Nancy Fraser
New Left Review
Tradução / Gostaria de voltar o olhar para a segunda onda do feminismo. Não a uma ou outra corrente ativista, nem a esta ou aquela tendência de teorização feminista; tampouco a uma ou outra fatia geográfica do movimento, nem a um determinado estrato sociológico de mulheres. Quero, ao contrário, tentar analisar a segunda onda do feminismo no seu conjunto, como um monumental fenômeno social que marcou uma época. Recordando quase quarenta anos de ativismo feminista, quero arriscar uma avaliação geral da trajetória e da importância histórica do movimento. Espero também que olhar para trás nos ajude a olhar para o futuro. Reconstruindo o caminho percorrido, espero lançar luz sobre os desafios que enfrentamos hoje – em uma época de forte crise econômica, incerteza social e realinhamento político[3].
Vou, portanto, falar sobre os amplos contornos e o significado geral da segunda onda do feminismo. Narrativa histórica e análise sócio-teórica em partes iguais, meu relato gira em torno de três pontos sucessivos, cada um dos quais situa a segunda onda do feminismo em relação a um momento específico da história do capitalismo. O primeiro ponto se refere aos primórdios do movimento no contexto que denominarei “capitalismo organizado pelo Estado”. Neste artigo, me proponho a rastrear o surgimento da segunda onda do feminismo a partir da nova esquerda antiimperialista, como um questionamento radical ao androcentrismo que permeia as sociedades capitalistas lideradas pelo Estado no pós-guerra. Conceituando esta fase, identificarei a promessa emancipatória fundamental do movimento com seu sentimento expandido de injustiça e sua crítica estrutural da sociedade. O segundo ponto se refere ao processo da evolução do feminismo no contexto social drasticamente mudado do crescente neoliberalismo. A este respeito, proponho não apenas traçar os sucessos extraordinários do movimento, mas também a perturbadora convergência de alguns de seus ideais com as exigências de uma nova forma emergente do capitalismo: pós-fordista, “desorganizada”, transnacional. Ao conceituar esta fase, perguntarei se a segunda onda do feminismo forneceu inconscientemente um ingrediente fundamental do que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005) chamam de “o novo espírito do capitalismo”. O terceiro ponto faz referência a uma possível reorientação do feminismo no atual contexto de crise capitalista e realinhamento político estadunidense, que poderia marcar os primórdios do neoliberalismo a uma nova forma de organização social. A este respeito, proponho examinar as perspectivas para reativar a promessa emancipatória do feminismo em um mundo que foi golpeado pelas crises gêmeas do capital financeiro e da hegemonia dos Estados Unidos, e que agora espera o desdobramento da presidência de Barack Obama.
Em geral, portanto, proponho situar a trajetória da segunda onda feminista em relação à recente história do capitalismo. Deste modo, espero ajudar a recuperar a teorização feminista socialista que me inspirou pela primeira vez há décadas e que ainda parece oferecer nossa melhor esperança para esclarecer as perspectivas de justiça de gênero na atualidade. Entretanto, meu objetivo não é reciclar teorias de sistemas duais obsoletos, mas, ao contrário, integrar o melhor das recentes teorias feministas com o melhor das recentes teorias críticas do capitalismo.
Para esclarecer a lógica atrás desta abordagem, deixe-me explicar meu descontentamento com o que talvez seja a visão mais amplamente mantida da segunda onda do feminismo. É dito frequentemente que o sucesso relativo do movimento em transformar cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas. E, assim, frequentemente se argumenta: a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural, mas a vasta mudança nas mentalités (contudo) não tem se transformado em mudança estrutural, institucional.
Há algo a ser dito a respeito desta visão, que acertadamente registra a ampla aceitação de hoje das ideias feministas. Mas a tese de “falha institucional com sucesso cultural” não ajuda muito a iluminar a significação histórica e as futuras perspectivas da segunda onda do feminismo. Postular que as instituições ficaram defasadas em relação à cultura, como se uma pudesse mudar enquanto a outra não, sugere que apenas precisamos fazer a primeira alcançar a última a fim de tornar reais as esperanças feministas. O efeito é obscurecer uma possibilidade mais complexa, perturbadora: que a difusão de atitudes culturais nascidas da segunda onda foi parte integrante de outra transformação social, inesperada e não intencional pelas ativistas feministas – uma transformação na organização social do capitalismo do pós-guerra. Esta possibilidade pode ser formulada mais nitidamente: as mudanças culturais impulsionadas pela segunda onda, saudáveis em si próprias, serviram para legitimar uma transformação estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões feministas de uma sociedade justa.
Neste ensaio, meu objetivo é explorar esta possibilidade perturbadora. Minha hipótese pode ser declarada assim: o que foi verdadeiramente novo sobre a segunda onda foi o modo pelo qual ela entrelaçou, em uma crítica ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado, três dimensões analiticamente distintas de injustiça de gênero: econômica, cultural e política. Sujeitando o capitalismo organizado pelo Estado a um exame multifacetado e abrangente no qual essas três perspectivas se misturaram livremente, as feministas geraram uma crítica que foi simultaneamente ramificada e sistemática. Porém, nas décadas seguintes, as três dimensões de injustiça tornaram-se separadas, tanto entre si, quanto da crítica ao capitalismo. Com a fragmentação da crítica feminista vieram a incorporação seletiva e a recuperação parcial de algumas de suas tendências. Separadas umas das outras e da crítica social que as tinha integrado, as esperanças da segunda onda foram recrutadas a serviço de um projeto que estava profundamente em conflito com a nossa ampla visão holística de uma sociedade justa. Em um bom exemplo da perspicácia da história, desejos utópicos acharam uma segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional, neoliberal.
No que se segue, proponho elaborar esta hipótese em três etapas, as quais correspondem aos três pontos do esquema mencionado anteriormente. Em uma primeira etapa, reconstruirei a crítica da segunda onda feminista ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado em relação à integração com as três perspectivas sobre justiça – redistribuição, reconhecimento e representação. Em uma segunda etapa, esboçarei a desintegração desta constelação e o recrutamento seletivo de algumas de suas tendências para legitimar o capitalismo neoliberal. Em uma terceira etapa, esboçarei as perspectivas para recuperar a promessa emancipatória do feminismo no presente momento de crise econômica e abertura política.
O feminismo e o capitalismo organizado pelo Estado
Permitam-me começar situando o surgimento da segunda onda do feminismo no contexto do capitalismo organizado pelo Estado. Por “capitalismo organizado pelo Estado”, quero dizer a formação social hegemônica na era do pós-guerra, uma formação social na qual os estados exerceram um papel ativo em conduzir as suas economias nacionais4. Estamos mais familiarizados com a forma tomada pelo capitalismo organizado pelo Estado nos Estados de Bem-estar Social do que foi então chamado de Primeiro Mundo, que usou ferramentas Keynesianas para suavizar os ciclos de crescimento e queda endêmicos ao capitalismo. Baseando-se nas experiências da Depressão e planejamento de tempos de guerra, estes Estados implementaram várias formas de dirigismo, incluindo investimento infra-estrutural, política industrial, tributação redistributiva, provisão social, regulamento empresarial, nacionalização de algumas indústrias-chave e desmercantilização de bens públicos. Embora fossem os mais ricos e poderosos Estados da OCDE5 que eram capazes de “organizar” o capitalismo com mais êxito nas décadas posteriores a 1945, uma variante do capitalismo organizado pelo Estado poderia também ser encontrada no que foi então denominado o Terceiro Mundo. Em ex-colônias empobrecidas, os “Estados desenvolvimentistas” recém independentes buscaram usar suas capacidades mais limitadas para iniciar o crescimento econômico nacional por meio de políticas de substituição de importação, investimento infra-estrutural, nacionalização de indústrias-chave e gastos públicos em educação.6
Em geral, então, utilizo esta expressão para referir aos Estados de Bem-estar Social da OCDE e aos Estados desenvolvimentistas ex-coloniais do período pós-guerra. Afinal das contas, foi nestes países que a segunda onda do feminismo primeiramente irrompeu no início da década de 1970. Para explicar o que exatamente provocou a explosão, deixe-me observar quatro características definidoras da cultura política do capitalismo organizado pelo Estado:
Economicismo. Por definição, o capitalismo organizado pelo Estado envolveu o uso do poder político público para regular (e em alguns casos, substituir) os mercados econômicos. Esta foi em grande parte uma questão de gestão da crise no interesse do capital. Todavia, os Estados em questão derivaram muito de sua legitimidade política de suas pretensões em promover inclusão, igualdade social e solidariedade entre classes. No entanto, estes ideais foram interpretados de um modo economicista e classecêntrico. Na cultura política do capitalismo organizado pelo Estado, as questões sociais foram estruturadas principalmente em termos distributivos, como assuntos relativos à distribuição equitativa de bens divisíveis, especialmente renda e empregos, enquanto as divisões sociais foram vistas principalmente pelo prisma de classe. Assim, a injustiça social perfeita era a distribuição econômica injusta, e sua expressão paradigmática era a desigualdade de classes. O efeito deste imaginário classecêntrico e economicista era marginalizar, se não completamente obscurecer, outras dimensões, locais e eixos de injustiça.
Androcentrismo. Seguiu-se que a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado visualizava o cidadão de tipo ideal como um trabalhador masculino pertencente à maioria étnica – chefe e homem de família. Foi amplamente suposto, também, que o salário deste trabalhador deveria ser o principal, se não o exclusivo, sustento econômico de sua família, enquanto quaisquer salários ganhos pela sua esposa deveriam ser meramente suplementares. Profundamente marcada pelo gênero, esta construção “salário família” serviu tanto como um ideal social, conotando modernidade e mobilidade ascendente, quanto à base para política estatal em matéria de emprego, bem-estar social e desenvolvimento. Certamente, o ideal iludiu a maioria das famílias, pois o salário de um homem raramente era por si só suficiente para sustentar os filhos e uma esposa sem emprego. E dado como certo também, a indústria fordista para a qual o ideal estava ligado logo seria tolhida por um florescente setor de serviços de baixos-salários. Mas nas décadas de 1950 e 1960, o ideal de salário família serviu ainda para definir normas de gênero e para disciplinar aqueles que as infringiriam, reforçando a autoridade dos homens em assuntos domésticos e canalizando aspirações ao consumo doméstico privatizado. Igualmente importante, por valorizar o trabalho assalariado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado obscureceu a importância social do trabalho não-assalariado de atenção à família e do trabalho reprodutivo. Institucionalizando compreensões androcêntricas de família e trabalho, naturalizou injustiças de gênero e as removeu da contestação política.
Estatismo. O capitalismo organizado pelo Estado, também foi estatista, difundido com um ethos tecnocrático, gerencial. Confiando em peritos profissionais para planejar políticas, e em organizações burocráticas para implementá-las, os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas trataram aqueles a cujo serviço supostamente estavam mais como clientes, consumidores e contribuintes do que como cidadãos ativos. O resultado foi uma cultura despolitizada, que tratava questões de justiça como assuntos técnicos, que deviam ser solucionados mediante o calculo de experts ou de negociação corporativa. Longe de empoderados (empowered) para interpretar suas necessidades democraticamente, por deliberação política e contestação, os cidadãos comuns foram posicionados (na melhor das hipóteses) como recipientes passivos de satisfações definidas e dispensadas de cima.
Westfalianismo. Finalmente, o capitalismo organizado pelo Estado foi, por definição, uma formação nacional, destinada a mobilizar as capacidades de Estados-nações para apoiar o desenvolvimento econômico nacional em nome – se nem sempre no interesse – da cidadania nacional. Possibilitada pela estrutura regulatória de Bretton Woods, esta formação se baseava em uma divisão de espaço político em unidades territorialmente limitadas. Como resultado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado institucionalizou a visão “Westfaliana” de que comprometimentos compulsórios da justiça só se aplicam entre concidadãos. Subtendendo a maior parte da luta social na era do pós-guerra, esta visão canalizava reivindicações de justiça nas arenas políticas internas de Estados territoriais. O efeito, apesar do simulacro de apoio para os direitos humanos internacionais e a solidariedade antiimperialista, era truncar o alcance da justiça, marginalizando, se não obscurecendo completamente, as injustiças trans-fronteiriças.7
Em geral, então, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado era economicista, androcêntrica, estatista e Westfaliana – características todas que foram objeto de ataque no final das décadas de 1960 e 1970. Naqueles anos de radicalismo explosivo, as feministas da segunda onda se juntaram às suas companheiras da Nova Esquerda e antiimperialistas desafiando o economicismo, o estatismo, e (em um menor grau) o Westfalianismo do capitalismo organizado pelo Estado, ao mesmo tempo contestando o androcentrismo deste – e com isto, o sexismo de seus camaradas e aliados. Vamos considerar estes pontos um por um.
