21 de junho de 2007

O Negro Branco (Outono de 1957)

O ensaio inflamado de Norman Mailer, de 1957, sobre os "hipsters" originais

Norman Mailer


Norman Mailer e Jimmy Breslin admitindo a derrota após a campanha de Mailer para prefeito em 1969. Foto © Mitchell Cohen (Todos os direitos reservados).

Tradução / Norman Mailer concorreu nas primárias democratas para prefeito da cidade de Nova York em 1969 com o jornalista Jimmy Breslin como seu companheiro de chapa (Breslin buscou a indicação para presidente do Conselho Municipal). O programa deles exigia que a cidade de Nova York se separasse do estado de Nova York. O poder político deveria ser transferido para os bairros da cidade. O slogan de Mailer-Breslin era "Os outros caras são a piada". Dissent publicou muitos dos artigos controversos de Mailer, incluindo "he White Negro" (Fall 1957), que foi reimpresso abaixo, e Mailer atuou no conselho editorial da Dissent por mais de três décadas. A fotografia acima foi tirada por um trabalhador de campanha de dezessete anos que nunca tinha ouvido falar do Dissent, Mitchell Cohen, que agora co-edita a revista. Mailer morreu em 10 de novembro aos 84 anos.

O Negro Branco

Reflexões superficiais sobre o Hipster

Nossa busca pelos rebeldes desta geração nos levou ao hipster. O hipster é uma infâmia terrível virada do avesso. Um personagem de seu tempo, ele está tentando voltar ao conformismo para não ser notado... Você não consegue entrevistar um hipster porque seu principal objetivo é manter afastada uma sociedade que, ele pensa, está tentando transformar todos em sua própria imagem. Ele usa maconha porque isso supri ele de experiências que ele não pode compartilhar com os "quadrados". Ele pode ser afetado por um chapéu de abas largas ou um fraque, mas geralmente prefere passar desapercebido. O hipster pode ser um músico de jazz; ele raramente é um artista, quase nunca um escritor. Ele pode levar a vida como um pequeno criminoso, um vagabundo, um pierrô ou um carregador no Greenwich Village, mas alguns hipsters tem achado um refúgio seguro nas altas rodas como humoristas na televisão ou atores de filmes. (O falecido James Dean, por exemplo, era um herói hipster.)... é tentador descrever o hipster em termos psiquiátricos como infantil, mas o estilo de seu infantilismo é um sinal dos tempos, ele não tenta impor sua vontade sobre os outros, sua moda Napoleão, mas se contenta com uma mágica onipotente nunca reprovada porque nunca foi testada... Como único dissidente extremo de sua geração, ele exerce um poderoso apelo ao underground pelo conformismo, através de assinaturas de jornais com suas delinquências, seu desestruturado jazz e seus grunhidos emotivos. 
— "Born 1930: The Unlost Generation" por Caroline Bird, Harper's Bazaar, Fev. 1957

Provavelmente nós nunca seremos capazes de determinar a destruição psíquica que os campos de concentração, e as bombas atômicas, causaram no inconsciente de quase todos que sobreviveram aqueles anos. Pela primeira vez na história civilizada, talvez pela primeira vez em toda a história, nós estamos sendo forçados a viver com o conhecimento reprimido que a menor faceta de nossa personalidade, ou a mínima projeção de nossas ideias, ou, na verdade, a ausência de ideias e a ausência de personalidade, pode significar, igualmente, que nós talvez ainda seremos exterminados até a morte como criptogramas de alguma vasta operação estatística na qual nossos dentes teriam que ser contados, e nosso cabelo seria preservado, mas nossa morte em si seria desconhecida, desonrada, e indeterminada, uma morte que não poderia ser seguida de dignidade, como uma possível consequência de uma série de atos que escolhemos, mas certamente a morte por um Deus ex machina em uma câmara de gás ou uma cidade radioativa; e então, se no meio da civilização – esta civilização fundada sob a Faustiana vontade de dominar a natureza pelo controle do tempo, controle das ligações das causas sociais e seus efeitos – no meio de uma civilização econômica fundada sob a confiança de que o tempo poderia, de fato, ser submetido a nossa vontade, nossa psique estava submetida a ansiedade intolerável que a morte imotiva, bem como a vida era imotiva, e o tempo desprovido de causa e efeito, que tenha chegado a parar.

A Segunda Guerra Mundial apresentou um espelho para a condição humana que cega qualquer um que olhar para ele. Para tanto, dez milhões foram assassinados em campos de concentração, saídos de uma inexorável agonia e contrações de um super-Estado fundado sob as sempre insolúveis contradições da injustiça, que foi então obrigado também a ver que não importa quão aleijada e pervertida era a imagem do homem que essa sociedade havia criado, a sagacidade, no entanto, de sua criação, sua criação coletiva (ao menos sua criação coletiva do passado) e se sua sociedade era tão assassina que poderia ignorar, em seguida, a mais hedionda das questões sobre sua própria natureza?

Pior. Dificilmente se poderia manter a coragem de ser individual, de falar com sua própria voz nos anos em que se podia, complacentemente, se aceitar como parte de uma elite por ser um radical. O homem sabia que quando ele discordasse marcaria sua vida de forma que poderia ser lembrado em qualquer ano de crise manifesta. Não é de admirar, então, que estes foram os anos de conformidade e depressão. Um fedor de medo tinha saído de todos os poros da vida americana, e nós sofremos uma falha coletiva de nervos. A única coragem, com raras exceções, que nós temos sido testemunhas tem sido a coragem isolada de pessoas isoladas.

II

É nesse cenário desolador que um fenômeno apareceu: o existencialista americano – o hipster, o homem que sabe que se é nossa condição coletiva viver com a morte instantânea pela bomba atômica, relativamente rápida morte pelo Estado como em L’Univers concentrationnaire, ou com uma morte lenta pelo conformismo, com cada instinto criativo e rebelde reprimido (em que os danos na mente, no coração, no fígado e nos nervos nenhuma fundação de pesquisa do câncer vai descobrir), se o destino do homem do Séc. XX é viver com a morte na adolescência por uma demência prematura, por quê a única resposta que a vida dá é a aceitação dos termos da morte, para viver com a morte como perigo imediato, para divorciar si mesmo da sociedade, para existir sem raízes, para se estabelecer nessa desconhecida jornada dentro de imperativas rebeliões de si mesmo. Em suma, se a vida é criminosa ou não, a decisão é encorajar o psicopata em si mesmo, para explorar os domínios da experiência, onde a segurança é entediante e, portanto, a doença, e o eu só existe no presente, naquele enorme presente que é sem passado ou futuro, memória ou intenção planejada, a vida onde um homem pode ir em frente até ser batido, onde ele pode apostar suas energias através daquelas pequenas, ou grandes, crises de coragem e situações imprevistas que afligem o seu dia, onde ele pode conviver com isso ou condenado a não swingar. A essência não declarada do Hip, seu brilho psicótico, vibra com o conhecimento de que novos tipos de vitórias aumentam seu poder para novos tipos de percepções; e derrotas, o tipo errado de derrotas, atacam o corpo e aprisionam sua energia até que esteja enjaulado numa prisão de hábitos de outras pessoas, derrotas de outras pessoas, o tédio, um desespero calmo, silencioso numa raivosa autodestruição gelada. Ou se é hip ou se é quadrado (a alternativa que a nova geração que chega a vida americana está começando a sentir), ou se é o rebelde ou se é o conformista, um é o desbravador do Velho Oeste da vida americana noturna, ou uma pilha quadrada, aprisionado nos tecidos totalitários da sociedade americana, condenados de qualquer maneira ao conformismo se quiser ter sucesso.

