18 de outubro de 2020

Evo Morales foi o maior presidente das Américas

No dia da eleição presidencial da Bolívia, olhamos para o legado de Evo Morales - que conquistou o poder no país mais pobre da América do Sul, triplicou seu PIB e tirou milhões da extrema pobreza.

Olivia Arigho-Stiles

Jacobin

Evo Morales em 11 de janeiro de 2015 na Bolívia. (Dean Mouhtaropoulos / Getty Images)

Tradução / Em outubro de 2003, a Bolívia estava borbulhando em uma insurreição revolucionária. Moradores de El Alto, cidade vizinha de La Paz, estavam bloqueando o fornecimento de combustível para a capital em protesto contra um acordo que vendia o gás boliviano ao Chile em condições desfavoráveis. Para reprimir o protesto, o governo ordenou que os militares atirassem contra civis desarmados, matando dezenas.

Este foi o auge da guerra do gás boliviana, uma onda de lutas pelo controle popular dos recursos naturais que forçou a renúncia do presidente neoliberal Gonzalo “Goni” Sánchez de Lozada. Essas revoltas entre 2000 e 2004 viram a mobilização de camponeses, mineiros e grupos indígenas contra a privatização dos recursos do país e outras políticas neoliberais. Esse ciclo de lutas também desencadeou na vitoriosa eleição do ex-presidente Evo Morales e do partido apoiado pelo movimento social Movimento ao Socialismo (MAS – Movimiento Al Socialismo) em 2005.

O MAS surgiu em meados dos anos 90 como o braço político organizado do CSUTCB, o sindicato dos trabalhadores rurais, e desempenhou um papel fundamental nas revoltas do início dos anos 2000. Suas principais bases de apoio têm sido historicamente com os camponeses e cocaleiros da Bolívia, e é apoiado pela COB, a poderosa federação sindical liderada por mineradores que protagonizaram a luta pela democracia durante as ditaduras dos anos 1970-80. E durante a “Maré Rosa” em meados dos anos 2000, quando governos socialistas de esquerda chegaram ao poder em todo o continente, o MAS tornou-se conhecido internacionalmente por suas ambiciosas tentativas de implementar reformas socialistas.

Mas quinze anos depois, com Evo Morales deposto por um golpe articulado pela direita, a Bolívia está mais uma vez paralisada pela agitação social em massa. Esta conjuntura atual, portanto, oferece um momento pungente para a esquerda refletir sobre os desafios, conquistas e limitações de 13 anos de governo socialista na Bolívia.

Tomando o poder

Quando Evo Morales assumiu o cargo em janeiro de 2006, ele foi o primeiro presidente indígena da Bolívia – um país historicamente estruturado em torno do racismo contra os povos originários. Filho de empobrecidos pastores de lhamas em Oruru, Evo começou a trabalhar na região subtropical de Chapare como plantador de coca, subindo rapidamente na hierarquia da poderosa federação sindical dos cocaleiros para se tornar uma figura de destaque nacional.

Sob sua presidência, o MAS ganhou eleições sucessivas com margens sem precedentes em 2009 e 2014, executando uma agenda econômica de redistribuição modesta de riqueza e nacionalização parcial de hidrocarbonetos, juntamente com um discurso inspirado na descolonização do país.

Isso foi muito importante em um país que tem 36 línguas indígenas reconhecidas e 42% da população que se autodeclarou indígena no último censo. “Pela primeira vez na história boliviana”, declarou Evo em sua cerimônia de inauguração de 2006 no local simbólico de Tiwanaku, as antigas ruínas aimarás fora de La Paz, “Aymaras, Quechuas e Mojeños, somos presidentes”. Para muitos, sua eleição foi nada menos do que o triunfo de 500 anos de resistência anticolonial nas Américas.

Em 2010, a Bolívia foi reconfigurada pelo governo como um Estado Plurinacional, dando autonomia política às nações indígenas. A Lei da Mãe Terra de 2010 consagrou os direitos da natureza na Constituição. “Ou o capitalismo morre ou o planeta Terra morre”, exclamou ele na Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra em 2010. Morales também rompeu com as políticas apoiadas pelos EUA em relação à coca, substituindo a erradicação militarizada das plantações de coca por um bem-sucedido programa comunitário de controle da coca.

A recém-descoberta visibilidade e proeminência dos povos indígenas na Bolívia foram resultado do sucesso indiscutível do MAS no poder. Eles agora são representados como atores políticos em nível nacional e em toda a sociedade. Pela primeira vez, as cholitas – mulheres que vestem trajes indígenas urbanos – podem ser vistas apresentando a notícia ou assumindo diversos cargos públicos.