Segunda onda do feminismo contra o economicismo. Rejeitando a identificação exclusiva de injustiça com má distribuição entre classes, as feministas da segunda onda se uniram a outros movimentos emancipatórios para romper o imaginário restritivo e economicista do capitalismo organizado pelo Estado. Politizando “o pessoal”, elas expandiram o significado de justiça, reinterpretando como injustiças desigualdades sociais que tinham sido negligenciadas, toleradas ou racionalizadas desde tempos imemoráveis. Rejeitando tanto o foco exclusivo do Marxismo na economia política quanto o foco exclusivo do liberalismo na lei, elas desvendaram injustiças localizadas em outros lugares – na família e em tradições culturais, na sociedade civil e na vida cotidiana. Ainda, as feministas da segunda onda ampliaram o número de eixos que poderiam abrigar a injustiça. Rejeitando a primazia das classes, as feministas socialistas, as feministas negras e as feministas antiimperialistas também se opuseram aos esforços de feministas radicais em situar o gênero naquela mesma posição de privilégio categorial. Focando não apenas no gênero, mas também na classe, na raça, na sexualidade e na nacionalidade, elas foram precursoras de uma alternativa “interseccionista” que é amplamente aceita hoje. Finalmente, as feministas da segunda onda ampliaram o campo de ação da justiça para incluir assuntos anteriormente privados como sexualidade, serviço doméstico, reprodução e violência contra mulheres. Fazendo assim, elas ampliaram efetivamente o conceito de injustiça para abranger não apenas as desigualdades econômicas, mas também as hierarquias de status e assimetrias do poder político. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos dizer que elas substituíram uma visão de justiça monista, economicista por uma compreensão tridimensional mais ampla, abrangendo economia, cultura e política.
O resultado não foi uma mera lista de questões isoladas. Pelo contrário, o que relacionou a pletora de injustiças recém descobertas era a noção de que a subordinação das mulheres era sistêmica, fundamentada nas estruturas profundas da sociedade. As feministas da segunda onda discutiram, é claro, sobre como melhor caracterizar a totalidade social: se conforme o “patriarcado”, como uma amálgama de “sistemas duais” do capitalismo e patriarcado, como um sistema imperialista mundial, ou, em minha própria visão preferida, como uma forma historicamente específica, a sociedade capitalista organizada pelo Estado de forma androcêntrica, estruturada por três ordens inter-relacionadas de subordinação: (má) distribuição, (falta de) reconhecimento e (falta de) representação. Mas apesar de tais diferenças, a maior parte das feministas da segunda onda – com a exceção notável das feministas liberais – concordou que superar a subordinação das mulheres requeria transformar radicalmente as estruturas profundas da totalidade social. Este compromisso comum para a transformação sistêmica denotava as origens do movimento no mais geral fermento emancipatório dos tempos.
Segunda onda do feminismo contra o androcentrismo. Ainda que a segunda onda do feminismo participasse da atmosfera geral do radicalismo dos anos 1960, mesmo assim permaneceria em uma relação tensa com outros movimentos emancipatórios. Afinal de contas, seu objetivo principal era a injustiça de gênero do capitalismo organizado pelo Estado, o que estava longe de ser uma prioridade para os antiimperialistas não-feministas e os Novos Esquerdistas. Além de intensificar a crítica ao androcentrismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda tinham também que confrontar o sexismo dentro da Esquerda. Para as feministas liberais e radicais, isto não colocou qualquer problema especial; elas poderiam simplesmente se tornar separatistas e abandonarem a Esquerda. Para as feministas socialistas, as feministas antiimperialistas e as feministas de cor, ao contrário, a dificuldade era confrontar o sexismo dentro da Esquerda e permanecer parte dela.
Durante um tempo, pelo menos, as feministas socialistas tiveram sucesso em manter esse difícil equilíbrio. Elas localizaram a essência do androcentrismo em uma divisão sexista do trabalho que sistematicamente desvalorizava atividades, remuneradas e não remuneradas, que eram executadas por ou associada com mulheres. Aplicando esta análise ao capitalismo organizado pelo Estado, descobriram as conexões profundamente estruturais entre a responsabilidade das mulheres à maior parte dos cuidados não remunerados, a subordinação no matrimônio e na vida pessoal, a segmentação de gênero dos mercados de trabalho, a dominação do sistema político pelos homens, e o androcentrismo da provisão do bem-estar social, a política industrial e os esquemas de desenvolvimento. De fato, elas expuseram o salário familiar como o ponto no qual convergiam a má distribuição de gênero, a falta de reconhecimento e a falta de representação. O resultado foi uma crítica que integrava economia, cultura e política em uma análise sistemática da subordinação das mulheres no capitalismo organizado pelo Estado. Longe de ter como objetivo simplesmente promover a incorporação completa das mulheres como assalariadas na sociedade capitalista, as feministas da segunda onda buscavam transformar as estruturas profundas do sistema e os valores que o estimulam – em parte descentralizando o trabalho assalariado e valorizando as atividades não assalariadas, especialmente o trabalho de assistência socialmente necessário executado por mulheres.
Segunda onda do feminismo contra o estatismo. Mas as objeções das feministas ao capitalismo organizado pelo Estado se referiam tanto ao processo quanto ao conteúdo. Como os seus aliados da Nova Esquerda, elas rejeitaram o ethos burocrático-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. À crítica da organização fordista amplamente difundida nos anos de 1960, elas acrescentaram uma análise de gênero, interpretando que a cultura de instituições de larga escala e hierarquizadas expressava a masculinidade modernizada do estrato profissional-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. Desenvolvendo um contra-ethos horizontal de conexão fraternal, as feministas da segunda onda criaram uma prática organizacional completamente nova de aumento da conscientização. Buscando um caminho para cobrir a profunda divisão estatista entre teoria e prática, elas se intitularam como um movimento contracultural democratizante – anti-hierárquico participativo e popular. Em uma época em que o acrônimo “ONG” ainda não existia, acadêmicas feministas, advogadas e assistentes sociais se identificaram mais com as bases do que com o ethos profissional reinante de especialistas despolitizados.
Mas, diferentemente de algumas das suas companheiras de contracultura, a maioria das feministas não rejeitou as instituições estatais simpliciter. Buscando, pelo contrário, infundir nestas instituições valores feministas, elas vislumbraram um Estado democrático e participativo que empoderasse a seus cidadãos. Re-imaginando efetivamente a relação entre Estado e sociedade, elas buscaram transformar aqueles objetos vistos como passivos da política desenvolvimentista e de bem-estar social em sujeitos ativos, empoderandos-os para participarem em processos democráticos de interpretação da necessidade. O objetivo, portanto, era menos desmontar as instituições estatais do que transformá-las em agências que promoveriam, e de fato expressariam, justiça de gênero.
Segunda onda do feminismo contra e a favor do Westfalianismo. Mais ambivalente, talvez, tenha sido a relação do feminismo com a dimensão Westfaliana do capitalismo organizado pelo Estado. Dadas suas origens na agitação global da época contra a Guerra do Vietnã, o movimento estava claramente disposto a ser sensível a injustiças trans-fronteiriças. Este era o caso especialmente das feministas no mundo em desenvolvimento, cuja crítica de gênero foi entrelaçada com uma crítica ao imperialismo. Mas lá, como em outro lugar, a maioria das feministas viu os seus respectivos Estados como os principais destinatários de suas exigências. Assim, as feministas da segunda onda tendiam a re-escrever a estrutura Westfaliana ao nível da prática, até mesmo quando elas a criticavam em nível teórico. Aquela estrutura, que dividiu o mundo em políticas territoriais delimitadas, permanecia como a opção padrão em uma época em que os Estados ainda pareciam possuir as capacidades necessárias para a direção social e na qual a tecnologia que permite a formação de redes transnacionais em tempo real ainda não estava disponível. No contexto do capitalismo organizado pelo Estado, então, o slogan “a irmandade é global” (ele mesmo já contestado como imperialista) funcionou mais como um gesto abstrato do que como um projeto político pós-Westfaliano que poderia ser colocado em prática.
Em geral, a segunda onda do feminismo permaneceu Westfaliana de forma ambivalente, até mesmo porque rejeitava o economicismo, o androcentrismo e o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado. Em todas essas questões, entretanto, manifestou consideráveis nuanças. Ao rejeitar o economicismo, as feministas deste período nunca duvidaram da centralidade da justiça distributiva e da crítica da economia política no projeto da emancipação das mulheres. Longe de querer minimizar a dimensão econômica da injustiça de gênero, elas buscaram, pelo contrário, aprofundá-la, esclarecendo-se sua relação com as duas dimensões adicionais de cultura e da política. Da mesma forma, ao rejeitar o androcentrismo do salário familiar, as feministas da segunda onda nunca buscaram simplesmente substituí-lo pela família com dois assalariados. Para elas, superar a injustiça de gênero significava acabar com a desvalorização sistemática de provisão de cuidados e a divisão sexista do trabalho, tanto remunerado quanto não remunerado. Finalmente, ao rejeitar o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda nunca duvidaram da necessidade de fortes instituições políticas capazes de organizar a vida econômica a serviço da justiça. Longe de querer libertar os mercados do controle do Estado, elas buscavam, pelo contrário, democratizar o poder estatal, maximizar a participação do cidadão, fortalecer a prestação de contas (accountability) e aumentar os fluxos comunicativos entre o Estado e a sociedade.
Em suma, a segunda onda do feminismo aderiu a um projeto político transformador, baseado em um entendimento expandido de injustiça e na crítica sistêmica da sociedade capitalista. As correntes mais avançadas do movimento viram as suas lutas como multidimensionais, voltadas simultaneamente contra a exploração econômica, hierarquia de status e sujeição política. Para elas, ademais, o feminismo surgiu como parte de um projeto emancipatório mais amplo, no qual as lutas contra injustiças de gênero estavam necessariamente ligadas a lutas contra o racismo, o imperialismo, a homofobia e a dominação de classes, todas as quais exigiam uma transformação das estruturas profundas da sociedade capitalista.
O feminismo e o “novo espírito do capitalismo”
Como se constatou mais tarde, aquele projeto permaneceu basicamente fadado ao fracasso desde o início, vítima de forças históricas mais profundas, que não foram bem entendidas na ocasião. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos ver agora que o surgimento da segunda onda do feminismo coincidiu com uma mudança histórica no caráter do capitalismo, da variante organizada pelo Estado, que acabou de ser analisada, para o neoliberalismo. Invertendo a fórmula anterior, que buscava “usar a política para domesticar mercados”, os proponentes desta nova forma de capitalismo propuseram usar mercados para domesticar a política. Desmontando elementos-chave da estrutura de Bretton Woods, eles eliminaram os controles de capital que tinham permitido a direção Keynesiana de economias nacionais. No lugar do dirigismo8, eles promoveram a privatização e a desregulamentação; em lugar de provisão pública e cidadania social, “trickle-down”9 e “responsabilização pessoal”; em lugar dos Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas, um Estado competitivo enxuto e mesquinho. Testada na América Latina, esta abordagem serviu para guiar muito da transição para o capitalismo na Europa Oriental/Central. Embora publicamente patrocinada por Thatcher e Reagan, era aplicada apenas gradual e desigualmente no Primeiro Mundo. No Terceiro, por contraste, a neoliberalização foi imposta usando a dívida como ameaça, como um programa forçado de “ajuste estrutural” o qual subverteu todos os princípios centrais do “desenvolvimentismo” e compeliu os Estados pós-coloniais a despojar-se de seus ativos, abrirem os seus mercados e cortar gastos sociais.
Curiosamente, a segunda onda do feminismo prosperou nestas novas condições. O que tinha começado como um movimento contracultural radical estava agora a caminho de se tornar um fenômeno social de massa de base ampla. Atraindo partidários de todas as classes, etnias, nacionalidades e ideologias políticas, as ideias feministas penetraram em todos os cantos escondidos da vida social e transformaram a ideia que todos os afetados tinham de si mesmos. O efeito não foi apenas ampliar imensamente as fileiras de ativistas, mas também transformar as visões de senso comum de família, trabalho e dignidade.