Uma sociedade totalitária produz uma enorme demanda para coragem aos homens, e uma sociedade parcialmente totalitária produz sempre uma grande demanda de ansiedade generalizada. Na verdade, se alguém está para ser um homem, quase qualquer tipo de ação inconvencional, frequentemente, pede uma coragem desproporcional. Portanto, não é por acidente que a fonte do Hip é o Negro, pois ele vive na margem, entre o totalitarismo e a democracia há dois séculos. Mas a presença do Hip como uma filosofia de trabalho nos subúrbios da vida americana é, provavelmente, devido ao jazz e sua entrada na cultura, sua influência sutil, mas tão penetrante, em uma geração de vanguarda – aquela geração de aventureiros pós-guerra que (alguns conscientemente, outros por osmose) tinham absorvido as lições de desilusão e desgosto dos anos 20, da depressão e da guerra. Compartilhando uma descrença coletiva nas palavras dos homens que tinham muito dinheiro e controlavam muitas coisas também, eles quase sabiam como é poderosa a descrença na sociedade de ideias monolíticas e do companheiro único, da família sólida e da respeitável vida amorosa. Se os antecedentes intelectuais dessa geração podem ser traçado a partir da influência, separada, de D. H. Lawrence, Henry Miller e Wihelm Reich, a viável filosofia de Hemingway se encaixa na maioria dos fatos: um mundo ruim, como ele esteve a dizer e dizer novamente (enquanto dava um tempo de seu esnobe status de novo rico e dedicado a guloseimas), é um mundo ruim onde não há amor, sem piedade, sem caridade, sem justiça, ao menos que um homem possa manter sua coragem, e na verdade isso ajustaria alguns dos fatos. O que serviu a necessidade do aventureiro ainda mais precisamente foi o categórico imperativo de Hemingway de que o que o fazia se sentir bem era, portanto, O Bem.

Portanto, não é de se admirar que em certas cidades americanas, em Nova Iorque, claro, e Nova Orleans, Chicago, São Francisco e Los Angeles, em cidades americanas como Paris e Cidade do México, essa particular parte de uma geração foi atraída pelo que o Negro tinha a oferecer. Em lugares como o Greenwich Village, o menage-a-trois estava completo – o boêmio e o delinquente juvenil ficaram cara a cara com o Negro, e o hipster era um fato na vida americana. Se a maconha era a aliança de casamento, o filho foi a linguagem de gírias do Hip para a expressão de estados abstratos de sentimentos que todos poderiam compartilhar, ao menos todos que eram Hip. E, nesse casamento entre o branco e o negro, foi o Negro que entrou com o dote cultural. Qualquer Negro que deseje viver precisa viver com o perigo desde seu primeiro dia, e nenhuma experiência pode ser casual para ele, nenhum Negro pode passear por uma rua com qualquer certeza real de que a violência não vai visitá-lo naquela caminhada. O casulo de segurança para o branco médio: mãe e um lar, brincadeiras e família, não são sequer uma zombaria para milhões de Negros; são impossíveis. O Negro tem estas simples alternativas: viver uma vida de constante humilhação ou o perigo sempre ameaçador. Deste jeito, onde a paranoia é tão vital para a sobrevivência como o sangue, o Negro tem permanecido vivo e começou a crescer seguindo as necessidade do seu corpo até onde podia. Sabendo, nas células de sua existência, que a vida era uma guerra, nada além de guerra, o Negro (admitindo todas as exceções) raramente podia permitir às sofisticadas inibições da civilização, sendo assim, ele manteve para sua sobrevivência a arte primitiva, ele viveu no enorme presente, ele subsistiu para os embalos de sábado a noite, renunciando aos prazeres da mente pelo mais obrigatório prazer do corpo, e na sua música ele deu voz ao caráter e qualidades a sua existência, à sua raiva e as infinitas variações de alegria, luxúria, languidez, rosnado, câimbra, pitada, grito e desespero de seu orgasmo. Para o jazz é o orgasmo, é a música do orgasmo, bom orgasmo e mau, e assim ele falou através de uma nação, teve a comunicação pela arte, mesmo onde ela era aguada, pervertida, corrompida e quase morta, falou que não importava a maneira que as lavanderias populares de estado existencial instantâneo, a qual alguns brancos poderiam responder, isso era de fato uma comunicação pela arte porque dizia, “eu sinto isso, e agora você também”.

Assim, existia uma nova geração de aventureiros, aventureiros urbanos, que vagavam pela noite procurando por ação, com o código do homem negro para adequar os fatos. O hipster tinha absorvido a sinapse do existencialismo do Negro, e para propósitos práticos poderia ser considerado um Negro Branco.

Para ser um existencialista é preciso ser capaz de sentir a si mesmo – é preciso conhecer os desejos, as raivas, as angústias, deve se saber o caráter da frustração e saber o que a satisfaria. O homem civilizado pode ser um existencialista apenas se isso é chique, e desertar isso rapidamente para o próximo chique. Para ser uma real existencialista (Sartre reconhecidamente é o contrário) é preciso ser religioso, deve-se ter o senso de “propósito” – seja qual for o propósito – mas uma vida que é dirigida pela sua fé na necessidade de ação é uma vida comprometida com a noção de que o substrato da existência é a procura, o fim significativo, mas misterioso; é impossível viver deste modo uma vida, a menos que as emoções provenham de suas profundas convicções. Apenas os franceses, alienados além da alienação do inconsciente, podiam dar boas vindas a uma filosofia existencial sem jamais senti-la; de fato, apenas um francês, por ter declarado que o inconsciente não existe, poderia explorar as delicadas involuções da consciência, o microscopicamente sensual e todas as frustrações ineffable do devir mental, para finalmente criar a teologia do ateísmo e então submetê-la a um mundo de absurdos, onde uma existência absurda é mais coerente.

No diálogo entre o ateu e o místico, o ateu está do lado da vida, vida racional, da vida não dialética – uma vez que ele concebe a morte como vazia, ele pode, não importa quão cansado ou desesperado, desejar por nada mais que mais vida; seu orgulho é que ele não transpõe sua fraqueza e sua fadiga espiritual num anseio romântico pela morte, pois tal apreciação da morte é então capaz de ser elaborada pela sua imaginação de um universo de estrutura significativa e orquestração moral.

No entanto, este argumento masculino pode significar pouquíssimo para o místico. O místico pode aceitar a discrição do ateu de sua fraqueza, ele pode concordar que seu misticismo foi uma resposta ao desespero. E ainda…e ainda seu argumento é que ele, o místico, é o único que finalmente escolheu viver com a morte, e assim a morte é sua experiência, e não do ateu, e o ateu, evitando as ilimitadas dimensões do profundo desespero, tornou-se incapaz de julgar a experiência. O real argumento a qual o místico precisa sempre recorrer é a forte intensidade de sua visão particular – seu argumento depende da visão precisamente porque o que ele sentiu na visão é tão extraordinário que não há argumento racional, nenhuma hipótese de “oceanos de sentimentos” e, certamente, não há descrença reducionista que possa explicar o que se tornou para ele a realidade mais real que a realidade da lógica intimamente raciocinada. Sua experiência interior das possibilidades dentro da morte é sua lógica. Assim, também, para o existencialista. E para o psicopata. E para o santo, o toureiro e o amante. O denominador comum para todos eles é sua consciência ardente do presente, exatamente aquela consciência incandescente que as possibilidades dentro da morte abriram para eles. Existe uma condição de desespero profundo que permite permanecer na vida apenas pela atraente morte, mas sua recompensa é o conhecimento de que o que está acontecendo a cada instante do presente elétrico é bom ou ruim para ele, bom ou ruim para sua causa, seu amor, sua ação, suas necessidades.

