última década.
(23) Agradeço a Robin Blackburn por ter me chamado a atenção para este ponto.
(24) CEPAL, Transformación Productiva con Equidad, Santiago, 1990 e José Maria Maravall, "Las Razones del Reformismo: Democracia y Politica Social", Leviatán, n. 35, 1989.
(25) Paulo Lopes (ed.), A Gestão ao Estado Brasileiro Hoje: Tendências e Propostas, CUT-RJ, Rio de Janeiro, 1995, p. 33.
(26) Um argumento nesta mesma direção pode ser encontrado em Atílio Borón, Estado Capitalismo e Democracia na América Latina, São Paulo, Paz e Terra, 1994.
(27) O "auto-golpe" de Fujimori é emblemático disto. Mas mesmo a experiência mais "civilizada" de Fernando Henrique Cardoso no Brasil tem gerado desenvolvimentos preocupantes, como o sistemático atropelo do poder legislativo pelo executivo, a introdução do princípio da reeleição para um poder executivo altamente concentrado e a pesada pressão para substituir o sistema de representação proporcional atualmente existente por alguma forma de sistema misto (como foi feito na Itália). Infelizmente, alguns setores da esquerda brasileira – assim como ocorreu na Itália – estão mais interessados em explorar as vantagens eleitorais imediatas que tal mudança poderá acarretar, do que preocupados com os prejuízos mais permanentes que isto acarreta para a consolidação e o desenvolvimento d democracia.
(28) Ver, por exemplo, Olavo Brasil Jr., "As Eleições Gerais de 1994: Resultados e Implicações Político-Institucionais", Dados, vol. 38, n. 1, 1995.

Sobre o autor

Professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC/Rio e do Departamento de Ciência Política da UFF. Este artigo foi originalmente publicado na New Left Review, n. 215, 1996.

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