Em termos econômicos, o governo – impulsionado pelo boom de commodities dos anos 2000 – embarcou em ambiciosos programas de gastos sociais enquanto presidia o forte crescimento econômico do país mais pobre da América Latina. Como resultado de suas ações, o PIB triplicou, a desigualdade de renda caiu dois terços e a pobreza extrema caiu de 38% para 17%.

No entanto, tensões e contradições logo se tornaram aparentes quando a agenda de libertação indígena de Evo foi acompanhada por um modelo econômico de extração e desenvolvimento de recursos. Em 2011, isso levou Evo a um conflito aberto com um grande setor de comunidades camponesas e indígenas quando o governo tentou construir uma rodovia através do Parque Nacional e Território Indígena Isiboro Sécure (TIPNIS), a fim de conectar Villa Tunari em Cochabamba com San Ignacio de Moxos em Beni. Ostensivamente, a esperança era que isso ligasse as regiões amazônica e andina e trouxesse infraestrutura crucial e acesso a serviços para as comunidades da área. Os cocaleiros da região do Chapare – bastião de apoio do MAS – se beneficiaram principalmente do acesso à estrada.

Os planos geraram protestos de comunidades indígenas que vivem na área, que ao lado de ONGs e grupos ambientais, temiam que o empreendimento fosse um convite à degradação ambiental e à invasão de suas terras. Quando as comunidades marcharam em defesa de sua autonomia territorial e direito à consulta prévia, a marcha foi reprimida pela polícia e pelo menos 70 pessoas ficaram feridas; Evo mais tarde admitiu que os planos foram um “erro”.

Evo também lutou para restringir o poder do grande agronegócio. Os departamentos da planície tropical de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, conhecidos como a região da “meia lua”, têm sido historicamente o eixo do antagonismo da classe dominante com Evo e o MAS. As elites do leste do país sempre rejeitaram a política sindicalista, antineoliberal e indígena de Evo, convocando uma greve cívica em 2008. Isso veio junto com uma onda de violência de grupos fascistas locais e intimidação de ativistas camponeses orquestrada pelas autoridades na área de Pando.

No entanto, os políticos do MAS começaram a ver vantagens em uma reaproximação pragmática com os capitalistas agrícolas orientais. Santa Cruz é dominada por latifundiários importantes, com cerca de cinco milhões de hectares das terras agrícolas mais férteis da área nas mãos de grandes proprietários, e grande parte dessas terras foram acumuladas durante as ditaduras da Bolívia no século XX.

Em 2013, Evo anunciou um plano para triplicar as terras agrícolas da Bolívia para 13 milhões de hectares até 2025. O prefeito do MAS de Beni apresentou uma lei que teria aberto grandes áreas de terras para a pecuária, contribuindo assim para a degradação ambiental. A legislatura nacional também aprovou leis que expandiram a produção de biocombustíveis e aumentaram as exportações de carne bovina para a China, as quais acarretaram em um grande desmatamento.

O golpe

Então, o que finalmente deu errado para Evo e o MAS? Em 2019, ficou claro que sua posição estava se tornando perigosa. Os incêndios devastadores na Chiquitânia geraram críticas generalizadas e permitiram à direita sediada em Santa Cruz partir para a ofensiva política. Sua decisão de concorrer a um quarto mandato também foi polêmica, já que a Constituição Boliviana de 2009 limitava os mandatos presidenciais a apenas dois, e Evo só pôde servir a três porque sua primeira eleição em 2006 precedeu essa mudança constitucional.

Em fevereiro de 2016, Evo realizou um plebiscito para permitir que ele concorresse a um quarto mandato. Resultou em uma estreita votação a favor do “não”, mas em 2017 o tribunal constitucional, lotado de adeptos do MAS, decidiu que impedi-lo de se candidatar à reeleição violaria seus direitos humanos. Isso gerou um descontentamento significativo de muitos bolivianos, principalmente entre as classes médias urbanas, que viam isso como uma traição à democracia representativa.

Depois do primeiro turno das eleições de outubro de 2019, foram essas mesmas classes médias urbanas que marcharam nas cidades para denunciar a “fraude” e exigir a renúncia do chamado “ditador bolivariano”. Um exército de pititas – formado por jovens anti-MAS e as classes médias – ergueu bloqueios nas ruas, enquanto uma onda de violência orquestrada pela direita viu o incêndio de prédios eleitorais e as casas de políticos proeminentes do MAS. Figuras da ultradireita rapidamente tomaram a iniciativa, notadamente Luis Fernando Camacho, um rico empresário de Santa Cruz com ligações com o grupo jovem fascista União Juvenil Cruceñista.

O grito da fraude foi estimulado pela divulgação prematura de um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), dominada pelos EUA, que alegava ter havido “manipulação” na contagem dos votos. Nenhuma evidência firme foi oferecida pela OEA, e suas alegações foram desmascaradas pelo Centro de Pesquisa Econômica e Política (CEPR), uma organização de pesquisa norte-americana.