É esse conhecimento que provém a curiosa comunidade de sentimentos no mundo do hipster, um silêncio religioso renascido, para ser claro, mas o elemento que é excitante, perturbador, um pesadelo talvez, é que os incompatíveis vieram para cama, a vida interior e a vida violenta, a orgia e o amor dos sonhos, o desejo de assassinar e o desejo de criar, uma concepção dialética da existência com o tesão pelo poder, sombrio, romântico, e, ainda, inegavelmente dinâmica da existência, para ver cada homem e mulher como se movendo através de cada momento da vida para frente em crescimento, ou para trás, em morte.

III

Pode ser frutífero considerar o hipster como um psicopata filosófico, um homem interessado não só pelo imperativo perigo de sua psicopatia, mas também pela codificação, ao menos para si mesmo, da suposição no qual seu universo interior é construído. Por essa premissa o hipster é um psicopata, não um psicopata, mas a negação do psicopata, pois possui o distanciamento narcísico do filósofo, essa absorção das nuancias recessivas dos seus próprios motivos, tão alienígena ao impulso de irracionalidade dirigida do psicopata. Nesse país, onde milhões de psicopatas se desenvolvem a cada ano, cunhados com a estampa da nossa contraditória cultura popular (onde sexo é pecado e ainda o sexo é o paraíso), como se já estivesse tudo pronto para o desenvolvimento do psicopata antitético, extrapolado por sua própria condição, da certeza interior de que sua rebelião é justa, uma visão radical do universo que assim o separa da ignorância geral, do preconceito reacionário, e da auto-dúvida do mais convencional psicopata. Tendo convertido sua experiência inconsciente em muito conhecimento consciente, o hipster mudou o foco de seus desejos de gratificação imediata para a paixão pelo poder do futuro que será a marca do homem civilizado. No entanto, com uma diferença irredutível. O Hip é a sofisticação do sábio primitivo na selva gigante, e assim seu apelo ainda está além do homem civilizado. Se há dez milhões de americanos que são mais ou menos psicopatas (e a estimativa é muito modesta), provavelmente não há mais que cem mil homens e mulheres que, conscientemente, se vêem como hipster, mas a importância deles é que eles são uma elite com o potencial de liderança implacável de uma elite, e uma linguagem que a maioria dos adolescentes pode entender instintivamente, a intensa visão do hipster que a existência corresponde a sua experiência e seu desejo de rebelar-se.

Antes que se possa dizer mais sobre o hipster, é óbvio que se tenha muito a dizer sobre o estado psíquico do psicopata – ou, clinicamente, a personalidade psicopática. Agora, por razões que podem ser mais curiosas que a similaridade das palavras, mesmo muitas pessoas com orientação psicanalítica, frequentemente, confundem o psicopata com o psicótico. Ainda que os termos sejam polares. O psicótico é legalmente insano, o psicopata não; o psicótico é quase sempre incapaz de desencadear atos físicos de raiva por sua frustração, enquanto o psicopata em seu extremo é virtualmente incapaz de restringir sua violência. O psicótico vive em um mundo tão misterioso que o que está acontecendo a cada momento da sua vida não é muito real para ele, enquanto o psicopata raramente conhece qualquer realidade maior que o rosto, a voz, o ser de pessoas particulares entre as quais ele pode encontrar a qualquer momento. Sheldon e Eleanor Glueck o descrevem da seguinte maneira:

O psicopata... pode ser distinguido da pessoa que escorrega, ou sai, de um estado psicótico verdadeiro por sua longa, e persistente, atitude e comportamento anti-sociais, e a ausência de alucinações, delírios, fuga maníaca de ideias, confusão, desorientação e outros sinais dramáticos de psicose.

O falecido Robert Lindner, um dos poucos especialistas no assunto, em seu livro Rebel Without A Cause - The Hypnoanalysis of a Criminal Psychopath apresentou parte de sua definição dessa forma:

... o psicopata é um rebelde sem causa, um agitador sem slogan, um revolucionário sem um programa: em outras palavras, sua rebeldia tem como objetivo atingir metas satisfatórias apenas para si mesmo; fica incapacitado de se esforçar para fazer o bem para os outros. Todos os seus esforços, escondidos sob não importa qual disfarce, representam investimentos projetados para satisfazer seus desejos e vontades imediatas... 
... O psicopata, como uma criança, não pode esperar os prazeres da satisfação; enlatar o pensamento é uma de suas subjetividades, característica universal. Ele não pode esperar a gratificação erótica que as convenções demandam, ela deveria ser precedida pela perseguição antes da matança: ele tem que estuprar. Ele não pode esperar o desenvolvimento do prestígio na sociedade: suas ambições egoístas levam ele a pular para as manchetes pelas suas ousadas performances. Como um fio vermelho, a predominância desse mecanismo, de satisfação imediata, corre pela história de cada psicopata. Explica não só seu comportamento, mas também a natureza violenta de seus atos.”

Contudo, mesmo Lindner, que era o mais imaginativo e o mais simpático psicanalista que estudou a personalidade psicopática, não estava pronto para projetar a si mesmo na simpatia essencial – que o psicopata pode ser, de fato, o pervertido e perigoso líder de de um novo tipo de personalidade, que poderia se tornar o centro de expressão da natureza humana no Séc. XX. O psicopata está melhor adaptado para dominar aquela inibição mutuamente contraditória, entre violência e amor, que a civilização exige de nós, e se lembrar de que nem todo psicopata é um caso extremo, e que a condição de psicopata está presente em um grande número de pessoas, incluindo muitos políticos, soldados profissionais, colunistas de jornais, comediantes, artistas, músicos de jazz, garotas, homossexiais promiscuos e metade dos executivo de Hollywood, televisão e publicidade. Pode-se ver que existem aspectos da psicopatia que já exercem considerável influência cultural.

