26 de outubro de 2020

Vitória popular

A vontade popular foi expressa com força em um plebiscito histórico. Este enorme triunfo, mais do que um ponto de chegada, deve representar o sinal de partida para a construção de um novo Chile.

Pablo Abufom e Karina Nohales



Neste domingo, 25 de outubro, aconteceu um plebiscito histórico no Chile. A população foi às urnas para dar uma vitória contundente à opção “Apruebo” diante da pergunta “Quer uma nova Constituição?”, especificando assim uma demanda democrática mantida nos últimos quarenta anos e que se tornou inevitável desde o início da revolta social há um ano: o fim da Constituição de Pinochet.

O que os partidos que administraram a transição democrática não fizeram em trinta anos, a classe trabalhadora fez em poucos meses. Lembremos que este plebiscito, originalmente agendado para abril de 2020 e adiado para outubro em decorrência da pandemia de Covid-19, foi fruto do "Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição" firmado pela maioria do partidos com representação parlamentar na madrugada de 15 de novembro de 2019, menos de 48 horas antes da Greve Geral que colocou o governo em xeque e obrigou o establishment político a dar um canal institucional a uma revolta de caráter expressamente destituínte.

Embora seja necessário fazer uma análise detalhada dos resultados, sabemos imediatamente que a opção “Apruebo” obteve 78,27% das preferências e a opção “Rechazo” 21,73%. Este último obteve a maioria apenas em cinco comunas do país, três das quais são, de fato, aquelas nas quais se concentram as pessoas mais ricas do Chile. Nas redes sociais já circula a legenda “não são trinta pesos, são três comunas”, reinventando a frase icônica dos primeiros dias da revolta social que, numa síntese virtuosa, refletiu na origem do surto - um aumento de trinta pesos do preço do transporte - um balanço das últimas três décadas de democracia neoliberal.

Este foi um voto marcadamente de classe, não só porque nos setores populares urbanos a participação eleitoral aumentou ostensivamente, mas também porque nesses locais o “Apruebo” obteve em todos os casos cerca de 90% de preferência. Destacam-se os resultados nas “zonas de sacrifício ambiental”, locais devastados por atividades extrativistas de mineração e energia, que passam por graves crises hídricas e socioambientais e onde os habitantes há anos enfrentam grandes empresas que encarnam devastação. É o caso de Freirina, Petorca e de pelo menos mais seis autarquias, em que o “Apruebo” ultrapassou os 90%.

Levantamentos anteriores à celebração do plebiscito revelaram que mais de 70% da população identificou a opção "Rechazo" com os militares, com os grandes empresários e com o governo. Este foi um voto contra eles também, mas não só. Enquanto o triunfo retumbante da "Apruebo" era esperado, a surpresa foi dada pelos resultados da segunda votação em que os eleitores foram consultados "Que órgão deve escrever a Nova Constituição?" Por 78,99% se impôs a Convenção Constitucional - que será igual em termos de gênero e cujos membros serão cem por cento eleitos pelo voto popular - sobre os 21,01% obtidos pela Convenção Mista, que não teriam sido iguais e cujos membros seriam metade eleitos por voto popular e metade compostos por parlamentares em exercício.

Finalmente, deve-se mencionar que inicialmente é possível detectar um aumento da participação neste processo eleitoral. Em termos absolutos, foram mais de 500 mil votos no primeiro turno presidencial de 2017, aumento apoiado por uma maior participação nas comunas populares. Isso, por si só, reverte uma tendência de três décadas de declínio sistemático na participação eleitoral. Em termos relativos, é fundamental considerar que este plebiscito se deu em um contexto pandêmico, com comunas ainda em quarentena. Por esse motivo, será necessário revisar o detalhamento dos dados para interpretar corretamente o que significa esse aumento (quem foi votar que não tinha ido antes? Quem não foi votar e por quê?).

Qual é o significado político desses resultados?