Em 10 de novembro, diante de protestos intransponíveis e após a “sugestão” dos militares de que renunciasse, Evo foi forçado a se exilar no México. No vácuo de poder, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, tornou-se presidente interina, representando um partido de direita que recebeu apenas 4% dos votos. Uma repressão brutal contra os manifestantes anti-golpe rapidamente se seguiu: em cenas que lembram 2003, nove pessoas foram mortas a tiros pelas forças do Estado durante um bloqueio pacífico na usina de gás em El Alto em 19 de novembro. Oito cocaleiros foram massacrados pelas forças de segurança enquanto protestavam contra o novo governo em Sacaba, Cochabamba. Segundo pesquisa do antropólogo Carwil Bjork-James, os militares bolivianos mataram mais manifestantes e transeuntes neste período do que na década anterior.

O golpe foi prontamente celebrado pela administração Trump. As relações entre os EUA e a Bolívia eram turbulentas desde que Evo expulsou a Agência dos Estados Unidos para a Ajuda ao Desenvolvimento Internacional (USAID) do país em 2013 por sua interferência nos assuntos internos de Estado. Alguns especularam também que os depósitos de lítio da Bolívia – os maiores do mundo – podem ter motivado o interesse estrangeiro em desestabilizar o governo.

O golpe também fez ressurgir antigos temores raciais de um “malón” – um ataque de indígenas. Paceños endinheirados formaram barricadas improvisadas nas ruas com medo de represálias por parte dos povos indígenas da vizinha El Alto após a renúncia de Morales. Uma corrente mais obscura e fascista emergiu desses protestos; depois que Morales foi embora, “indígena de fora da UMSA” podiam ser vistos pintados nas paredes da UMSA, a universidade pública de La Paz. Os manifestantes foram filmados queimando a wiphala, a bandeira que representa os povos indígenas andinos. Como observou na época o escritor aimará Jesus Oscuri, “parecia que o indígena havia sido expulso do poder”.

O regime avançou com ações contra seus oponentes – jornalistas, sindicalistas e estudantes, entre muitos outros – acusando-os de sedição e terrorismo. Em janeiro de 2020, Patricia Hermosa, que legalmente representava Evo, foi detida e presa enquanto tentava despachar a papelada de Evo para se registrar como candidata ao Senado enquanto estava grávida. Ela perdeu seu bebê na prisão. A corrupção e o nepotismo também apareceram rapidamente. Em maio, o ministro da saúde Marcelo Navajas foi preso após um caso de fraude multimilionária sobre respiradores importados da Espanha para lidar com a pandemia de coronavírus, quando o sistema de saúde da Bolívia precisava deles com urgência.

Para onde agora?

As eleições estavam inicialmente agendadas para maio, mas foram adiadas para o último fim de semana pelo Tribunal Eleitoral devido à pandemia da COVID-19. As pesquisas previram consistentemente uma vitória do MAS, que tem como candidato Luis Arce Catacora – o ex-ministro da Economia que presidiu o impressionante crescimento econômico no governo Evo.

As eleições podem ser uma forma de unir uma Bolívia perigosamente fragmentada. O país está paralisado por greves gerais e bloqueios, com camponeses, mineradores e grupos indígenas se mobilizando para que o resultado das eleições sejam respeitados. Assim como nos anos 2000, o MAS não está liderando esses levantes, mas é um dos muitos atores políticos na briga.

Como a esquerda na Bolívia e internacionalmente reflete no mandato do MAS, é importante evitar caracterizações maniqueístas de Evo. Ele presidiu a progressista transformação econômica do país, ajudando os mais pobres e reafirmando o poder indígena. No entanto, Evo havia alienado muitos de seus principais apoiadores quando foi forçado a renunciar pelos militares. A burocracia do MAS começou a sufocar a autonomia dos movimentos sociais que inicialmente formaram sua base. Até Juan Huarachi, ex-mineiro, aliado do MAS e secretário executivo do COB, pediu a Evo que renunciasse.

A verdade é que Evo foi confrontado por elites urbanas de direita encorajadas que tinham o apoio da polícia e adquiriram mobilizações nas ruas. É claro que Evo foi um líder excepcional de um partido popular, eleito quatro vezes em uma cultura política que desconfia da reeleição presidencial. Mas ele também forçou os limites. No final, isso só beneficiou gente como Áñez e sua turma, os inimigos do progresso social que querem o que o jornalista veterano Fernando Molina chamou de “bolsonarização” da Bolívia.

Sobre a autora

Olivia Arigho-Stiles é uma candidata ao doutorado que pesquisa movimentos indígenas do século XX na Bolívia. Ela é editora colaboradora da Alborada.

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