O que caracteriza todo psicopata, e é parte do psicopata, é que ele está tentando criar, para si, um novo sistema de nervoso. Geralmente somos obrigados a agir com um sistema nervoso que foi formado na infância, e que carrega nos seus circuitos os estilos, muito contraditórios, de nossos pais e nosso meio primitivo. Entretanto, nós somos obrigados, muitos de nós, a encontrar o ritmo do presente, e do futuro, como reflexos de ritmos que vem do passado. Não é apenas “o peso morto das instituições do passado”, mas, de fato, os ineficientes, e frequentemente antiquados, circuitos nervosos do passado que estrangulam o nosso potencial para responder às novas possibilidades que podem ser excitantes para nosso crescimento individual. Por toda a história moderna, a “sublimação” foi possível: ao custo da expressão de apenas uma porção de si mesmo, uma pequena porção que poderia ser expressa intensamente. Mas a sublimação depende de uma ressonância no tempo da história. Se a vida coletiva de uma geração passa muito rapidamente, o “passado” pelo qual cada homem e mulher dessa geração pode passar não é mais, podemos dizer, de trinta anos, mas relativamente cem ou duzentos anos. Então o sistema nervoso é sobrecarregado para além das possibilidades de tais compromissos, como a sublimação, especialmente desde que os estáveis valores da classe média, que são pré-requisitos, foram virtualmente destruídos no nosso tempo, ao menos como valores espiritualmente gratificantes livres de confusão ou dúvida. Em tal crise, de tempo histórico acelerado e valores deteriorados, a neurose tende a ser substituída pela psicopatia, e o sucesso da psicanálise (que prometeu, há dez anos atrás, vir a ser uma força maior direta) diminui por sua incapacidade intrínseca e característica de lidar com paciente mais complexos, mais experimentados e mais aventureiros que o próprio psicanalista. Na prática, a psicanálise já se tornou, com bastante frequência, nada mais que uma drenagem psíquica. O paciente muda tanto quanto um velho, e suas fantasias infantis, que ele é encorajado a expressar, estão condenadas a exaustão frente às reações não-responsivas do analista. O resultado, para muitos pacientes, é uma contração, um “tranquilizante” para suas qualidades e vícios mais interessantes. O paciente está, de fato, tão mudado quanto um sapato velho – menos mal, menos bom, menos brilhante, menos voluntarioso, menos destrutivo, menos criativo. Ele é, assim, capaz de se conformar com aquela sociedade contraditória e insuportável que primeiro criou sua neurose. Ele pode se conformar com o que odeia porque ele não tem mais paixão de sentir aversão tão intensamente.

O psicopata é notoriamente difícil de se analisar porque a decisão fundamental de sua natureza é tentar viver sua fantasia infantil, e nesta decisão (dada a alternativa triste da psicanálise) pode haver uma certa sabedoria instintiva. Pois há uma dialética para mudar a própria natureza, como base de todo método psicanalítico: é o conhecimento de que se os hábitos mudam, deve-se voltar para a fonte dessa criação, e é assim que o psicopata explora a volta para a estrada da homossexualidade, da orgia, do vício em drogas, do estupro, do roubo e do assassino que procura aquele paralelo violento, frequentemente, nas contradições desesperançosas que ele tinha na infância ou quando criança. Pois, se tiver coragem de enfrentar a situação paralela, no momento em que estiver pronto, então ele terá a chance de agir como ele nunca agiu antes, e satisfazendo a sua frustração – se puder ter sucesso – ele poderá passar, por uma substituição simbólica, através das fechaduras do incesto. Assim, ao dar expressão a criança enterrada nele mesmo, ele pode diminuir a tensão daqueles desejos infantis e se libertar para refazer um pouco de seu sistema nervoso. Como o neurótico, ele está procurando uma oportunidade de crescer uma segunda vez, mas o psicopata sabe, instintivamente, que expressar um impulso proibido ativamente e mais benéfico para ele que simplesmente confessar seus desejos num consultório seguro. O psicopata é ordinariamente ambicioso, ambicioso demais para negociar a concepção esboçada de suas vitórias na vida no desgaste sombrio, e pacífico, de sofá de um psicanalista. Assim, sua jornada associativa ao passado é vivida no teatro do presente, e ele existe por aquelas mudanças de situações onde seus sentidos estão tão vivos que ele pode estar ciente ativamente (como o analisado está ciente passivamente), de quais são seus hábitos, e como ele pode mudá-los. A força do psicopata é que ele sabe (o que a maioria de nós só pode adivinhar) o que é bom para ele, e o que é ruim para ele, exatamente naquele instante quando um velho hábito incapacitante foi atacado pela experiência que potencializa a existência da mudança, para substituir um medo negativo e vazio por uma ação extrema, mesmo que – e aqui eu obedeço a lógica do psicopata extremo – mesmo se o medo for dele mesmo, e a atitude for assassinato. Os assassinos psicopatas – se ele tiver coragem – pela necessidade de purgar sua violência, pois se ele não puder esvaziar seu ódio ele não vai poder amar, seu ser está congelado com o ódio implacável de si mesmo por sua covardia. (Pode-se, claro, se sugerir que é preciso pouca coragem para dois marginais de 18 anos fortes, vamos dizer, bater na cabeça do segurança de uma loja de doces, e, de fato, o ato – mesma pela lógica do psicopata – não é provável que seja muito terapêutico para a vítima, que não é um imediato igual. Ainda assim, algum tipo de coragem é necessária para alguém assassinar não apenas um fraco de cinquenta anos, mas também uma instituição, alguém viola a propriedade privada, alguém entra em uma nova relação com a polícia e introduz um elemento perigoso em uma vida. Para o marginal é ousar pelo desconhecido, e não importa qual brutal é o ato não é completamente covarde.)

No fundo, o drama do psicopata é que ele procura amor. Não o amor como a busca de um companheiro, mas amor como a busca por um orgasmo mais apocalíptico do que o que o precedeu. O orgasmo é sua terapia – ele sabe no âmago de seu ser que o bom orgasmo aumenta suas possibilidade e o orgasmo ruim o aprisiona. Mas nessa busca o psicopata se torna uma encarnação das contradições extremas da sociedade no qual formou seu caráter, e o orgasmo apocalíptico frequentemente permanece tão remoto como o Santo Graal, pois a grupos, nichos e emboscadas de violência em suas próprias necessidades, e no imperativo, e retaliações, dos homens e mulheres entre os quais ele vive sua vida, de modo que ao mesmo tempo que ele drena seu ódio em um ou outro ato, as condições de sua vida o criam novamente nele até que o drama de seus movimentos levem a uma cínica semelhança com um sapo que subiu alguns metros no poço apenas para cair novamente.