Em primeiro lugar, é um dos pontos altos do momento de stituínte aberto pela revolta de outubro de 2019. Esse impulso popular colocou a Constituição Política da República de 1980 como o principal alvo de seu desejo destituinte.

Em segundo lugar, a vasta maioria dos votos para um corpo de redação constitucional com 100% de seus participantes eleitos pode ser lida como um voto contra aqueles que governaram nas últimas três décadas, tanto de centro-esquerda quanto de direita.

Por fim, tem o efeito de um forte golpe político nos setores mais reacionários do espectro político (dentro e fora do Estado) que vinham se organizando nas campanhas pelo "Rechazo". Foi ali onde um pólo político de base nacionalista, evangélica e pinochetista ameaçava constituir-se que o golpe daquele quase 80% pela "Apruebo" se deu com mais força.

Quais são os desafios que temos pela frente?

Um claro indicador disso é que os sindicatos empresariais vêm enfatizandp há meses a importância de se trabalhar em um projeto de Constituição que represente seus interesses como proprietários de terras, industriais e capitais financeiros, garantindo a liberdade de negócios, a propriedade privada e a máxima estabilidade política do regime, ou seja, o fechamento a toda irrupção popular.

O principal desafio é que, dada a disposição de quem está no topo para estrelar e dar conteúdo à Nova Constituição, é a classe trabalhadora que lidera o debate constituinte. Dada a situação atual dos setores mobilizados e a correlação de forças existente, como será possível enfrentar este desafio?

Em primeiro lugar, a construção da própria força a partir da maior unidade possível dos setores que se propõe a superar o capitalismo adquire particular relevância e vê neste processo constituinte uma oportunidade de avanço. Essa ampla unidade política e social deve se basear na lealdade às aspirações que se desdobraram na revolta social das grandes massas precárias que lotaram as praças e ruas desde outubro do ano passado, e que inclui uma nova faixa de subjetividades populares, com um protagonismo feminista marcante que também incorpora amplas camadas de trabalhadoras.

Em segundo lugar, o debate constituinte exige que o povo desenvolva, discuta e socialize as perspectivas programáticas que apoiem uma mobilização vigorosa enquanto se desenvolve a Convenção Constitucional, de tal forma que tanto dentro como fora dela haja plena consciência do que está em jogo neste processo, e que face às tentativas de fazer retroceder a vontade tranformadora se mantenha as mobilizações de rua que pressionam aos e ás constituinte. Será tremendamente relevante resgatar os avanços programáticos levados a cabo pela Coordinadora de Trabajadores/as NO+AFP sobre um novo regime de segurança social e os Encuentros Plurinacionales de las y les que Luchan organizados em 2018 e 2020 pela Coordinadora Feminista 8M, que representam atualmente um dos exercícios programáticos mais avançados do ponto de vista da transversalidade das transformações propostas pelos movimentos sociais.

Por fim, é vital que esse protagonismo das massas no debate constituinte tenha como contrapartida a capacidade de construir suas próprias alternativas que representem seus interesses na Convenção Constitucional, sem subordinação aos partidos da transição neoliberal. Aqueles que administraram por décadas o que o povo desafiou hoje estão se preparando para colher a luta mantida por outras pessoas. Identificando-se de forma mentirosa com uma vitória eleitoral que também tem sido contra eles, buscam refazer um pacto social rompido que os conecta à base social. É uma tarefa política de primeira ordem, transitar os desafios que virão defendendo a independência de classe.

Sobre os autores

Pablo Abufom é tradutor e mestre em Filosofia pela Universidade do Chile. Editor de Posiciones, Revista de Debate Estratégico, membro fundador do Centro Social y Librería Proyección e integrante do coletivo editorial Jacobin América Latina.

Karina Nohales é advogada, porta-voz da Coordinadora Feminista 8M (Chile) e integrante do coletivo editorial Jacobin América Latina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...