Foi mera coincidência que a segunda onda do feminismo e o neoliberalismo prosperaram em conjunto? Ou havia uma afinidade eletiva perversa, subterrânea entre eles? Esta segunda possibilidade pode ser uma heresia, por certo, mas seria perigoso não investigá-la. Certamente, o surgimento do neoliberalismo mudou dramaticamente o terreno no qual a segunda onda do feminismo operava. O efeito, eu discutirei aqui, foi “ressignificar” os ideais feministas.10 As aspirações que tiveram um claro impulso emancipatório no contexto do capitalismo organizado pelo Estado assumiram um significado muito mais ambíguo na era neoliberal. Com os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas sob ataque dos “marqueteiros do livre-mercado” (free-marketeers), as críticas feministas do economicismo, androcentrismo, estatismo e Westfalianismo assumiram uma nova valência. Deixe-me esclarecer esta dinâmica de “ressignificação” contemplando novamente os quatro focos da crítica feminista.
Antieconomicismo feminista ressignificado. A ascensão do neoliberalismo coincidiu com uma maior alteração na cultura política das sociedades capitalistas. Neste período, as reivindicações por justiça foram progressivamente expressadas como reivindicações pelo reconhecimento da identidade e da diferença.11 Com esta mudança “da redistribuição para o reconhecimento” vieram pressões poderosas para transformar a segunda onda do feminismo em uma variante da política de identidade. Uma variante progressista, de fato, mas uma que tendia, contudo, a estender em excesso a crítica da cultura, enquanto subestimava a crítica da economia política. Na prática, a tendência era subordinar as lutas sócio-econômicas a lutas para o reconhecimento, enquanto na academia, a teoria cultural feminista começou a obscurecer a teoria social feminista. O que tinha começado como um corretivo necessário para o economicismo recaiu com o tempo em um culturalismo igualmente unilateral. Assim, em vez de chegar a um paradigma mais amplo, mais rico, que poderia abranger tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, as feministas da segunda onda trocaram um paradigma incompleto por outro.
Além disso, o momento não poderia ter sido pior. A volta para o reconhecimento se encaixou muito nitidamente com um neoliberalismo em ascensão que não queria nada mais do que reprimir toda a memória de igualitarismo social. Assim, as feministas tornaram absoluta a crítica da cultura precisamente no momento em que as circunstâncias requeriam atenção redobrada à crítica da economia política. Conforme a crítica se fragmentava, além do mais, a tendência cultural se tornava separada não apenas da tendência econômica, mas também da crítica do capitalismo que as integrara anteriormente. Separada da crítica do capitalismo e disponibilizada para articulações alternativas, estas tendências poderiam ser reduzidas no que Hester Eisenstein chamou de “uma conexão perigosa” com o neoliberalismo (EISENTEIN, 2005).
Antiandrocentrismo feminista ressignificado. Era só uma questão de tempo, portanto, antes que o neoliberalismo ressignificasse a crítica feminista ao androcentrismo. Para explicar como, proponho adaptar um argumento feito por Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005). No seu importante livro, The New Spirit of Capitalism (O novo espírito do capitalismo), eles argumentam que o capitalismo se refaz periodicamente em momentos de ruptura histórica, em parte recuperando as tendências de crítica dirigidas contra ele. Em tais momentos, elementos de crítica anticapitalista são ressignificados para legitimar uma forma nova e emergente de capitalismo, que assim se torna dotada da mais alta significação moral necessária para motivar novas gerações a arcar com o trabalho inerentemente sem sentido de acumulação infinita. Para Boltanski e Chiapello, o novo “espírito” que serviu para legitimar o capitalismo neoliberal flexível de nosso tempo foi adaptado da crítica “artística” da Nova Esquerda ao capitalismo organizado pelo Estado, que denunciou o conformismo cinzento da cultura corporativa. Foi no auge de Maio de 68, afirmam, que os teóricos de gestão neoliberais propuseram um novo capitalismo “conexionista”, “de projeto”, no qual as hierarquias organizacionais rígidas dariam lugar a equipes horizontais e a redes flexíveis, liberando, assim, a criatividade individual. O resultado foi uma nova narrativa do capitalismo com efeitos no mundo real – uma narrativa que envolveu os impulsos tecnológicos do Silicon Valley e que hoje acha sua mais pura expressão no ethos do Google.
O argumento de Boltanski e Chiapello é original e profundo. Contudo, ao não enxergar as questões de gênero, ele deixa de compreender o caráter completo do espírito do capitalismo neoliberal. De fato, aquele espírito inclui uma narrativa masculinista do indivíduo livre, desimpedido, auto modelado, que eles descrevem apropriadamente. Mas o capitalismo neoliberal tem tanto a ver com Walmart, maquiladoras e microcrédito quanto com o Silicon Valley e o Google. E seus trabalhadores indispensáveis são desproporcionalmente mulheres, não apenas jovens mulheres solteiras, mas também mulheres casadas e mulheres com filhos; não só as mulheres racializadas, mas virtualmente mulheres de todas as nacionalidades e etnias. Como tais, as mulheres despejaram-se em mercados de trabalho ao redor do globo; o efeito foi cortar na raiz de uma vez por todas o ideal do salário familiar do capitalismo organizado pelo Estado. No capitalismo neoliberal “desorganizado”, este ideal foi substituído pela norma da família de dois assalariados. Não importa que a realidade que subjaz o novo ideal sejam os níveis salariais decrescidos, diminuição da segurança no emprego, padrões de vida em declínio, um aumento abrupto no número de horas trabalhadas em troca de salários por família, exacerbação do turno dobrado – agora frequentemente um turno triplo ou quádruplo – e um aumento de lares chefiados por mulheres. O capitalismo desorganizado vende gato por lebre12 ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero.
Por mais inquietante que possa parecer, estou sugerindo que a segunda onda do feminismo tem involuntariamente fornecido um ingrediente-chave do novo espírito do neoliberalismo.
Nossa crítica do salário familiar agora fornece uma boa parte da narrativa que reveste o capitalismo flexível de um significado mais elevado e de um argumento moral. Dotando as suas lutas diárias de um significado ético, a narrativa feminista atrai as mulheres nos dois extremos do espectro social: em um extremo, os quadros femininos das classes médias profissionais, determinadas a rachar o teto de vidro; no outro extremo, as trabalhadoras temporárias, de trabalho parcial, prestadoras de serviço de baixa remuneração, domésticas, trabalhadoras do sexo, migrantes, trabalhadores de Zonas de Processamento de Exportação (EPZ)13 e aquelas que utilizam microcrédito, buscando não apenas renda e segurança material, mas também dignidade, auto-aperfeiçoamento e liberação em relação à autoridade tradicional. Nos dois extremos, o sonho de emancipação das mulheres está subordinado à máquina de acúmulo capitalista. Assim, a crítica da segunda onda do feminismo ao salário familiar desfrutou de uma continuação perversa. Se foi, em um tempo, peça central de uma análise radical do androcentrismo do capitalismo, serve hoje para intensificar a valorização do trabalho assalariado do capitalismo.
Antiestatismo feminista ressignificado. O neoliberalismo também ressignificou o antiestatismo do período anterior, tornando-o útil para os esquemas destinados a reduzir a ação estatal tout court. No novo clima, parecia haver um pequeno passo entre a crítica ao paternalismo do Estado de Bem-estar Social da segunda onda do feminismo para a crítica de Thatcher ao Estado protecionista. Certamente, esta foi a experiência nos Estados Unidos, onde as feministas assistiam impotentes como Bill Clinton triangulava as críticas sutis que elas faziam a um sistema de assistência sexista, estigmatizante e precário em um plano para “terminar o bem-estar social como o conhecemos” que aboliu o direito federal a um subsídio para a renda. Nas pós-colônias, enquanto isso, a crítica ao androcentrismo do Estado desenvolvimentista se transformou em entusiasmo pelas ONGs, que emergiram em todos os lugares para preencher os vazios deixados pelos Estados cada vez mais encolhidos. Certamente, as melhores destas organizações forneceram a populações destituídas de serviços públicos a ajuda material que com urgência necessitavam. Contudo, o efeito era frequentemente despolitizar os grupos locais e distorcer suas agendas em direções favorecidas pelos financiadores do Primeiro-Mundo. Pela sua própria natureza de preencher lacunas, além do mais, a ação das ONGs fez pouco para desafiar a maré em retrocesso da provisão pública ou para construir apoio político para a ação estatal reativa (ALVAREZ, 1999; BARTON, 2004).
A explosão do microcrédito ilustra o dilema. Contrapropondo os valores feministas de empoderamento e participação desde baixo à burocracia indutora de passividade do estatismo hierárquico, os arquitetos destes projetos fizeram uma síntese inovadora de auto-ajuda individual e formação de redes comunitárias, a supervisão por parte das ONGs e os mecanismos de mercado: tudo isso com o objetivo de combater a pobreza das mulheres e a sujeição de gênero. Os resultados até aqui incluem um registro impressionante de devoluções de empréstimo e evidências anedóticas de vidas transformadas. Porém, o que tem sido ocultado no alvoroço feminista que cerca estes projetos é uma coincidência perturbadora: o microcrédito se desenvolveu exatamente quando os Estados abandonaram os esforços macroestruturais para combater a pobreza, esforços que os empréstimos em pequena escala podem sequer substituir (NARAYAN, 2005; EISENSTEIN, 2005). Neste caso também, a crítica feminista do paternalismo burocrático foi recuperada pelo neoliberalismo. A perspectiva que visava originalmente transformar o poder estatal em um veículo de empoderamento dos cidadãos e da justiça social é agora usada para legitimar a mercantilização e a redução de despesas do Estado.
Feministas contra e a favor do Westfalianismo ressignificado. Finalmente, o neoliberalismo alterou para melhor e para pior a relação ambivalente da segunda onda do feminismo para com a estrutura Westfaliana. No novo contexto de “globalização”, já não mais se diz que o Estado territorial delimitado é o único receptáculo legítimo das obrigações de justiça e das lutas a favor desta. As feministas se uniram aos ambientalistas, aos ativistas de direitos humanos e aos críticos da Organização Mundial de Comércio (OMC) para desafiar essa visão. Mobilizando as intuições pós-Westfalianas que tinham permanecido impraticáveis no capitalismo organizado pelo Estado, elas visavam atingir as injustiças trans-fronteiriças que tinham sido marginalizadas ou negligenciadas na época anterior. Utilizando novas tecnologias de comunicação para estabelecer redes transnacionais, as feministas foram precursoras em estratégias inovadoras tais como o “efeito bumerangue”, que mobiliza a opinião pública global dirigindo a atenção para abusos locais e para envergonhar os Estados que fecham os olhos para eles (KECK & SIKKINK, 1998). O resultado foi uma nova forma promissora de ativismo feminista: transnacional, de múltipla escala, pós-Westfaliana.
No entanto, a virada transnacional trouxe dificuldades também. Frequentemente impedidas no plano estatal, muitas feministas direcionaram suas energias para a arena “internacional”, especialmente para uma sucessão de conferências relacionadas com as Nações Unidas, de Nairóbi a Viena até Pequim e assim por diante. Fazendo-se presentes na “sociedade civil global” em que pudessem empreender novos regimes de governança global, elas foram envolvidas em alguns dos problemas que já mencionei. Por exemplo, campanhas para os direitos humanos das mulheres que focalizaram esmagadoramente as questões da violência e da reprodução, subjugaram as questões relacionadas à pobreza. Ratificando a divisão própria da Guerra Fria entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, estes esforços, também, privilegiaram o reconhecimento sobre a redistribuição. Além disso, estas campanhas intensificaram a “onguização” da política feminista, alargando o vazio entre os profissionais e os grupos locais, enquanto davam voz desproporcional para as elites que falam a língua Inglesa. Dinâmicas análogas têm operado na participação feminista com o aparato político da União Europeia – especialmente dada a ausência de movimentos de mulheres genuinamente transnacionais em toda a Europa. Assim, a crítica feminista do Westfalianismo se mostrou ambivalente na era do neoliberalismo. O que começou como uma tentativa saudável para ampliar o escopo de justiça além do Estado-nação acabou se encaixando em certos aspectos com as necessidades administrativas de uma nova forma de capitEm geral, então, o destino do feminismo na era neoliberal apresenta um paradoxo. Por um lado, o movimento contracultural relativamente pequeno do período anterior se expandiu exponencialmente, disseminando com sucesso suas ideias pelo mundo. Por outro lado, as ideias feministas se submeteram a uma mudança sutil de validade no contexto alterado. Claramente emancipatórias no período do capitalismo organizado pelo Estado, as críticas ao economicismo, ao androcentrismo, ao estatismo e ao Westfalianismo agora aparecem cheia de ambiguidades, suscetíveis a servir as necessidades de legitimação de uma nova forma de capitalismo. Afinal de contas, este capitalismo preferiria confrontar mais as reivindicações para o reconhecimento e não as reivindicações para a redistribuição, na medida em que constrói um novo regime de acumulação sobre a pedra angular do trabalho assalariado das mulheres, e busca separar os mercados de uma regulamentação social a fim de operar ainda mais livremente em uma escala global.