Entretanto, há algo a ser dito sobre a busca depois do bom orgasmo: quando se vive no mundo civilizado, e ainda não se pode desfrutar de nenhum néctar cultural deste mundo, porque os paradoxos onde a civilização está construída demandam que se permaneça sem cultura e alienado ao material humano explorável, então a lógica de se tornar um exilado sexual (se as raízes psicológicas de alguém podem ser colocadas no exílio) é de que pelo menos há uma chance de correr competindo para ser fisicamente saudável, enquanto for vivo. Não é por acaso que a psicopatia é mais prevalecente no Negro. Odiado por fora, e portanto, odiando a si mesmo, o Negro foi forçado para a posição de explorador de todos os desertos morais da vida civilizada, automaticamente condenados pelos Quadrados, como delinquente, mau, imaturo, mórbido, auto-destrutivo ou corrupto. (Atualmente os termos tem o mesmo peso. Dependendo do telescópio cultural do qual o Quadrado observa o universo, “mau” ou “imaturo” são termos fortes de condenação). Mas o Negro, não tendo o privilégio de satisfazer sua auto-estima com a impetuosa condenação categórica, optou por se mover para aquela outra direção onde todas as situações tem a mesmo valor, e na pior perversão, promiscuidade, malandragem, vício em drogas, estupro, navalhas, garrafas quebradas, qual é, o Negro descobriu, e elaborou, uma moralidade fundamental, uma diferenciação étnica entre o bom e o mau em toda atividade humana, do cafetão aproveitador (como oposição ao vagabundo) ao, relativamente dependente, traficante, até a prostituta. Acrescente-se a isso a sua habilidade de linguagem, a alternativa abstrata e ambígua das quais, pelo perigo da opressão, eles aprenderam a falar (Bem, agora, cara, como eu estou procurando uma gata para me ligar…”), adicione também mais da profunda sensibilidade do jazzman Negro, que era o mentor intelectual de um povo, e não é muito difícil de acreditar que essa linguagem em que o Hip está envolvido foi uma linguagem astuta, testada e moldada para uma experiência intensa, e entretanto diferente das gírias dos brancos, como é diferente a obscenidade especial de um soldado que enfatiza o “cú” quando outro usa a “merda” na mesma circunstância, sendo capaz de expressão o estado existencial do homem alistado. O que faz do Hip uma linguagem especial é que ela não pode ser ensinada – se não se compartilha nenhuma das experiências de exaltação, e exaustão, qual ela é equipada para descrever, então ela se parecerá meramente maliciosa, vulgar e irritante. É uma linguagem pictórica, mas não pictórica como uma arte não objetiva, imbuída com uma pequena mais intensa dialética de mudança, uma linguagem para o microcosmo, nesse caso o homem, pois toma suas experiências imediatas de qualquer homem e exalta a dinâmica de seus movimentos, não especificamente, mas abstratamente, de modo que ele é visto mais como um vetor em uma rede de forças do que um personagem estático em um campo cristalizado. (Que, mais recentemente, é a visão prática do esnobe). Por exemplo, é real a dificuldade ao tentar encontrar um substituto Hip para “teimoso”. A melhor possibilidade que vejo para isso é: “Aquele gato que nunca sairá dessa sintonia, pai”. Mas estar em sintonia implica movimento, movimento limitado, mas movimento insuficiente. Não há maneira de descrever alguém que não se move. Mesmo um estranho se move – mesmo que num ritmo exasperadamente mais lento que o ritmo dos gatos descolados.

IV

Como uma criança, o hipster está lutando por um doce, e sua linguagem é um conjunto de indicações de seu sucesso ou fracasso na competição pelo prazer. Não explícito, mas óbvio, é o senso social de que não há doce suficiente para todo mundo. E então o doce vai apenas para o vencedor, o melhor, o maior, o homem que sabe mais sobre como encontrar sua energia e como não perdê-la. A ênfase está na energia porque o psicopata, e o hipster, não são nada sem ela, uma vez que não tem a proteção de uma posição ou uma classe em que confiar quando se sobrecarrega. Então a linguagem do Hip é a linguagem da energia, de como ela é encontrada e como ela é perdida.

Mas vamos ver. Tenho anotado, talvez, meia dúzia de palavras, talvez as mais usadas pelos Hip e provavelmente as últimas com um mínimo de variação. As palavras são cara, ir, afundar, fazer, batida, legal, swing, com isso, louco, cavar, virar, estranho, hip e quadrado. Elas servem para uma variedade de propósitos, e as nuâncias usadas nas falas é a nuância da situação, transmitindo uma diferença conceitual sutil. Se o hipster se move pela noite e pela vida em constante procura pelos vislumbres da Meca, com muitas transformações nessa experiência (Meca sendo o orgasmo apocalíptico), e se todos no mundo civilizado são, ao menos em algum pequeno grau, castrados, o hipster vive com o conhecimento de como a mentira é sexualmente castrada e onde ele sexualmente vivo, e as faces da experiência com a qual a vida o presenteia a cada dia são contratadas, demitidas ou evitadas conforme suas necessidades indicam e seu estilo de vida torna possível. Pois a vida é uma disputa entre pessoas em que o vencedor, geralmente, se recupera rapidamente e o perdedor demora muito tempo para se reparar, uma competição perpétua de exploradores em colisão em que se deve crescer ou pagar mais para continuar o mesmo, (pagar com doenças, ou depressão, ou angústia por perder a oportunidade) mas pague ou cresça.

Assim, alguém encontra palavras como ir, faça isso, com isso e swing: “ir” com o sentido de depois de horas, dias, meses ou anos de monotonia, tédio e depressão alguém teve, finalmente, sua chance, alguém acumulou energia o suficiente para encontrar uma oportunidade emocionante com todo seu talento para uma virada (para cima ou para baixo) e então está pronto para ir, pronto para o jogo. O movimento é sempre mais preferível que a inação. Em movimento um homem tem uma chance, seu corpo é quente, seus instintos são rápidos, e quando a crise vem, seja de amor ou violência, ele pode fazer, ele pode vencer, ele pode liberar um pouco mais de energia para si mesmo desde que ele odeie si mesmo um pouco menos, ele pode fazer fazer um sistema nervoso um pouco melhor, fazer isso um pouco mais possível para seguir novamente, para ir mais rápido da próxima vez e fazer mais, e assim encontrar mais pessoas com que ele possa swingar. Pois o swing é a comunicação, é transmitir o ritmo do próprio ser a um amante, um amigo ou um público e – igualmente necessário – ser capaz de sentir o ritmo de sua resposta. Swingar com o ritmo dos outros é se enriquecer – a concepção do processo de aprender do Hip é que alguém não pode realmente aprender até que se contenha em si o ritmo implícito do sujeito ou de outra pessoa. Como exemplo, eu me lembro de uma vez ter ouvido um amigo Negro numa discussão intelectual, numa festa, por meia hora com uma garota branca que tinha saído a poucos anos da faculdade. O Negro, literalmente, não sabia ler nem escrever, mas ele tinha um extraordinário ouvido e um fino senso de mímica. Assim que a garota falava, ele detectava as incertezas particulares de seu argumento, e com um sotaque inglês agradável (embora ligeiramente sulista), ele responderia uma ou outra faceta de suas dúvidas. Quando ela terminasse o que sentia ser uma ideia, particularmente, bem articulada, ele sorriria discretamente e diria, "outra direção... você realmente acredita nisso?"

"Bem... não", a garota gagueja, "agora que você disse isso, há algo de repugnante nisso para mim", e ela ficaria fora do ar por mais cinco minutos.

É claro que o Negro não estava aprendendo nada sobre os méritos e deméritos dos argumentos, mas estava aprendendo muito sobre um tipo de garota que ele nunca tinha encontrado antes, e era isso que ele queria. Sendo incapaz de ler e escrever, ele dificilmente poderia estar interessado em ideias muito próximas ao estilo de vida dela, e assim ele evitou qualquer tentativa de obedecer a precisão, ou falta de precisão, na linguagem da garota, e em vez disso sentiu se caráter (e os valores de seu tipo social) pelo swing das nuâncias da voz dela.

Então swingar é estar apto à aprender, sendo aprender dar uma passo nessa direção, na direção de criar. O que pode ser criado não é tão importante quanto a crença do hipster de que, quando ele realmente fizer isso, ele será capaz de transformar com sua mão qualquer coisa, até mesmo a auto-disciplina. O que ele deve fazer antes disso é encontrar sua coragem num momento de violência, ou igualmente fazer isso num ato de amor, encontrar um pouco mais de si mesmo, criar um pouco mais entre sua mulher e si mesmo, ou até entre seu companheiro e si mesmo (já que muitos hipsters são bissexuais), mas primordial, imperativo, é a necessidade de fazer isso, porque em fazer isso ele está criando um novo hábito, desenterrando o novo talento que a velha frustração negou.

Considerando que se você é bom (a palavra mais feia para o Hip), se você, por um lapso, voltar a ser a criança estúpida e assustada, ou se você virar, se você perder o controle, revelar a oculta fraqueza da parte mais feminina de sua natureza, então é mais difícil swingar na próxima vez, seus ouvidos são menos vivos, sua energia desperdiçada em hábitos ruins é confirmada, você está mais longe de estar com Ele. Mas estar com Ele é ter graça, é estar mais perto dos segredos daquela vida interior inconsciente que vai nutrir você se você puder escutar Ele, pois você estará mais próximo ao Deus que todo hipster acredita estar localizados nos sentidos dos seus corpos, aquele Deus preso, mutilado e, não o bastante, megalomaníaco que Ele é, que é energia, vida, sexo, força, a energia vital da Yoga, o orgônio de Reich, o “sangue” de Lawrence, o “bom” de Hemingway, a força da vida de Shavian; “Ele”; Deus; não o Deus das igrejas, mas o inatingível sussurro do mistério incluindo o sexo, o paraíso de energia ilimitada e percepções além da próxima onda do próximo orgasmo.

Um gato descolado poderia responder, "Louco, cara!"

Porque, afinal, o que estou oferecendo acima é uma hipótese, não mais, e não há um hipster vivo que não tenha absorvido sua própria, tumultuada, hipótese. A minha é interessante, a minha é um caminho de saída (na avenida dos mistérios ao longo da estrada para “Ele”), mas eu ainda sou só mais um gato num mundo de gatos descolados, e qualquer coisa interessante é louco, ou ao menos assim os Quadrados que não sabem swingar diriam.

(E, no entanto, louco também é a ironia auto-protetora do hipster. Vivendo com questões e não com respostas, ele é tão diferente em seu isolamento e no alcance de sua imaginação de quase todos com que ele se relaciona no mundo exterior dos Quadrados, e encontra, em geral, tanta inimizade, competição e ódio no mundo do Hip, que seu isolamento é sempre um perigo de se virar contra si mesmo, deixando-o, mesmo assim, louco.)

Se, entretanto, você concorda com a minha hipótese, se você, como um gato, também está fora, e nós estamos na mesma sintonia (o universo está sendo vislumbrado como uma série de raios cada vez maiores a partir do centro) por que então você está dizendo simplesmente, “Eu cavo”, porque nem o conhecimento nem a imaginação vem facilmente, estão enterradas na dor de alguém com suas experiências esquecidas, então é preciso trabalhar duro para encontrá-la, deve-se esgotar-se completamente, ocasionalmente, cavando dentro de si para perceber o exterior. E, na verdade, é essencial ir mais fundo, pois se você não cavar você perde sua superioridade sobre o Quadrado, e então é menos provável que você seja um descolado (para estar no controle da situação porque você swingou onde o Quadrado não, ou porque você permitiu a consciência de uma dor, uma culpa, uma vergonha ou um desejo que o outro ainda não teve coragem de assumir). Para ser descolado tem que estar equipado, e se você está equipado é mais difícil para o próximo descolado te derrubar. E, claro, dificilmente se pode dar ao luxo de ser derrubado com frequência, ou se é batido, se perdeu a confiança, se perdeu a vontade, se está impotente no mundo da ação e mais perto de rebaixar-se e se tornar um estranho, ou, de fato, perto de morrer, e por isso é ainda mais difícil recuperar energia suficiente para tentar subir de novo, porque uma vez que um descolado é batido ele não tem mais nada para dar, e ninguém está interessado mais em fazer nada com ele. Este é o terror para o hipster – ser batido – porque uma vez que o doce do sexo o abandonou, ele ainda não pode desistir da busca. Não é concebível para o hipster envelhecer graciosamente – ele foi capturado muito cedo pelo velho sonho de poder, a fonte de ouro de Ponce de Leon, a fonte da juventude onde o ouro está no orgasmo.

Ser batido, portanto, é uma virada, uma situação além das experiências, impossível de antecipar – o que, na verdade, no vocabulário do Hip tem um outro significado para “virada”, mas eu dei apenas algumas conotações dessas palavras. Como a maioria dos vocabulários primitivos, cada palavra é um símbolo primordial e serve a dezenas ou centenas de funções na comunicação da dialética dos diferenciais instantâneos da existência, em que se está eternamente em movimento positivo para frente ou retroativo para menos.

V

É impossível conceber uma nova filosofia até se criar uma nova linguagem, mas uma nova linguagem popular (embora ela implicitamente contenha uma nova filosofia) não apresenta, necessariamente, uma filosofia aberta. Pode-se perguntar, então, o que realmente é único na visão de vida do Hip, que eleva suas gírias acima dos caprichos verbais passageiros do boêmio ou do subproletariado.

A resposta estaria no elemento psicopata do Hip, que quase não tem interesse de ver a natureza humana, ou melhor, no julgamento da natureza humana a partir de um conjunto de padrões concebidos, a priori, para a experiência, padrões herdados do passado. Uma vez que o Hip vê todas as respostas como uma nova alternativa, uma nova questão, sua ênfase é na complexidade, e não na simplicidade (complexidade tal que sua linguagem sem a iluminação da voz e da articulação do rosto e do corpo permanece, irremediavelmente, incomunicável). Dada sua ênfase na complexidade, o Hip abdica de qualquer responsabilidade moral convencional porque argumentaria que o resultado das ações externas é imprevisível, e por isso nós não podemos saber se nós fizémos o bem ou o mal, nós nem sequer sabemos (no sentido joyceano de bem e de mal) se imprevisíveis, e por isso não podemos saber se nós fazemos o bem ou o mal, nós não podemos estar certos de que demos energia a ele, e, de fato, se nós pudéssemos, ainda não faríamos ideia do que eles fariam com ela.

Portanto, os homens não são vistos como bons ou maus (que eles são bons-e-maus é garantido), mas cada homem é vislumbrado como uma coleção de possibilidades, algumas mais prováveis que outras (a visão de caráter implícita no Hip), e muitos humanos são considerados mais capazes que outros de alcançar mais possibilidades dentro de si mesmo em menos tempo, desde que, e essa é a dinâmica, desde que o caráter particular possa swingar no momento certo. E aqui emerge o sentido do contexto que diferencia a visão de caráter do Hip e do Quadrado. O Hip vê o contexto, geralmente, dominando o homem, dominando ele porque seu caráter é menos significativo do que o contexto que ele deveria atuar. Uma vez que é, arbitrariamente, cinco vezes mais exigente com a sua energia para realizar, até mesmo, uma ação inconsequente em um contexto desfavorável do que um favorável, o homem é então não apenas seu caráter mas seu contexto, uma vez que o sucesso ou a falha de uma ação, em um dado contexto, reage sobre o caráter e, portanto, afeta o que o caráter vai ser no próximo contexto. O que domina tanto o caráter como o contexto é a energia disponível num momento de contexto intenso.

O caráter, sendo assim visto como perpetuamente ambivalente e dinâmico, entra então numa relatividade absoluta onde não há outras verdades além das verdades isoladas que cada observador sente em cada instante da sua existência. Para ter uma extrapolação metafísica, talvez injustificada, é como se o universo que normalmente existia conceitualmente como um Fato (mesmo que o Fato fosse o Deus de Berkeley), mas um fato, que era objetivo da ciência e da filosofia revelar, transformando a realidade cujas leis são refeitas a cada instante por tudo que se vive, mas sobretudo o homem, o homem que emerge para um ápice neo-medieval onde a verdade não é o que se sentiu ontem, ou o que se esperava sentir amanhã, mas a verdade não é mais ou menos do que se sente a cada instante no perpétuo clímax do presente.