Um futuro em aberto?
Hoje, entretanto, este capitalismo está ele próprio em uma encruzilhada crítica. Certamente, a crise financeira global e a resposta decididamente pós-neoliberal por parte dos principais Estados – todos keynesianos agora – marcam o começo do fim do neoliberalismo como um regime econômico. A eleição de Barack Obama pode sinalizar o repúdio decisivo, inclusive “nas entranhas do monstro”, do neoliberalismo como um projeto político. Podemos estar vendo as primeiras agitações de uma nova onda de mobilização destinada a articular uma alternativa. Talvez, consequentemente, nós estejamos à beira de outra “grande transformação”, tão volumosa e profunda quanto a que há pouco descrevi.
Nesse caso, então, a forma da sociedade sucessora será objeto de intensa contestação no próximo período. E o feminismo destacar-se-á com importância em tal contestação, em dois níveis diferentes: o primeiro, como movimento social cujas propriedades eu delineei aqui, que procurará garantir que o regime sucessor institucionalize um compromisso em relação à justiça de gênero. Mas também, em segundo lugar, como uma construção discursiva geral que as feministas no primeiro sentido não possuem mais e já não controlam – um significante vazio do bem (semelhante, talvez, à “democracia”) que pode e será invocada para legitimar uma variedade de diferentes cenários, nem todos os quais promotores de justiça de gênero. Fruto do feminismo no primeiro sentido, o de movimento social, este segundo sentido discursivo do “feminismo” se tornou traiçoeiro. Como o discurso se torna independente do movimento, ele é progressivamente confrontado com uma estranha versão sombria de si mesma, um cópia sinistra que nem se pode simplesmente abraçar, nem negar completamente.14
Neste artigo, tracei a dança desconcertante destes dois feminismos na mudança do capitalismo organizado pelo Estado para o neoliberalismo. O que devemos concluir disto? Certamente, não que a segunda onda do feminismo fracassou simpliciter, nem que se deve culpar pelo triunfo do neoliberalismo. Certamente, não se trata de os ideais feministas serem inerentemente problemáticos; nem que eles sempre já estejam condenados a ser ressignificados para os propósitos capitalistas. Concluo, pelo contrário, que nós, para quem o feminismo é acima de tudo um movimento para a justiça de gênero, precisamos ampliar nossa consciência histórica na medida em que operamos em um terreno que também está povoado pela nossa estranha cópia.
Para este fim, permitam-nos voltar à pergunta: o que explica, se é que se pode explicar, nosso “vínculo perigoso” com o neoliberalismo? Somos as vítimas de uma coincidência infeliz, e aconteceu de estarmos no lugar errado no momento errado e assim caímos como presas do mais sedutor dos oportunistas, um capitalismo tão indiscriminado que instrumentalizaria qualquer perspectiva que seja até mesmo uma inerentemente estranha a ele? Ou, como sugeri anteriormente, há alguma afinidade eletiva e subterrânea entre o feminismo e o neoliberalismo?
Se tal afinidade existe de fato, ela se encontra na crítica da autoridade tradicional.15 Tal autoridade é um alvo do ativismo feminista existente há muito tempo, que buscou, pelo menos desde Mary Wollstonecraft, emancipar as mulheres da sujeição personalizada aos homens, sejam eles os pais, irmãos, padres, anciões ou maridos. Mas a autoridade tradicional também aparece em alguns períodos como um obstáculo à expansão capitalista, parte do conteúdo social circundante em que os mercados historicamente foram incorporados e que serviu para delimitar a racionalidade econômica dentro de uma esfera limitada.16 No momento atual, estas duas críticas à autoridade tradicional, a feminista e a outra neoliberal, parecem convergir.
Onde o feminismo e neoliberalismo divergem, em contraste, é sobre as formas pós-tradicionais de subordinação de gênero – coações na vida das mulheres que não adotam a forma de sujeição personalizada, mas surgem de processos estruturais ou sistêmicos nos quais as ações de muitas pessoas são mediadas de forma abstrata ou impessoal. Um caso paradigmático é o que Susan Okin caracterizou como “um ciclo de vulnerabilidade claramente assimétrica e socialmente provocada pelo casamento”. Em que a responsabilidade tradicional das mulheres para o processo de criar e educar os filhos ajuda a moldar os mercados de trabalho que as desfavorecem, resultando em poder desigual no mercado econômico, o que, por sua vez, reforça e exacerba o poder desigual na família. (OKIN, 1989, p. 138). Tais processos de subordinação mediados pelo mercado são a própria essência do capitalismo neoliberal. Hoje, consequentemente, eles devem se tornar no foco principal da crítica feminista, conforme buscamos nos distinguir do neoliberalismo e evitar a ressignificação feita por ele. O objetivo, certamente, não é largar a luta contra a autoridade masculina tradicional, a qual permanece um momento necessário da crítica feminista. É, pelo contrário, romper a passagem fácil de tal crítica para seu duplo neoliberal – sobretudo reconectando as lutas contra a sujeição personalizada à crítica a um sistema capitalista, o qual, ainda que prometa liberação, de fato substitui um modo de dominação por outro. Na esperança de adiantar esta agenda, gostaria de concluir revisitando uma última vez meus quatro focos da crítica feminista.
Antieconomicismo pós-neoliberal. O possível abandono do neoliberalismo oferece a oportunidade de reativar a promessa emancipatória da segunda onda do feminismo. Adotando uma análise plenamente tridimensional de injustiça, poderíamos agora integrar de um modo mais equilibrado as dimensões de redistribuição, reconhecimento e representação que se fragmentaram no período anterior. Fundamentando esses aspectos indispensáveis da crítica feminista em um sentido robusto e atualizado da totalidade social, devemos reconectar a crítica feminista à crítica do capitalismo – e assim re-posicionar o feminismo diretamente na Esquerda.
Antiandrocentrismo pós-neoliberal. Da mesma forma, a possível mudança para uma sociedade pós-neoliberal oferece a chance de romper a ligação espúria entre nossa crítica do salário familiar e o capitalismo flexível. Reivindicando nossa crítica ao androcentrismo, as feministas poderiam militar por uma forma de vida que descentralize o trabalho assalariado e valorize as atividades desmercantilizadas, como o trabalho de cuidar. Agora executadas amplamente por mulheres, tais atividades devem se tornar componentes valiosos de uma vida boa para todos.
Antiestatismo pós-neoliberal. A crise do neoliberalismo também oferece a chance de romper a ligação entre nossa crítica ao estatismo e à mercadorização. Reivindicando o manto da democracia participativa, as feministas poderiam agora militar por uma nova organização de poder político, que subordine o gerencialismo burocrático pelo aumento do poder dos cidadãos. Porém, o objetivo não é dissipar, mas fortalecer o poder público. Assim, a democracia participativa que buscamos hoje é uma que usa a política para domesticar os mercados e guiar a sociedade no interesse da justiça.
Anti Westfalianismo pós-neoliberal. Finalmente, a crise do neoliberalismo oferece a chance de solucionar, de um modo produtivo, nossa ambivalência há muito existente sobre a estrutura Westfaliana. Dado o alcance transnacional do capital, as capacidades públicas necessárias hoje não podem ser alojadas exclusivamente no Estado territorial. Aqui, consequentemente, a tarefa é romper a identificação exclusiva da democracia com a comunidade política delimitada. Juntando outras forças progressistas, as feministas poderiam militar por uma nova ordem política pós-Westfaliana – uma ordem escalar múltipla que é democrática em todos os níveis. Combinando subsidiariedade com participação, a nova constelação de poderes democráticos deve ser capaz de retificar as injustiças em todas as dimensões, ao longo de todos os eixos e em todas as escalas, incluindo injustiças trans-fronteiriças. Estou sugerindo, então, que este é um momento em que as feministas devem pensar grande. Tendo observado como o violento ataque neoliberal instrumentalizou nossas melhores ideias, temos uma abertura agora para reivindicá-las. Agarrando este momento, poderíamos simplesmente dobrar o arco da transformação iminente na direção da justiça – e não apenas no que diz respeito a gênero.
New Left Review
Tradução / Gostaria de voltar o olhar para a segunda onda do feminismo. Não a uma ou outra corrente ativista, nem a esta ou aquela tendência de teorização feminista; tampouco a uma ou outra fatia geográfica do movimento, nem a um determinado estrato sociológico de mulheres. Quero, ao contrário, tentar analisar a segunda onda do feminismo no seu conjunto, como um monumental fenômeno social que marcou uma época. Recordando quase quarenta anos de ativismo feminista, quero arriscar uma avaliação geral da trajetória e da importância histórica do movimento. Espero também que olhar para trás nos ajude a olhar para o futuro. Reconstruindo o caminho percorrido, espero lançar luz sobre os desafios que enfrentamos hoje – em uma época de forte crise econômica, incerteza social e realinhamento político[3].
Vou, portanto, falar sobre os amplos contornos e o significado geral da segunda onda do feminismo. Narrativa histórica e análise sócio-teórica em partes iguais, meu relato gira em torno de três pontos sucessivos, cada um dos quais situa a segunda onda do feminismo em relação a um momento específico da história do capitalismo. O primeiro ponto se refere aos primórdios do movimento no contexto que denominarei “capitalismo organizado pelo Estado”. Neste artigo, me proponho a rastrear o surgimento da segunda onda do feminismo a partir da nova esquerda antiimperialista, como um questionamento radical ao androcentrismo que permeia as sociedades capitalistas lideradas pelo Estado no pós-guerra. Conceituando esta fase, identificarei a promessa emancipatória fundamental do movimento com seu sentimento expandido de injustiça e sua crítica estrutural da sociedade. O segundo ponto se refere ao processo da evolução do feminismo no contexto social drasticamente mudado do crescente neoliberalismo. A este respeito, proponho não apenas traçar os sucessos extraordinários do movimento, mas também a perturbadora convergência de alguns de seus ideais com as exigências de uma nova forma emergente do capitalismo: pós-fordista, “desorganizada”, transnacional. Ao conceituar esta fase, perguntarei se a segunda onda do feminismo forneceu inconscientemente um ingrediente fundamental do que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005) chamam de “o novo espírito do capitalismo”. O terceiro ponto faz referência a uma possível reorientação do feminismo no atual contexto de crise capitalista e realinhamento político estadunidense, que poderia marcar os primórdios do neoliberalismo a uma nova forma de organização social. A este respeito, proponho examinar as perspectivas para reativar a promessa emancipatória do feminismo em um mundo que foi golpeado pelas crises gêmeas do capital financeiro e da hegemonia dos Estados Unidos, e que agora espera o desdobramento da presidência de Barack Obama.
Em geral, portanto, proponho situar a trajetória da segunda onda feminista em relação à recente história do capitalismo. Deste modo, espero ajudar a recuperar a teorização feminista socialista que me inspirou pela primeira vez há décadas e que ainda parece oferecer nossa melhor esperança para esclarecer as perspectivas de justiça de gênero na atualidade. Entretanto, meu objetivo não é reciclar teorias de sistemas duais obsoletos, mas, ao contrário, integrar o melhor das recentes teorias feministas com o melhor das recentes teorias críticas do capitalismo.
Para esclarecer a lógica atrás desta abordagem, deixe-me explicar meu descontentamento com o que talvez seja a visão mais amplamente mantida da segunda onda do feminismo. É dito frequentemente que o sucesso relativo do movimento em transformar cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas. E, assim, frequentemente se argumenta: a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural, mas a vasta mudança nas mentalités (contudo) não tem se transformado em mudança estrutural, institucional.