A consequência, portanto, é o divórcio do homem de seus valores, a libertação do eu do Super-Ego da sociedade. A única moralidade Hip (mas, claro, é uma moral sempre presente) é fazer o que se sente quando e onde quer que seja possível, e – assim é como a guerra entre o Hip e o Quadrado começou – para estar engajado em uma batalha primordial: para abrir os limites do possível para si mesmo, para si mesmo sozinho porque isso é uma necessidade. No entanto, ao ampliar a arena das possibilidades, amplia-se reciprocamente para o outro, de modo que a realização niilista do desejo de cada homem contém sua antítese da cooperação humana.

Se a ética se reduz a Conhecer a Si Mesmo e Ser Você Mesmo, o que a torna radicalmente diferente da moderação socrática, com seu severo respeito conservador para com as experiências do passado, é que a ética do Hip é a imoderação, a infantilidade da adoração do presente (e, de fato, respeitar o passado significa que se deve respeitar as consequências feias do passado como os assassinatos coletivos do Estado). É essa adoração do presente que limita a afirmação do Hip, porque sua lógica última extrapola até mesmo as inesquecíveis soluções do Marquês de Sade para o sexo, à propriedade privada e a família, que todo homem e mulher tem direitos absolutos, mas temporários, sobre os corpos de todos os outros homens e mulheres – o niilismo do Hip propõe, como tendência final, que toda restrição e categoria social seja removida, e a afirmação implícita nesta proposta é que o homem se mostraria mais criativo do que assassino e então não destruirá ele mesmo. O que separa, exatamente, o Hip dos autoritarismos filosóficos que agora apelam ao comportamento conservador e liberal – o que assombra a metade do Séc. XX é que a fé no homem se perdeu e o apelo da autoridade foi que ela nos restringirá de nós mesmos. O Hip, que poderia nos retornar a nós mesmo, não importa o preço da violência individual, é a afirmação do bárbaro, pois requer uma paixão primitiva pela natureza humana para crer que os atos individuais de violência devem ser sempre preferível que a violência coletiva do Estado; é preciso fé literal nas possibilidades criativas do ser humano de encarar atos de violência como a catarse que prepara o crescimento.

Se o desejo do hipster por liberdade sexual absoluta contêm alguma concepção genuinamente radical de um mundo diferente é, naturalmente, outra questão, e é possível, uma vez que o hipster vive com seu ódio, que muitos deles são material para uma elite de tropas da tempestade prontas para seguir o primeiro líder verdadeiramente magnético, cuja visão de assassinato em massa é formulada em uma linguagem que atinge suas emoções. Mas, dado o desespero de sua condição como um psico fora da lei, o hipster é igualmente um candidato para os movimentos mais reacionários e mais radicais, e então é possível que muitos hipsters virão – se a crise se aprofundar – para uma compreensão radical do horror da sociedade, pois mesmo como o radical teve seu dissidente incomunicável confirmado em sua experiência precisamente pela frustração, as oportunidade negadas e pelos anos amargos que suas ideias lhe custaram, o aventureiro sexual desviou de seus objetivos pela implacável animosidade de uma sociedade construída para negar o radical sexual, também pode chegar a uma compreensão igualmente amarga, lenta, e desumana, crueldade do poder conservador que o controla por fora e por dentro. E, ao ser tão controlado, negado e faminto no atrito da submissão, de fato, o hipster pode vir a ver que sua condição não é mais que um exagero da condição humana, e se ele seria livre, então todo mundo deve ser livre. Sim, isso é possível também, pois o coração do Hip está em ênfase sobre a coragem num momento de crise, e é agradável pensar que a coragem contém dentro de si (como explicação de sua existência) algum vislumbre da necessidade da vida de tornar-se mais do que tem sido.

Obviamente, não é muito possível especular com foco nítido sobre o futuro do hipster. Certas possibilidades devem ser evidentes, no entanto, o mais central é que o crescimento orgânico do Hip depende de se o Negro emerge como uma força dominante na vida americana. Como o Negro sabe mais sobre a feiura e o perigo da vida que o Branco, é provável que se o Negro puder ganhar sua igualdade, ele possuirá uma superioridade potencial, uma superioridade tão temida que o próprio medo se tornou o drama subterrâneo da vida doméstica política. Como todo medo político conservador, esse é o medo das consequências imprevisíveis, pois a igualdade do Negro traria uma profunda mudança na psicologia, na sexualidade e na imaginação moral de cada Branco vivo.

Com esse possível surgimento do Negro, o Hip pode entrar em erupção como uma rebelião psiquicamente armada, cujo ímpeto sexual pode se recuperar contra o fundamento anti-sexual de todo poder organizado na América, e trazer para o ar tais animosidades, antipatias e novos conflitos de interesse, significando que as hipocrisias vazias da conformidade de massa não vão funcionar mais. Um tempo de violência, nova histeria, confusão e rebelião provavelmente substituirá os tempos de conformidade.

Nesses tempos, se o liberal provasse ser realista na sua crença de que há espaço para todas as tendências na vida Americana, então o Hip acabaria sendo absorvido como uma figura colorida na tapeçaria. Mas, se essa não é a realidade, e as crises econômicas, sociais, psicológicas e, finalmente, a crise moral que acompanham a ascensão do Negro, devem ser insuportáveis, então chegará o momento que todas as posições políticas desaparecerão, e milhões de liberais serão confrontados com dilemas políticos que até agora conseguiram fugir, e com uma visão de natureza humana que não desejam aceitar. Para citar como exemplo a dessegregação das escolas no Sul, é bem provável que o reacionário veja a realidade mais de perto que o liberal quando argumenta que a questão mais profunda não é a dessegregação, mas a miscigenação. (Como radical estou, claro, indo na direção oposta ao Concílio dos Cidadãos Brancos – obviamente eu acredito que é um direito humano absoluto do Negro acasalar com a Branca, e os acasalamentos, sem dúvida, existirão, pois haverá garotos Negros nos colégios corajosos o suficiente para arriscar suas vidas). Mas, para o liberal médio, cuja mente foi entorpecida pelo comitê dos profissionais liberais, a miscigenação não é uma questão porque foi dito que o Negro não a deseja. Assim, quando acontecer, a miscigenação será um terror, comparável talvez com o transtorno da América Comunista quando os ícones de Stalin caíram. O comunista americano manteve os mitos de Stalin por razões que tinham pouco a ver com evidências políticas, mas tinham tudo a ver com suas necessidade psíquicas. Nesse sentido, é igualmente uma necessidade psíquica para o liberal acreditar que o Negro, até mesmo o Branco do Sul reacionário, eventualmente, e fundamentalmente, pessoas como ele próprio, são capazes de se tornaram bons liberais também, se eles puderem ser alcançados por uma boa razão liberal. O que o liberal não suporta admitir é o ódio sob a pele de uma sociedade tão injusta que a quantidade de violência ocultada no povo é, talvez, incapaz de ser contida e, portanto, se alguém quer um mundo melhor, faz bem em prender a respiração para um mundo pior que é obrigado a vir primeiro, e o dilema pode muito bem ser este: dado esse ódio, ele deve sair por aí niilisticamente ou tornar-se um assassino frio em liquidação num Estado totalitário.