Há algo a ser dito a respeito desta visão, que acertadamente registra a ampla aceitação de hoje das ideias feministas. Mas a tese de “falha institucional com sucesso cultural” não ajuda muito a iluminar a significação histórica e as futuras perspectivas da segunda onda do feminismo. Postular que as instituições ficaram defasadas em relação à cultura, como se uma pudesse mudar enquanto a outra não, sugere que apenas precisamos fazer a primeira alcançar a última a fim de tornar reais as esperanças feministas. O efeito é obscurecer uma possibilidade mais complexa, perturbadora: que a difusão de atitudes culturais nascidas da segunda onda foi parte integrante de outra transformação social, inesperada e não intencional pelas ativistas feministas – uma transformação na organização social do capitalismo do pós-guerra. Esta possibilidade pode ser formulada mais nitidamente: as mudanças culturais impulsionadas pela segunda onda, saudáveis em si próprias, serviram para legitimar uma transformação estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões feministas de uma sociedade justa.
Neste ensaio, meu objetivo é explorar esta possibilidade perturbadora. Minha hipótese pode ser declarada assim: o que foi verdadeiramente novo sobre a segunda onda foi o modo pelo qual ela entrelaçou, em uma crítica ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado, três dimensões analiticamente distintas de injustiça de gênero: econômica, cultural e política. Sujeitando o capitalismo organizado pelo Estado a um exame multifacetado e abrangente no qual essas três perspectivas se misturaram livremente, as feministas geraram uma crítica que foi simultaneamente ramificada e sistemática. Porém, nas décadas seguintes, as três dimensões de injustiça tornaram-se separadas, tanto entre si, quanto da crítica ao capitalismo. Com a fragmentação da crítica feminista vieram a incorporação seletiva e a recuperação parcial de algumas de suas tendências. Separadas umas das outras e da crítica social que as tinha integrado, as esperanças da segunda onda foram recrutadas a serviço de um projeto que estava profundamente em conflito com a nossa ampla visão holística de uma sociedade justa. Em um bom exemplo da perspicácia da história, desejos utópicos acharam uma segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional, neoliberal.
No que se segue, proponho elaborar esta hipótese em três etapas, as quais correspondem aos três pontos do esquema mencionado anteriormente. Em uma primeira etapa, reconstruirei a crítica da segunda onda feminista ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado em relação à integração com as três perspectivas sobre justiça – redistribuição, reconhecimento e representação. Em uma segunda etapa, esboçarei a desintegração desta constelação e o recrutamento seletivo de algumas de suas tendências para legitimar o capitalismo neoliberal. Em uma terceira etapa, esboçarei as perspectivas para recuperar a promessa emancipatória do feminismo no presente momento de crise econômica e abertura política.
O feminismo e o capitalismo organizado pelo Estado
Permitam-me começar situando o surgimento da segunda onda do feminismo no contexto do capitalismo organizado pelo Estado. Por “capitalismo organizado pelo Estado”, quero dizer a formação social hegemônica na era do pós-guerra, uma formação social na qual os estados exerceram um papel ativo em conduzir as suas economias nacionais4. Estamos mais familiarizados com a forma tomada pelo capitalismo organizado pelo Estado nos Estados de Bem-estar Social do que foi então chamado de Primeiro Mundo, que usou ferramentas Keynesianas para suavizar os ciclos de crescimento e queda endêmicos ao capitalismo. Baseando-se nas experiências da Depressão e planejamento de tempos de guerra, estes Estados implementaram várias formas de dirigismo, incluindo investimento infra-estrutural, política industrial, tributação redistributiva, provisão social, regulamento empresarial, nacionalização de algumas indústrias-chave e desmercantilização de bens públicos. Embora fossem os mais ricos e poderosos Estados da OCDE5 que eram capazes de “organizar” o capitalismo com mais êxito nas décadas posteriores a 1945, uma variante do capitalismo organizado pelo Estado poderia também ser encontrada no que foi então denominado o Terceiro Mundo. Em ex-colônias empobrecidas, os “Estados desenvolvimentistas” recém independentes buscaram usar suas capacidades mais limitadas para iniciar o crescimento econômico nacional por meio de políticas de substituição de importação, investimento infra-estrutural, nacionalização de indústrias-chave e gastos públicos em educação.6
Em geral, então, utilizo esta expressão para referir aos Estados de Bem-estar Social da OCDE e aos Estados desenvolvimentistas ex-coloniais do período pós-guerra. Afinal das contas, foi nestes países que a segunda onda do feminismo primeiramente irrompeu no início da década de 1970. Para explicar o que exatamente provocou a explosão, deixe-me observar quatro características definidoras da cultura política do capitalismo organizado pelo Estado:
Economicismo. Por definição, o capitalismo organizado pelo Estado envolveu o uso do poder político público para regular (e em alguns casos, substituir) os mercados econômicos. Esta foi em grande parte uma questão de gestão da crise no interesse do capital. Todavia, os Estados em questão derivaram muito de sua legitimidade política de suas pretensões em promover inclusão, igualdade social e solidariedade entre classes. No entanto, estes ideais foram interpretados de um modo economicista e classecêntrico. Na cultura política do capitalismo organizado pelo Estado, as questões sociais foram estruturadas principalmente em termos distributivos, como assuntos relativos à distribuição equitativa de bens divisíveis, especialmente renda e empregos, enquanto as divisões sociais foram vistas principalmente pelo prisma de classe. Assim, a injustiça social perfeita era a distribuição econômica injusta, e sua expressão paradigmática era a desigualdade de classes. O efeito deste imaginário classecêntrico e economicista era marginalizar, se não completamente obscurecer, outras dimensões, locais e eixos de injustiça.
Androcentrismo. Seguiu-se que a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado visualizava o cidadão de tipo ideal como um trabalhador masculino pertencente à maioria étnica – chefe e homem de família. Foi amplamente suposto, também, que o salário deste trabalhador deveria ser o principal, se não o exclusivo, sustento econômico de sua família, enquanto quaisquer salários ganhos pela sua esposa deveriam ser meramente suplementares. Profundamente marcada pelo gênero, esta construção “salário família” serviu tanto como um ideal social, conotando modernidade e mobilidade ascendente, quanto à base para política estatal em matéria de emprego, bem-estar social e desenvolvimento. Certamente, o ideal iludiu a maioria das famílias, pois o salário de um homem raramente era por si só suficiente para sustentar os filhos e uma esposa sem emprego. E dado como certo também, a indústria fordista para a qual o ideal estava ligado logo seria tolhida por um florescente setor de serviços de baixos-salários. Mas nas décadas de 1950 e 1960, o ideal de salário família serviu ainda para definir normas de gênero e para disciplinar aqueles que as infringiriam, reforçando a autoridade dos homens em assuntos domésticos e canalizando aspirações ao consumo doméstico privatizado. Igualmente importante, por valorizar o trabalho assalariado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado obscureceu a importância social do trabalho não-assalariado de atenção à família e do trabalho reprodutivo. Institucionalizando compreensões androcêntricas de família e trabalho, naturalizou injustiças de gênero e as removeu da contestação política.
Estatismo. O capitalismo organizado pelo Estado, também foi estatista, difundido com um ethos tecnocrático, gerencial. Confiando em peritos profissionais para planejar políticas, e em organizações burocráticas para implementá-las, os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas trataram aqueles a cujo serviço supostamente estavam mais como clientes, consumidores e contribuintes do que como cidadãos ativos. O resultado foi uma cultura despolitizada, que tratava questões de justiça como assuntos técnicos, que deviam ser solucionados mediante o calculo de experts ou de negociação corporativa. Longe de empoderados (empowered) para interpretar suas necessidades democraticamente, por deliberação política e contestação, os cidadãos comuns foram posicionados (na melhor das hipóteses) como recipientes passivos de satisfações definidas e dispensadas de cima.
Westfalianismo. Finalmente, o capitalismo organizado pelo Estado foi, por definição, uma formação nacional, destinada a mobilizar as capacidades de Estados-nações para apoiar o desenvolvimento econômico nacional em nome – se nem sempre no interesse – da cidadania nacional. Possibilitada pela estrutura regulatória de Bretton Woods, esta formação se baseava em uma divisão de espaço político em unidades territorialmente limitadas. Como resultado, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado institucionalizou a visão “Westfaliana” de que comprometimentos compulsórios da justiça só se aplicam entre concidadãos. Subtendendo a maior parte da luta social na era do pós-guerra, esta visão canalizava reivindicações de justiça nas arenas políticas internas de Estados territoriais. O efeito, apesar do simulacro de apoio para os direitos humanos internacionais e a solidariedade antiimperialista, era truncar o alcance da justiça, marginalizando, se não obscurecendo completamente, as injustiças trans-fronteiriças.7
Em geral, então, a cultura política do capitalismo organizado pelo Estado era economicista, androcêntrica, estatista e Westfaliana – características todas que foram objeto de ataque no final das décadas de 1960 e 1970. Naqueles anos de radicalismo explosivo, as feministas da segunda onda se juntaram às suas companheiras da Nova Esquerda e antiimperialistas desafiando o economicismo, o estatismo, e (em um menor grau) o Westfalianismo do capitalismo organizado pelo Estado, ao mesmo tempo contestando o androcentrismo deste – e com isto, o sexismo de seus camaradas e aliados. Vamos considerar estes pontos um por um.
Segunda onda do feminismo contra o economicismo. Rejeitando a identificação exclusiva de injustiça com má distribuição entre classes, as feministas da segunda onda se uniram a outros movimentos emancipatórios para romper o imaginário restritivo e economicista do capitalismo organizado pelo Estado. Politizando “o pessoal”, elas expandiram o significado de justiça, reinterpretando como injustiças desigualdades sociais que tinham sido negligenciadas, toleradas ou racionalizadas desde tempos imemoráveis. Rejeitando tanto o foco exclusivo do Marxismo na economia política quanto o foco exclusivo do liberalismo na lei, elas desvendaram injustiças localizadas em outros lugares – na família e em tradições culturais, na sociedade civil e na vida cotidiana. Ainda, as feministas da segunda onda ampliaram o número de eixos que poderiam abrigar a injustiça. Rejeitando a primazia das classes, as feministas socialistas, as feministas negras e as feministas antiimperialistas também se opuseram aos esforços de feministas radicais em situar o gênero naquela mesma posição de privilégio categorial. Focando não apenas no gênero, mas também na classe, na raça, na sexualidade e na nacionalidade, elas foram precursoras de uma alternativa “interseccionista” que é amplamente aceita hoje. Finalmente, as feministas da segunda onda ampliaram o campo de ação da justiça para incluir assuntos anteriormente privados como sexualidade, serviço doméstico, reprodução e violência contra mulheres. Fazendo assim, elas ampliaram efetivamente o conceito de injustiça para abranger não apenas as desigualdades econômicas, mas também as hierarquias de status e assimetrias do poder político. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos dizer que elas substituíram uma visão de justiça monista, economicista por uma compreensão tridimensional mais ampla, abrangendo economia, cultura e política.
O resultado não foi uma mera lista de questões isoladas. Pelo contrário, o que relacionou a pletora de injustiças recém descobertas era a noção de que a subordinação das mulheres era sistêmica, fundamentada nas estruturas profundas da sociedade. As feministas da segunda onda discutiram, é claro, sobre como melhor caracterizar a totalidade social: se conforme o “patriarcado”, como uma amálgama de “sistemas duais” do capitalismo e patriarcado, como um sistema imperialista mundial, ou, em minha própria visão preferida, como uma forma historicamente específica, a sociedade capitalista organizada pelo Estado de forma androcêntrica, estruturada por três ordens inter-relacionadas de subordinação: (má) distribuição, (falta de) reconhecimento e (falta de) representação. Mas apesar de tais diferenças, a maior parte das feministas da segunda onda – com a exceção notável das feministas liberais – concordou que superar a subordinação das mulheres requeria transformar radicalmente as estruturas profundas da totalidade social. Este compromisso comum para a transformação sistêmica denotava as origens do movimento no mais geral fermento emancipatório dos tempos.
Segunda onda do feminismo contra o androcentrismo. Ainda que a segunda onda do feminismo participasse da atmosfera geral do radicalismo dos anos 1960, mesmo assim permaneceria em uma relação tensa com outros movimentos emancipatórios. Afinal de contas, seu objetivo principal era a injustiça de gênero do capitalismo organizado pelo Estado, o que estava longe de ser uma prioridade para os antiimperialistas não-feministas e os Novos Esquerdistas. Além de intensificar a crítica ao androcentrismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda tinham também que confrontar o sexismo dentro da Esquerda. Para as feministas liberais e radicais, isto não colocou qualquer problema especial; elas poderiam simplesmente se tornar separatistas e abandonarem a Esquerda. Para as feministas socialistas, as feministas antiimperialistas e as feministas de cor, ao contrário, a dificuldade era confrontar o sexismo dentro da Esquerda e permanecer parte dela.
Durante um tempo, pelo menos, as feministas socialistas tiveram sucesso em manter esse difícil equilíbrio. Elas localizaram a essência do androcentrismo em uma divisão sexista do trabalho que sistematicamente desvalorizava atividades, remuneradas e não remuneradas, que eram executadas por ou associada com mulheres. Aplicando esta análise ao capitalismo organizado pelo Estado, descobriram as conexões profundamente estruturais entre a responsabilidade das mulheres à maior parte dos cuidados não remunerados, a subordinação no matrimônio e na vida pessoal, a segmentação de gênero dos mercados de trabalho, a dominação do sistema político pelos homens, e o androcentrismo da provisão do bem-estar social, a política industrial e os esquemas de desenvolvimento. De fato, elas expuseram o salário familiar como o ponto no qual convergiam a má distribuição de gênero, a falta de reconhecimento e a falta de representação. O resultado foi uma crítica que integrava economia, cultura e política em uma análise sistemática da subordinação das mulheres no capitalismo organizado pelo Estado. Longe de ter como objetivo simplesmente promover a incorporação completa das mulheres como assalariadas na sociedade capitalista, as feministas da segunda onda buscavam transformar as estruturas profundas do sistema e os valores que o estimulam – em parte descentralizando o trabalho assalariado e valorizando as atividades não assalariadas, especialmente o trabalho de assistência socialmente necessário executado por mulheres.
Segunda onda do feminismo contra o estatismo. Mas as objeções das feministas ao capitalismo organizado pelo Estado se referiam tanto ao processo quanto ao conteúdo. Como os seus aliados da Nova Esquerda, elas rejeitaram o ethos burocrático-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. À crítica da organização fordista amplamente difundida nos anos de 1960, elas acrescentaram uma análise de gênero, interpretando que a cultura de instituições de larga escala e hierarquizadas expressava a masculinidade modernizada do estrato profissional-gerencial do capitalismo organizado pelo Estado. Desenvolvendo um contra-ethos horizontal de conexão fraternal, as feministas da segunda onda criaram uma prática organizacional completamente nova de aumento da conscientização. Buscando um caminho para cobrir a profunda divisão estatista entre teoria e prática, elas se intitularam como um movimento contracultural democratizante – anti-hierárquico participativo e popular. Em uma época em que o acrônimo “ONG” ainda não existia, acadêmicas feministas, advogadas e assistentes sociais se identificaram mais com as bases do que com o ethos profissional reinante de especialistas despolitizados.
Mas, diferentemente de algumas das suas companheiras de contracultura, a maioria das feministas não rejeitou as instituições estatais simpliciter. Buscando, pelo contrário, infundir nestas instituições valores feministas, elas vislumbraram um Estado democrático e participativo que empoderasse a seus cidadãos. Re-imaginando efetivamente a relação entre Estado e sociedade, elas buscaram transformar aqueles objetos vistos como passivos da política desenvolvimentista e de bem-estar social em sujeitos ativos, empoderandos-os para participarem em processos democráticos de interpretação da necessidade. O objetivo, portanto, era menos desmontar as instituições estatais do que transformá-las em agências que promoveriam, e de fato expressariam, justiça de gênero.
Segunda onda do feminismo contra e a favor do Westfalianismo. Mais ambivalente, talvez, tenha sido a relação do feminismo com a dimensão Westfaliana do capitalismo organizado pelo Estado. Dadas suas origens na agitação global da época contra a Guerra do Vietnã, o movimento estava claramente disposto a ser sensível a injustiças trans-fronteiriças. Este era o caso especialmente das feministas no mundo em desenvolvimento, cuja crítica de gênero foi entrelaçada com uma crítica ao imperialismo. Mas lá, como em outro lugar, a maioria das feministas viu os seus respectivos Estados como os principais destinatários de suas exigências. Assim, as feministas da segunda onda tendiam a re-escrever a estrutura Westfaliana ao nível da prática, até mesmo quando elas a criticavam em nível teórico. Aquela estrutura, que dividiu o mundo em políticas territoriais delimitadas, permanecia como a opção padrão em uma época em que os Estados ainda pareciam possuir as capacidades necessárias para a direção social e na qual a tecnologia que permite a formação de redes transnacionais em tempo real ainda não estava disponível. No contexto do capitalismo organizado pelo Estado, então, o slogan “a irmandade é global” (ele mesmo já contestado como imperialista) funcionou mais como um gesto abstrato do que como um projeto político pós-Westfaliano que poderia ser colocado em prática.
Em geral, a segunda onda do feminismo permaneceu Westfaliana de forma ambivalente, até mesmo porque rejeitava o economicismo, o androcentrismo e o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado. Em todas essas questões, entretanto, manifestou consideráveis nuanças. Ao rejeitar o economicismo, as feministas deste período nunca duvidaram da centralidade da justiça distributiva e da crítica da economia política no projeto da emancipação das mulheres. Longe de querer minimizar a dimensão econômica da injustiça de gênero, elas buscaram, pelo contrário, aprofundá-la, esclarecendo-se sua relação com as duas dimensões adicionais de cultura e da política. Da mesma forma, ao rejeitar o androcentrismo do salário familiar, as feministas da segunda onda nunca buscaram simplesmente substituí-lo pela família com dois assalariados. Para elas, superar a injustiça de gênero significava acabar com a desvalorização sistemática de provisão de cuidados e a divisão sexista do trabalho, tanto remunerado quanto não remunerado. Finalmente, ao rejeitar o estatismo do capitalismo organizado pelo Estado, as feministas da segunda onda nunca duvidaram da necessidade de fortes instituições políticas capazes de organizar a vida econômica a serviço da justiça. Longe de querer libertar os mercados do controle do Estado, elas buscavam, pelo contrário, democratizar o poder estatal, maximizar a participação do cidadão, fortalecer a prestação de contas (accountability) e aumentar os fluxos comunicativos entre o Estado e a sociedade.
Em suma, a segunda onda do feminismo aderiu a um projeto político transformador, baseado em um entendimento expandido de injustiça e na crítica sistêmica da sociedade capitalista. As correntes mais avançadas do movimento viram as suas lutas como multidimensionais, voltadas simultaneamente contra a exploração econômica, hierarquia de status e sujeição política. Para elas, ademais, o feminismo surgiu como parte de um projeto emancipatório mais amplo, no qual as lutas contra injustiças de gênero estavam necessariamente ligadas a lutas contra o racismo, o imperialismo, a homofobia e a dominação de classes, todas as quais exigiam uma transformação das estruturas profundas da sociedade capitalista.
O feminismo e o “novo espírito do capitalismo”
Como se constatou mais tarde, aquele projeto permaneceu basicamente fadado ao fracasso desde o início, vítima de forças históricas mais profundas, que não foram bem entendidas na ocasião. Com o benefício da visão retrospectiva, podemos ver agora que o surgimento da segunda onda do feminismo coincidiu com uma mudança histórica no caráter do capitalismo, da variante organizada pelo Estado, que acabou de ser analisada, para o neoliberalismo. Invertendo a fórmula anterior, que buscava “usar a política para domesticar mercados”, os proponentes desta nova forma de capitalismo propuseram usar mercados para domesticar a política. Desmontando elementos-chave da estrutura de Bretton Woods, eles eliminaram os controles de capital que tinham permitido a direção Keynesiana de economias nacionais. No lugar do dirigismo8, eles promoveram a privatização e a desregulamentação; em lugar de provisão pública e cidadania social, “trickle-down”9 e “responsabilização pessoal”; em lugar dos Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas, um Estado competitivo enxuto e mesquinho. Testada na América Latina, esta abordagem serviu para guiar muito da transição para o capitalismo na Europa Oriental/Central. Embora publicamente patrocinada por Thatcher e Reagan, era aplicada apenas gradual e desigualmente no Primeiro Mundo. No Terceiro, por contraste, a neoliberalização foi imposta usando a dívida como ameaça, como um programa forçado de “ajuste estrutural” o qual subverteu todos os princípios centrais do “desenvolvimentismo” e compeliu os Estados pós-coloniais a despojar-se de seus ativos, abrirem os seus mercados e cortar gastos sociais.
Curiosamente, a segunda onda do feminismo prosperou nestas novas condições. O que tinha começado como um movimento contracultural radical estava agora a caminho de se tornar um fenômeno social de massa de base ampla. Atraindo partidários de todas as classes, etnias, nacionalidades e ideologias políticas, as ideias feministas penetraram em todos os cantos escondidos da vida social e transformaram a ideia que todos os afetados tinham de si mesmos. O efeito não foi apenas ampliar imensamente as fileiras de ativistas, mas também transformar as visões de senso comum de família, trabalho e dignidade.
Foi mera coincidência que a segunda onda do feminismo e o neoliberalismo prosperaram em conjunto? Ou havia uma afinidade eletiva perversa, subterrânea entre eles? Esta segunda possibilidade pode ser uma heresia, por certo, mas seria perigoso não investigá-la. Certamente, o surgimento do neoliberalismo mudou dramaticamente o terreno no qual a segunda onda do feminismo operava. O efeito, eu discutirei aqui, foi “ressignificar” os ideais feministas.10 As aspirações que tiveram um claro impulso emancipatório no contexto do capitalismo organizado pelo Estado assumiram um significado muito mais ambíguo na era neoliberal. Com os Estados de bem-estar social e desenvolvimentistas sob ataque dos “marqueteiros do livre-mercado” (free-marketeers), as críticas feministas do economicismo, androcentrismo, estatismo e Westfalianismo assumiram uma nova valência. Deixe-me esclarecer esta dinâmica de “ressignificação” contemplando novamente os quatro focos da crítica feminista.
Antieconomicismo feminista ressignificado. A ascensão do neoliberalismo coincidiu com uma maior alteração na cultura política das sociedades capitalistas. Neste período, as reivindicações por justiça foram progressivamente expressadas como reivindicações pelo reconhecimento da identidade e da diferença.11 Com esta mudança “da redistribuição para o reconhecimento” vieram pressões poderosas para transformar a segunda onda do feminismo em uma variante da política de identidade. Uma variante progressista, de fato, mas uma que tendia, contudo, a estender em excesso a crítica da cultura, enquanto subestimava a crítica da economia política. Na prática, a tendência era subordinar as lutas sócio-econômicas a lutas para o reconhecimento, enquanto na academia, a teoria cultural feminista começou a obscurecer a teoria social feminista. O que tinha começado como um corretivo necessário para o economicismo recaiu com o tempo em um culturalismo igualmente unilateral. Assim, em vez de chegar a um paradigma mais amplo, mais rico, que poderia abranger tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, as feministas da segunda onda trocaram um paradigma incompleto por outro.
Além disso, o momento não poderia ter sido pior. A volta para o reconhecimento se encaixou muito nitidamente com um neoliberalismo em ascensão que não queria nada mais do que reprimir toda a memória de igualitarismo social. Assim, as feministas tornaram absoluta a crítica da cultura precisamente no momento em que as circunstâncias requeriam atenção redobrada à crítica da economia política. Conforme a crítica se fragmentava, além do mais, a tendência cultural se tornava separada não apenas da tendência econômica, mas também da crítica do capitalismo que as integrara anteriormente. Separada da crítica do capitalismo e disponibilizada para articulações alternativas, estas tendências poderiam ser reduzidas no que Hester Eisenstein chamou de “uma conexão perigosa” com o neoliberalismo (EISENTEIN, 2005).
Antiandrocentrismo feminista ressignificado. Era só uma questão de tempo, portanto, antes que o neoliberalismo ressignificasse a crítica feminista ao androcentrismo. Para explicar como, proponho adaptar um argumento feito por Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005). No seu importante livro, The New Spirit of Capitalism (O novo espírito do capitalismo), eles argumentam que o capitalismo se refaz periodicamente em momentos de ruptura histórica, em parte recuperando as tendências de crítica dirigidas contra ele. Em tais momentos, elementos de crítica anticapitalista são ressignificados para legitimar uma forma nova e emergente de capitalismo, que assim se torna dotada da mais alta significação moral necessária para motivar novas gerações a arcar com o trabalho inerentemente sem sentido de acumulação infinita. Para Boltanski e Chiapello, o novo “espírito” que serviu para legitimar o capitalismo neoliberal flexível de nosso tempo foi adaptado da crítica “artística” da Nova Esquerda ao capitalismo organizado pelo Estado, que denunciou o conformismo cinzento da cultura corporativa. Foi no auge de Maio de 68, afirmam, que os teóricos de gestão neoliberais propuseram um novo capitalismo “conexionista”, “de projeto”, no qual as hierarquias organizacionais rígidas dariam lugar a equipes horizontais e a redes flexíveis, liberando, assim, a criatividade individual. O resultado foi uma nova narrativa do capitalismo com efeitos no mundo real – uma narrativa que envolveu os impulsos tecnológicos do Silicon Valley e que hoje acha sua mais pura expressão no ethos do Google.