VI

Não importa qual os horrores, o Século XX é um século imensamente excitante, e sua tendência é reduzir toda vida a suas últimas alternativas. Alguém pode se perguntar se a última guerra de todas vai ser entre os negros e os brancos, ou entre as mulheres e os homens, ou entre o bonito e o feio, os bárbaros e os executivos, ou os rebeldes e os reguladores. O que, naturalmente, está levando a especulação além do ponto da especulação é sério, é ainda o desespero de que a monotonia e desolação do futuro venham a se tornar tão enraizadas no temperamento do radical que o radical está a perigo de abdicar de toda imaginação. O que o homem sente é o impulso para seu esforço criativo, e se um alien, mas ainda assim um instinto apaixonado, sobre o sentido da vida veio tão inesperadamente de um povo virtualmente analfabeto, que saiu das condições mais intensas de exploração, crueldade, violência, frustração e lascívia, e, ainda, tem sido um sucesso como um instinto para manter esse povo torturado vivo, então talvez seja possível que o Negro aguente mais que o rabo expansivo de um elefante de verdade que o radical, e se esse for o caso, o humanista radical pode fazer pior que cismar com um fenômeno. Pois, se o tempo revolucionário pudesse voltar, haveria uma diferença crucial se alguém já pudesse delinear um cálculo neo-Marxista destinado a compreender cada circuito e processo da sociedade para determinar um ukase do beijo como comunicação da energia humana – um cálculo capaz de traduzir a relação econômica do homem com sua relação psicológica, sua relação produtiva, desse modo, abraçando suas relações sexuais também, até que as crises do capitalismo no Século XX fossem entendidas como adaptações inconscientes de uma sociedade para solucionar seu desequilíbrio econômico, à custa de um novo desequilíbrio psicológico em massa. Está quase além da imaginação conceber uma obra em que o drama da energia humana está envolvido, e uma teoria de suas correntes e dissipações sociais, seus aprisionamentos, expressões e desperdícios trágicos são ajustadas através de algumas gigantescas sínteses das ações humanas, onde o corpo do pensamento marxista, em particular a grandeza épica do Dos Kapital (a primeira das grandes psicologias a abordar o mistério da crueldade social de forma tão simples, e praticamente dizer que somos um corpo coletivo de humanos cuja energia vital é desperdiçada, deslocada e processualmente roubada a medida que isso passa de um para o outro) – onde particularmente a grandeza épica do Das Kapital encontraria o seu lugar em uma visão ainda mais Divina das justiças e injustiças humanas, em mais uma excludente visão daqueles processos íntimos e institucionais que nos levam a nossa criação e desastre, nosso crescimento, nosso atrito e nossa rebelião.

Norman Mailer é um colaborador de longa data e ex-membro do conselho da Dissent.

11 de junho de 2007

Reforma agrária, por justiça e soberania popular

Precisamos de uma nova organização da agricultura, submetida aos interesses da sociedade, não apenas ao lucro de grupos financeiros

João Pedro Stédile

Folha de S.Paulo

ESTAMOS enfrentando um novo momento da luta pela reforma agrária, no qual a agricultura se apresenta numa verdadeira encruzilhada. De um lado, o futuro de mais de 4 milhões de famílias de trabalhadores rurais e das nossas riquezas naturais. De outro, as forças do latifúndio aliadas com grandes grupos estrangeiros que adotaram o modelo agroexportador como única forma de organizar a produção agrícola.

O agronegócio dá prioridade às monoculturas em grande escala, por meio da expulsão do homem do campo com a mecanização, do uso de agrotóxicos sem responsabilidade e da agressão ao ambiente. Até matam camponeses e indígenas, como apontam levantamentos da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
O objetivo é o lucro fácil e o aumento das exportações para sustentar o modelo neoliberal. Isso tem como resultado concentração da terra, riqueza e renda. Conseqüentemente, aumenta a desigualdade, o número de pobres e o êxodo rural que engrossa as favelas das cidades.

Os seus porta-vozes em jornais, nas universidades e até no governo Lula se atrevem a dizer que a questão agrária está resolvida. Sim, têm razão! Está resolvida para garantir os interesses do latifúndio e do capital financeiro. Mas as necessidades do povo brasileiro continuam sem solução.

Estamos reunidos em mais de 18 mil trabalhadores rurais para debater a necessidade de um modelo agrícola democrático, que garanta a todos acesso a trabalho, terra, água e sementes. Temos o apoio e a companhia de amigos que atuam em igrejas, universidades e no Parlamento, além do movimento sindical, popular e camponês internacional.

O 5º Congresso Nacional do MST é realizado num momento especial da nossa história, quando o país precisa de um modelo agrícola que aponte para a geração de emprego, distribuição de renda e acesso à educação para as famílias do meio rural. Aí está o significado de uma verdadeira reforma agrária, com justiça social e soberania popular: todo cidadão brasileiro deve ter direito a terra, emprego e renda.

Precisamos de uma nova organização da agricultura, com prioridade à produção de alimentos para o mercado interno, usando técnicas agrícolas que respeitem o ambiente e preservem a saúde dos consumidores. Para isso, deve estar submetida aos interesses da sociedade, não apenas ao lucro de grupos financeiros. Em mais de 20 anos, passamos por momentos importantes da vida do povo. Militamos pela redemocratização e ajudamos a preservar o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Resistimos às privatizações e denunciamos os efeitos do neoliberalismo desde a era FHC.

Ajudamos a eleger uma candidatura historicamente comprometida com a luta contra o latifúndio.
Mas não faltam aqueles que nos atacam dizendo que a reforma agrária é cara. Nada dizem sobre os R$ 600 bilhões, denunciados até pelo vice-presidente José Alencar, que foram repassados pelo governo aos bancos nos últimos quatro anos.

Outros repetem que a democratização da terra é ineficiente. Ineficiente é o latifúndio do agronegócio, que impede a atualização dos índices de produtividade no país, sobrevive com financiamentos públicos e faz anualmente renegociações para não pagar suas dívidas com os cofres públicos.

O modelo agroexportador, que escravizou nosso povo por séculos, também era eficiente -à custa do trabalho escravo. Nos nossos assentamentos, todos têm trabalho, alimentação, moradia e educação para todas as crianças. É a dita ineficiência. A reforma agrária não é apenas uma questão de eficiência produtiva, mas de justiça social e soberania popular.

O MST seguirá organizando os trabalhadores para que lutem por seus direitos e por uma sociedade mais justa. É claro que a participação dos pobres é um incômodo para a classe dominante e governante, porque sabe que somente a luta pode sustentar as mudanças sociais.

Estamos convencidos de que a reforma agrária não é só algumas medidas de compensação social ou a mera distribuição de lotes, como a burguesia fez no passado em todos os países industrializados e desenvolvidos.

Um novo modelo de produção agrícola implica a derrota do neoliberalismo e da voracidade do capital internacional, que quer controlar terra, sementes, água, mão-de-obra e o mercado nacional. Temos consciência de que essas mudanças não dependem apenas dos sem-terra, mas de uma grande aliança entre todas as forças sociais do país em torno de lutas da sociedade brasileira.

Sobre o autor

JOÃO PEDRO STEDILE, 52, economista, é integrante da direção nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...