O argumento de Boltanski e Chiapello é original e profundo. Contudo, ao não enxergar as questões de gênero, ele deixa de compreender o caráter completo do espírito do capitalismo neoliberal. De fato, aquele espírito inclui uma narrativa masculinista do indivíduo livre, desimpedido, auto modelado, que eles descrevem apropriadamente. Mas o capitalismo neoliberal tem tanto a ver com Walmart, maquiladoras e microcrédito quanto com o Silicon Valley e o Google. E seus trabalhadores indispensáveis são desproporcionalmente mulheres, não apenas jovens mulheres solteiras, mas também mulheres casadas e mulheres com filhos; não só as mulheres racializadas, mas virtualmente mulheres de todas as nacionalidades e etnias. Como tais, as mulheres despejaram-se em mercados de trabalho ao redor do globo; o efeito foi cortar na raiz de uma vez por todas o ideal do salário familiar do capitalismo organizado pelo Estado. No capitalismo neoliberal “desorganizado”, este ideal foi substituído pela norma da família de dois assalariados. Não importa que a realidade que subjaz o novo ideal sejam os níveis salariais decrescidos, diminuição da segurança no emprego, padrões de vida em declínio, um aumento abrupto no número de horas trabalhadas em troca de salários por família, exacerbação do turno dobrado – agora frequentemente um turno triplo ou quádruplo – e um aumento de lares chefiados por mulheres. O capitalismo desorganizado vende gato por lebre12 ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero.
Por mais inquietante que possa parecer, estou sugerindo que a segunda onda do feminismo tem involuntariamente fornecido um ingrediente-chave do novo espírito do neoliberalismo.
Nossa crítica do salário familiar agora fornece uma boa parte da narrativa que reveste o capitalismo flexível de um significado mais elevado e de um argumento moral. Dotando as suas lutas diárias de um significado ético, a narrativa feminista atrai as mulheres nos dois extremos do espectro social: em um extremo, os quadros femininos das classes médias profissionais, determinadas a rachar o teto de vidro; no outro extremo, as trabalhadoras temporárias, de trabalho parcial, prestadoras de serviço de baixa remuneração, domésticas, trabalhadoras do sexo, migrantes, trabalhadores de Zonas de Processamento de Exportação (EPZ)13 e aquelas que utilizam microcrédito, buscando não apenas renda e segurança material, mas também dignidade, auto-aperfeiçoamento e liberação em relação à autoridade tradicional. Nos dois extremos, o sonho de emancipação das mulheres está subordinado à máquina de acúmulo capitalista. Assim, a crítica da segunda onda do feminismo ao salário familiar desfrutou de uma continuação perversa. Se foi, em um tempo, peça central de uma análise radical do androcentrismo do capitalismo, serve hoje para intensificar a valorização do trabalho assalariado do capitalismo.
Antiestatismo feminista ressignificado. O neoliberalismo também ressignificou o antiestatismo do período anterior, tornando-o útil para os esquemas destinados a reduzir a ação estatal tout court. No novo clima, parecia haver um pequeno passo entre a crítica ao paternalismo do Estado de Bem-estar Social da segunda onda do feminismo para a crítica de Thatcher ao Estado protecionista. Certamente, esta foi a experiência nos Estados Unidos, onde as feministas assistiam impotentes como Bill Clinton triangulava as críticas sutis que elas faziam a um sistema de assistência sexista, estigmatizante e precário em um plano para “terminar o bem-estar social como o conhecemos” que aboliu o direito federal a um subsídio para a renda. Nas pós-colônias, enquanto isso, a crítica ao androcentrismo do Estado desenvolvimentista se transformou em entusiasmo pelas ONGs, que emergiram em todos os lugares para preencher os vazios deixados pelos Estados cada vez mais encolhidos. Certamente, as melhores destas organizações forneceram a populações destituídas de serviços públicos a ajuda material que com urgência necessitavam. Contudo, o efeito era frequentemente despolitizar os grupos locais e distorcer suas agendas em direções favorecidas pelos financiadores do Primeiro-Mundo. Pela sua própria natureza de preencher lacunas, além do mais, a ação das ONGs fez pouco para desafiar a maré em retrocesso da provisão pública ou para construir apoio político para a ação estatal reativa (ALVAREZ, 1999; BARTON, 2004).
A explosão do microcrédito ilustra o dilema. Contrapropondo os valores feministas de empoderamento e participação desde baixo à burocracia indutora de passividade do estatismo hierárquico, os arquitetos destes projetos fizeram uma síntese inovadora de auto-ajuda individual e formação de redes comunitárias, a supervisão por parte das ONGs e os mecanismos de mercado: tudo isso com o objetivo de combater a pobreza das mulheres e a sujeição de gênero. Os resultados até aqui incluem um registro impressionante de devoluções de empréstimo e evidências anedóticas de vidas transformadas. Porém, o que tem sido ocultado no alvoroço feminista que cerca estes projetos é uma coincidência perturbadora: o microcrédito se desenvolveu exatamente quando os Estados abandonaram os esforços macroestruturais para combater a pobreza, esforços que os empréstimos em pequena escala podem sequer substituir (NARAYAN, 2005; EISENSTEIN, 2005). Neste caso também, a crítica feminista do paternalismo burocrático foi recuperada pelo neoliberalismo. A perspectiva que visava originalmente transformar o poder estatal em um veículo de empoderamento dos cidadãos e da justiça social é agora usada para legitimar a mercantilização e a redução de despesas do Estado.
Feministas contra e a favor do Westfalianismo ressignificado. Finalmente, o neoliberalismo alterou para melhor e para pior a relação ambivalente da segunda onda do feminismo para com a estrutura Westfaliana. No novo contexto de “globalização”, já não mais se diz que o Estado territorial delimitado é o único receptáculo legítimo das obrigações de justiça e das lutas a favor desta. As feministas se uniram aos ambientalistas, aos ativistas de direitos humanos e aos críticos da Organização Mundial de Comércio (OMC) para desafiar essa visão. Mobilizando as intuições pós-Westfalianas que tinham permanecido impraticáveis no capitalismo organizado pelo Estado, elas visavam atingir as injustiças trans-fronteiriças que tinham sido marginalizadas ou negligenciadas na época anterior. Utilizando novas tecnologias de comunicação para estabelecer redes transnacionais, as feministas foram precursoras em estratégias inovadoras tais como o “efeito bumerangue”, que mobiliza a opinião pública global dirigindo a atenção para abusos locais e para envergonhar os Estados que fecham os olhos para eles (KECK & SIKKINK, 1998). O resultado foi uma nova forma promissora de ativismo feminista: transnacional, de múltipla escala, pós-Westfaliana.
No entanto, a virada transnacional trouxe dificuldades também. Frequentemente impedidas no plano estatal, muitas feministas direcionaram suas energias para a arena “internacional”, especialmente para uma sucessão de conferências relacionadas com as Nações Unidas, de Nairóbi a Viena até Pequim e assim por diante. Fazendo-se presentes na “sociedade civil global” em que pudessem empreender novos regimes de governança global, elas foram envolvidas em alguns dos problemas que já mencionei. Por exemplo, campanhas para os direitos humanos das mulheres que focalizaram esmagadoramente as questões da violência e da reprodução, subjugaram as questões relacionadas à pobreza. Ratificando a divisão própria da Guerra Fria entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, estes esforços, também, privilegiaram o reconhecimento sobre a redistribuição. Além disso, estas campanhas intensificaram a “onguização” da política feminista, alargando o vazio entre os profissionais e os grupos locais, enquanto davam voz desproporcional para as elites que falam a língua Inglesa. Dinâmicas análogas têm operado na participação feminista com o aparato político da União Europeia – especialmente dada a ausência de movimentos de mulheres genuinamente transnacionais em toda a Europa. Assim, a crítica feminista do Westfalianismo se mostrou ambivalente na era do neoliberalismo. O que começou como uma tentativa saudável para ampliar o escopo de justiça além do Estado-nação acabou se encaixando em certos aspectos com as necessidades administrativas de uma nova forma de capitEm geral, então, o destino do feminismo na era neoliberal apresenta um paradoxo. Por um lado, o movimento contracultural relativamente pequeno do período anterior se expandiu exponencialmente, disseminando com sucesso suas ideias pelo mundo. Por outro lado, as ideias feministas se submeteram a uma mudança sutil de validade no contexto alterado. Claramente emancipatórias no período do capitalismo organizado pelo Estado, as críticas ao economicismo, ao androcentrismo, ao estatismo e ao Westfalianismo agora aparecem cheia de ambiguidades, suscetíveis a servir as necessidades de legitimação de uma nova forma de capitalismo. Afinal de contas, este capitalismo preferiria confrontar mais as reivindicações para o reconhecimento e não as reivindicações para a redistribuição, na medida em que constrói um novo regime de acumulação sobre a pedra angular do trabalho assalariado das mulheres, e busca separar os mercados de uma regulamentação social a fim de operar ainda mais livremente em uma escala global.
Um futuro em aberto?
Hoje, entretanto, este capitalismo está ele próprio em uma encruzilhada crítica. Certamente, a crise financeira global e a resposta decididamente pós-neoliberal por parte dos principais Estados – todos keynesianos agora – marcam o começo do fim do neoliberalismo como um regime econômico. A eleição de Barack Obama pode sinalizar o repúdio decisivo, inclusive “nas entranhas do monstro”, do neoliberalismo como um projeto político. Podemos estar vendo as primeiras agitações de uma nova onda de mobilização destinada a articular uma alternativa. Talvez, consequentemente, nós estejamos à beira de outra “grande transformação”, tão volumosa e profunda quanto a que há pouco descrevi.
Nesse caso, então, a forma da sociedade sucessora será objeto de intensa contestação no próximo período. E o feminismo destacar-se-á com importância em tal contestação, em dois níveis diferentes: o primeiro, como movimento social cujas propriedades eu delineei aqui, que procurará garantir que o regime sucessor institucionalize um compromisso em relação à justiça de gênero. Mas também, em segundo lugar, como uma construção discursiva geral que as feministas no primeiro sentido não possuem mais e já não controlam – um significante vazio do bem (semelhante, talvez, à “democracia”) que pode e será invocada para legitimar uma variedade de diferentes cenários, nem todos os quais promotores de justiça de gênero. Fruto do feminismo no primeiro sentido, o de movimento social, este segundo sentido discursivo do “feminismo” se tornou traiçoeiro. Como o discurso se torna independente do movimento, ele é progressivamente confrontado com uma estranha versão sombria de si mesma, um cópia sinistra que nem se pode simplesmente abraçar, nem negar completamente.14
Neste artigo, tracei a dança desconcertante destes dois feminismos na mudança do capitalismo organizado pelo Estado para o neoliberalismo. O que devemos concluir disto? Certamente, não que a segunda onda do feminismo fracassou simpliciter, nem que se deve culpar pelo triunfo do neoliberalismo. Certamente, não se trata de os ideais feministas serem inerentemente problemáticos; nem que eles sempre já estejam condenados a ser ressignificados para os propósitos capitalistas. Concluo, pelo contrário, que nós, para quem o feminismo é acima de tudo um movimento para a justiça de gênero, precisamos ampliar nossa consciência histórica na medida em que operamos em um terreno que também está povoado pela nossa estranha cópia.
Para este fim, permitam-nos voltar à pergunta: o que explica, se é que se pode explicar, nosso “vínculo perigoso” com o neoliberalismo? Somos as vítimas de uma coincidência infeliz, e aconteceu de estarmos no lugar errado no momento errado e assim caímos como presas do mais sedutor dos oportunistas, um capitalismo tão indiscriminado que instrumentalizaria qualquer perspectiva que seja até mesmo uma inerentemente estranha a ele? Ou, como sugeri anteriormente, há alguma afinidade eletiva e subterrânea entre o feminismo e o neoliberalismo?
Se tal afinidade existe de fato, ela se encontra na crítica da autoridade tradicional.15 Tal autoridade é um alvo do ativismo feminista existente há muito tempo, que buscou, pelo menos desde Mary Wollstonecraft, emancipar as mulheres da sujeição personalizada aos homens, sejam eles os pais, irmãos, padres, anciões ou maridos. Mas a autoridade tradicional também aparece em alguns períodos como um obstáculo à expansão capitalista, parte do conteúdo social circundante em que os mercados historicamente foram incorporados e que serviu para delimitar a racionalidade econômica dentro de uma esfera limitada.16 No momento atual, estas duas críticas à autoridade tradicional, a feminista e a outra neoliberal, parecem convergir.
Onde o feminismo e neoliberalismo divergem, em contraste, é sobre as formas pós-tradicionais de subordinação de gênero – coações na vida das mulheres que não adotam a forma de sujeição personalizada, mas surgem de processos estruturais ou sistêmicos nos quais as ações de muitas pessoas são mediadas de forma abstrata ou impessoal. Um caso paradigmático é o que Susan Okin caracterizou como “um ciclo de vulnerabilidade claramente assimétrica e socialmente provocada pelo casamento”. Em que a responsabilidade tradicional das mulheres para o processo de criar e educar os filhos ajuda a moldar os mercados de trabalho que as desfavorecem, resultando em poder desigual no mercado econômico, o que, por sua vez, reforça e exacerba o poder desigual na família. (OKIN, 1989, p. 138). Tais processos de subordinação mediados pelo mercado são a própria essência do capitalismo neoliberal. Hoje, consequentemente, eles devem se tornar no foco principal da crítica feminista, conforme buscamos nos distinguir do neoliberalismo e evitar a ressignificação feita por ele. O objetivo, certamente, não é largar a luta contra a autoridade masculina tradicional, a qual permanece um momento necessário da crítica feminista. É, pelo contrário, romper a passagem fácil de tal crítica para seu duplo neoliberal – sobretudo reconectando as lutas contra a sujeição personalizada à crítica a um sistema capitalista, o qual, ainda que prometa liberação, de fato substitui um modo de dominação por outro. Na esperança de adiantar esta agenda, gostaria de concluir revisitando uma última vez meus quatro focos da crítica feminista.
Antieconomicismo pós-neoliberal. O possível abandono do neoliberalismo oferece a oportunidade de reativar a promessa emancipatória da segunda onda do feminismo. Adotando uma análise plenamente tridimensional de injustiça, poderíamos agora integrar de um modo mais equilibrado as dimensões de redistribuição, reconhecimento e representação que se fragmentaram no período anterior. Fundamentando esses aspectos indispensáveis da crítica feminista em um sentido robusto e atualizado da totalidade social, devemos reconectar a crítica feminista à crítica do capitalismo – e assim re-posicionar o feminismo diretamente na Esquerda.
Antiandrocentrismo pós-neoliberal. Da mesma forma, a possível mudança para uma sociedade pós-neoliberal oferece a chance de romper a ligação espúria entre nossa crítica do salário familiar e o capitalismo flexível. Reivindicando nossa crítica ao androcentrismo, as feministas poderiam militar por uma forma de vida que descentralize o trabalho assalariado e valorize as atividades desmercantilizadas, como o trabalho de cuidar. Agora executadas amplamente por mulheres, tais atividades devem se tornar componentes valiosos de uma vida boa para todos.
Antiestatismo pós-neoliberal. A crise do neoliberalismo também oferece a chance de romper a ligação entre nossa crítica ao estatismo e à mercadorização. Reivindicando o manto da democracia participativa, as feministas poderiam agora militar por uma nova organização de poder político, que subordine o gerencialismo burocrático pelo aumento do poder dos cidadãos. Porém, o objetivo não é dissipar, mas fortalecer o poder público. Assim, a democracia participativa que buscamos hoje é uma que usa a política para domesticar os mercados e guiar a sociedade no interesse da justiça.
Anti Westfalianismo pós-neoliberal. Finalmente, a crise do neoliberalismo oferece a chance de solucionar, de um modo produtivo, nossa ambivalência há muito existente sobre a estrutura Westfaliana. Dado o alcance transnacional do capital, as capacidades públicas necessárias hoje não podem ser alojadas exclusivamente no Estado territorial. Aqui, consequentemente, a tarefa é romper a identificação exclusiva da democracia com a comunidade política delimitada. Juntando outras forças progressistas, as feministas poderiam militar por uma nova ordem política pós-Westfaliana – uma ordem escalar múltipla que é democrática em todos os níveis. Combinando subsidiariedade com participação, a nova constelação de poderes democráticos deve ser capaz de retificar as injustiças em todas as dimensões, ao longo de todos os eixos e em todas as escalas, incluindo injustiças trans-fronteiriças. Estou sugerindo, então, que este é um momento em que as feministas devem pensar grande. Tendo observado como o violento ataque neoliberal instrumentalizou nossas melhores ideias, temos uma abertura agora para reivindicá-las. Agarrando este momento, poderíamos simplesmente dobrar o arco da transformação iminente na direção da justiça – e não apenas no que diz respeito a gênero.
Notas:
[1] Versão original publicada na New Left Review, n. 56, março-abril de 2009, sob o título “Feminism, capitalism and the cunning of history”. A Comissão Editorial da revista Mediações agradece aos editores e à autora por autorizarem esta publicação. Traduzido do inglês por Anselmo da Costa Filho e Sávio Cavalcante. Revisão de Renata Gonçalves.
[2] Professora do Departamento de Filosofia e Política da New School for Social Research, Nova Iorque. End. eletrônico: frasern@earthlink.net
[3] Este ensaio origina-se da conferência principal apresentada no Colóquio de Cartona sobre “Gênero e Cidadania: novos e velhos dilemas, entre a igualdade e a diferença”, realizado em novembro de 2008. Pelos comentários prestimosos, agradeço aos participantes de Cortona, especialmente Bianca Beccalli, Jane Mansbridge, Ruth Milkman e Eli Zaretsky, e aos participantes em um seminário na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) no Groupe de sociologie politique et morale, especialmente Luc Boltanski, Estelle Ferrarese, Sandra Laugier, Patricia Paperman e Laurent Thévenot.
[8] N. T. Dirigisme, no original em francês, que indica o controle forte da economia e outros setores pelos governos.
[9] N. T. Teoria trickle-down em economia (algo como “economia em cascata”) é aquela em que se supõe que os ganhos e as rendas obtidos pelos mais ricos acabam por “escorrer” para toda a base da pirâmide social, por isso, o corte de taxas e impostos e aumento de benefícios aos negócios contribuem para aumentar os ganhos de toda a população.
[10] Tomo emprestado o termo “ressignificação” de Butler (1994). Para esta mudança na gramática de reivindicações políticas, ver Fraser (1995).
[12] N. T. No original, “turns a sow’s ear into a silk purse”, literalmente, “tenta fazer com que uma orelha de porco vire uma bolsa de seda”. A expressão “tentar tirar leite de pedra” também seria um equivalente possível em português, pois a forma original comporta o sentido de impossibilidade de se fazer algo. Contudo, adotamos “vender gato por lebre” para dar conta do sentido do argumento exposto no parágrafo, e ao longo do texto, segundo o qual o novo espírito do capitalismo apresenta um projeto de aumento de autonomia e liberdade, mas assim o faz em um contexto de degradação das condições de trabalho, principalmente para as mulheres. Assim, optamos pelo sentido, também presente na expressão original, de que “se pretende fazer algo bom a partir de algo de baixa qualidade”.
[13] N. T. Como as trabalhadoras das maquiladoras mexicanas.
[14] Esta fórmula de “feminismo e suas cópias” poderia ser elaborada em bom termo a respeito da eleição Presidencial Americana de 2008, onde as sinistras cópias incluíam tanto Hillary Clinton como Sarah Palin.
[15] Devo este ponto a Eli Zaretsky (comunicação pessoal). Cf. Eisenstein (2005).
[16] Em alguns períodos, mas nem sempre. Em muitos contextos, o capitalismo está mais inclinado a se adaptar do que a desafiar autoridade tradicional. Sobre a criação dos mercados, veja Polanyi (2001).
Referências
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NARAYAN, Uma. Informal sector work, microcredit and third world women’s “empowerment”: a critical perspective’. Paper apresentado no XXII World Congress of Philosophy of Law and Social Philosophy, Granada, maio, 2005.
POLANYI, Karl. The great transformation: the political and economic origins of our time. Boston: Beacon, 2001. [A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.]
[2] Professora do Departamento de Filosofia e Política da New School for Social Research, Nova Iorque. End. eletrônico: frasern@earthlink.net
[3] Este ensaio origina-se da conferência principal apresentada no Colóquio de Cartona sobre “Gênero e Cidadania: novos e velhos dilemas, entre a igualdade e a diferença”, realizado em novembro de 2008. Pelos comentários prestimosos, agradeço aos participantes de Cortona, especialmente Bianca Beccalli, Jane Mansbridge, Ruth Milkman e Eli Zaretsky, e aos participantes em um seminário na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) no Groupe de sociologie politique et morale, especialmente Luc Boltanski, Estelle Ferrarese, Sandra Laugier, Patricia Paperman e Laurent Thévenot.
[4] Para uma discussão nestes termos, ver Pollock (1982).
[5] N. T. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
[6] Então, também, a vida econômica no bloco comunista foi notoriamente organizada pelo Estado, e há aqueles que ainda insistiriam em chamá-la de capitalismo organizado pelo estado. Embora possa haver alguma verdade nesta visão, seguirei o caminho mais convencional de excluir a região deste primeiro momento do meu estudo, em parte porque até 1989 não emergiu a segunda onda do feminismo como uma força política no que foi até então países ex-comunistas.
[7] Para uma análise mais ampla do “imaginário político Westfaliano”, ver Fraser (2005).
[5] N. T. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
[6] Então, também, a vida econômica no bloco comunista foi notoriamente organizada pelo Estado, e há aqueles que ainda insistiriam em chamá-la de capitalismo organizado pelo estado. Embora possa haver alguma verdade nesta visão, seguirei o caminho mais convencional de excluir a região deste primeiro momento do meu estudo, em parte porque até 1989 não emergiu a segunda onda do feminismo como uma força política no que foi até então países ex-comunistas.
[7] Para uma análise mais ampla do “imaginário político Westfaliano”, ver Fraser (2005).
[8] N. T. Dirigisme, no original em francês, que indica o controle forte da economia e outros setores pelos governos.
[9] N. T. Teoria trickle-down em economia (algo como “economia em cascata”) é aquela em que se supõe que os ganhos e as rendas obtidos pelos mais ricos acabam por “escorrer” para toda a base da pirâmide social, por isso, o corte de taxas e impostos e aumento de benefícios aos negócios contribuem para aumentar os ganhos de toda a população.
[10] Tomo emprestado o termo “ressignificação” de Butler (1994). Para esta mudança na gramática de reivindicações políticas, ver Fraser (1995).
[12] N. T. No original, “turns a sow’s ear into a silk purse”, literalmente, “tenta fazer com que uma orelha de porco vire uma bolsa de seda”. A expressão “tentar tirar leite de pedra” também seria um equivalente possível em português, pois a forma original comporta o sentido de impossibilidade de se fazer algo. Contudo, adotamos “vender gato por lebre” para dar conta do sentido do argumento exposto no parágrafo, e ao longo do texto, segundo o qual o novo espírito do capitalismo apresenta um projeto de aumento de autonomia e liberdade, mas assim o faz em um contexto de degradação das condições de trabalho, principalmente para as mulheres. Assim, optamos pelo sentido, também presente na expressão original, de que “se pretende fazer algo bom a partir de algo de baixa qualidade”.
[13] N. T. Como as trabalhadoras das maquiladoras mexicanas.
[14] Esta fórmula de “feminismo e suas cópias” poderia ser elaborada em bom termo a respeito da eleição Presidencial Americana de 2008, onde as sinistras cópias incluíam tanto Hillary Clinton como Sarah Palin.
[15] Devo este ponto a Eli Zaretsky (comunicação pessoal). Cf. Eisenstein (2005).
[16] Em alguns períodos, mas nem sempre. Em muitos contextos, o capitalismo está mais inclinado a se adaptar do que a desafiar autoridade tradicional. Sobre a criação dos mercados, veja Polanyi (2001).
Referências
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BUTLER, Judith. Continget Fundations. In: BENHABIB, Seyla et alii. Feminist contentios: a philosophical exchange. Londres: Routledge, 1994. [Fundamentos Contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, 1998].
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KECK, Margaret & SIKKINK, Kathryn. Activists beyond borders: advocacy networks in International Politics. Ithaca, Nova Iorque: Cornell University, 1998.
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